Ezio Bosso. Onde nasce a música

Ele tocou nos maiores palcos do mundo, dirige um teatro e uma orquestra. E por causa de uma doença, precisou recomeçar tudo do início. O pianista que comoveu o mundo em Sanremo, conta porque o seu trabalho “vem” do silêncio (da Passos de maio)
Anna Leonardi

“O piano é meu irmão. Porque preciso do relacionamento físico com a música e ele me dá isso todos os dias”. Ezio Bosso, desprendido nas palavras e no look – botas, calça skinny e cinto de couro – não parece sair do mundo circunspecto da música clássica. No entanto, apresentou-se nos teatros mais prestigiados como regente de orquestra e pianista: do Opera House, de Sidney ao Carnegie Hall, de Nova Iork, do Royal Festival Hall, de Londres ao La Scala, de Milão. Também assinou trilhas sonoras para filmes de Gabriele Salvatores, e o maestro Claudio Abbado deixou-lhe como herança a Associação Mozart14, da qual é embaixador internacional.
Porém, mais que ao sucesso, Bosso é apegado ao seu piano, que o ajudou a voltar à música depois dos anos de pausa forçada, a qual teve início em 2011, quando, aos 38 anos, submeteu-se a uma cirurgia no cérebro para a retirada de um melanoma e descobriu uma grave doença autoimune. Precisou recomeçar tudo do zero: exercícios para falar, para caminhar, para mover os dedos. Depois, precisou reaprender a tocar. “É como se tivesse nascido de novo”, sempre diz. “A mudança do meu corpo me fez ir ainda mais a fundo daquilo que amo fazer”.
A recuperação foi lenta: muita escuridão e silêncio, mas, a um certo ponto, lhe veio a coragem de fazer o que nunca tinha feito. Em 2015, surpreendeu o mercado fonográfico com um CD duplo (The 12th Room) e uma turnê como solista. E, em fevereiro de 2016, quando se apresentou no Festival de Sanremo, o grande público também pôde conhecê-lo. Hoje, é diretor do Teatro Verdi, de Trieste. O seu piano, nestes anos, mudou com ele: sofreu várias alterações para que ele pudesse tocar, mesmo não podendo mais sentar-se como antes, e as teclas tornaram-se mais leves porque seus dedos, agora, são mais frágeis. Por isso, viajarão juntos em sua próxima turnê pela Itália. Um pouco como faziam Rachmaninov e os grandes pianistas do passado. Mas não é um capricho, é a exigência para continuar tocando. O diálogo com ele começa exatamente daí: do piano e das melodias do Oratório de Natal, de Bach.

O que é a música para o senhor?
Esta é a pergunta mais difícil que existe. A música é o que carregamos dentro de nós, é aquilo em que consistimos, em que nos movemos. É o vento que balança as árvores, a chuva no mar, mas também a tristeza e a alegria. A criação já é musicalmente constituída. A música existe, prescindindo de nós. O homem foi em busca dela para poder grafar essa grandiosidade, para poder repeti-la quando ela não está presente. Porque a música, como toda beleza, é uma necessidade. Portanto, a verdadeira pergunta não é “o que é a música para mim?”, mas “o que eu posso fazer através da música?”.

E o que o senhor pode fazer?
Esta pergunta é o que me leva a tocar e a superar os vários limites que a vida me impõe. A música me pede para não ser mais eu mesmo, para me tornar o outro, compreendê-lo, ou seja, “levá-lo comigo”. A música é este sacrifício. Sacrifício entendido no seu significado mais belo que é “dedicar-se ao sagrado”. Não é uma renúncia, pelo contrário... é exatamente doando-nos ao outro que podemos participar dessa sacralidade.

Um dos seus mestres, Claudio Abbado, dizia que a música é a nossa cura...
A música nos ajuda a viver. Faz-nos ficar bem. Mas não é uma questão de humor, a música não é um corroborante de emoções. Quem escreve música o faz para encontrar uma ligação com algo que é maravilhosamente inexplicável. De fato, não existe religião no mundo que não tenha a música ao seu lado. A música cura as ranhuras da nossa alma porque nos dá um ponto de acesso imediato à nossa essência. Reconhecemo-nos parte de um desígnio não controlável, daquele mistério do qual já participamos.

Como descobriu o seu dom?
Eu tinha três anos quando comecei a me sentir atraído pelos sons, pelos instrumentos. É claro que também gostava da merenda e dos jogos, mas eu buscava sobretudo a música. Porque eu era mais feliz quando havia música. Aos quatro anos, meus pais me mandaram estudar com uma tia. Meu pai era motorista de bonde e minha mãe trabalhava na Fiat: pessoas simples que gastavam com livros, com cultura. Aos dez anos, entrei para uma orquestra. Tocava fagote, porque era um instrumento que ninguém queria. Depois de seis meses, contraí asma, então o diretor, para não me mandar embora, me colocou para tocar contrabaixo, a única vaga que havia. A música entrou na minha vida como uma ajuda. E chegou a mim, provavelmente, porque eu precisava mais dela do que os outros. É ela que me faz sentir amado. E sentir-se amado é sempre uma grande responsabilidade.

Ao final de uma gravação feita no teatro o senhor disse a uma senhora do público, que o agradecia: “Obrigado à senhora, a sua respiração também está no disco”. O que significa, como sempre repete, que “a música é como a vida, ela só pode ser feita junto com outros”?
Porque precisamos completá-la. A partitura está escrita no papel, posso lê-la e, depois, quando fecho a partitura, ela continua existindo. Mas está incompleta até que aqueles sons sejam executados. Para que a música se realize é preciso que andemos juntos. O que é, no fundo, a entonação? Não é uma questão puramente técnica, mas é “ter o mesmo tom”, quer dizer, o mesmo modo de dizer a mesma coisa. E para que isto aconteça precisamos viver o mesmo sacrifício.

Ou seja?
Na orquestra se realiza uma sociedade ideal. A partitura é a nossa Constituição, mas é necessário o empenho de todos. O regente precisa cuidar dos seus músicos, precisa conhecê-los, saber se um braço está cansado ou se pode exigir um pouco mais. Depois, há o trabalho de cada instrumento que requer horas de ensaio, mas sobretudo de escuta. Não é possível melhorar se não há essa capacidade de escuta do outro, porque se a pessoa que está ao meu lado toca melhor do que eu, vai me ajudar a tocar melhor. É um círculo virtuoso.



E qual é a participação do público?
Eu sou beethoveniano, no sentido de que acredito que a música deva ser das pessoas. Nós somos a chave que pode torná-la acessível. Até a busca pela perfeição é vivida como serviço. Eu coloco o meu trabalho, mas o resto é com quem escuta. A música é um gesto de generosidade de ambas as partes.

O que é o silêncio para quem faz música?
O silêncio, por si só, não existe. Até o sangue que corre nas nossas veias faz um som. É verdade, entre uma nota e outra, entre uma palavra e outra há uma pausa, mas não é um vazio. É uma tensão. A música nasce exatamente ali, e o silêncio é uma forma de espera. Calamo-nos para ouvir alguma outra coisa.

Na vida também é assim?
Eu vivi silêncios de muitos tipos, tenho coleções inteiras deles. E aprendi a estar dentro dele. O homem de hoje, ao contrário, é muito assustado, tem medo do constrangimento que percebe no silêncio. E isso porque alguém colocou na sua cabeça o mito da força. Que é uma mentira: a criação nos mostra como somos pequenos. Nosso poder não está na força, mas nasce da fragilidade, de não termos sempre as palavras... e do constrangimento que sentimos diante de nós mesmos.

Por quê?
Porque nos obriga a ir além. A estabelecer novas conexões. Nós, homens, somos estranhos, encontramos a exigência sempre no escuro. Na experiência da doença, aprendi a viver o problema como uma oportunidade. E senti que aquele era o momento de fazer as coisas. A piora física fez-me descobrir uma vida nova, sem filtros.

O senhor escreveu na partitura da sua música mais famosa Following a bird: “Você aprende a seguir somente quando perde a si”. O que isso significa?
Precisamos perder o nosso preconceito se quisermos aprender a construir. E, depois, precisamos começar a perguntar. Se você se perde em uma grande cidade, o que faz? Começa a perguntar. O que é um gesto que pressupõe a capacidade de confiar.

Em Turim, na Fundação Barolo, o senhor participa dos dias de ensino gratuito: para tocar para o senhor vêm crianças, profissionais, quartetos...
É uma tentativa de abrir as portas de um mundo – o da música clássica – que estão sempre bastante fechadas. A primeira coisa que percebo quando encontro as pessoas, é que tocar nos torna mais belos. Mas não é um cânone estético, é uma beleza que exprime algo mais profundo: uma beleza intocável. E é com as crianças que eu mais aprendo. Para elas, os problemas nunca são um problema. Se não gostam de uma peça ou se não é bem tocada, elas dizem. E, quando tentamos encontrar uma solução juntos, as crianças escolhem sempre o caminho mais longo. Não têm pressa porque gostam de percorrer o caminho, acham interessante, talvez mais do que a solução. Nós também deveríamos fazer como elas.

«A música cura as ranhuras da nossa alma porque nos dá um ponto de acesso imediato à nossa essência. Reconhecemo-nos parte de um desígnio não controlável, daquele mistério do qual já participamos»

A música clássica tem futuro?
Antes de mais nada, gostaria de chamá-la de “música livre”, mesmo sendo uma definição que pode ser mal interpretada. Não é “livre” porque você pode fazer do jeito que lhe agrada... pelo contrário, você precisa seguir a partitura. Precisa ter uma dedicação absoluta a ela. Mas, paradoxalmente, quanto mais você a segue, mais é livre. As raízes não são uma constrição, mas a única possibilidade de iniciar uma viagem. Somente haverá futuro se voltarmos a uma educação ao maravilhamento. Hoje, predomina uma “contra-educação”. Dizer que a música à qual pertenço é “difícil” ou “elitista” é fruto de uma manipulação. Fui acusado de levar pessoas despreparadas para dentro dos teatros e isso me entristeceu: como se pode olhar desse modo para um jovem que escuta Tchaikovsky pela primeira vez e que, talvez, tenha ficado tocado? Não é preciso ter um currículo de bom ouvinte, mas a humildade de deixar-se maravilhar, isto sim.

O senhor tem medo do futuro?
O medo faz parte de mim. E devo olhar para ele. Porque sempre me vem a dúvida: será que o medo é o sentimento mais natural? O medo é induzido pelo caos no qual nos sentimos imersos. Não fazendo mais silêncio, não conseguimos ver que a beleza está sempre ao alcance das mãos. No fundo, nós ainda vivemos no Jardim do Éden. Precisamos apenas aprender a olhar. Porque esta é a única coisa que nos faz dar um passo além do medo que carregamos.

Também além do nosso senso de inadequação?
Antes dos concertos, sempre me perguntam: “Ezio, você está pronto?”. E eu digo: “Não!”. Não posso estar pronto porque eu não sei o que vai acontecer daqui a um minuto. Mas o bonito é exatamente esse não estar prontos. Porque isso elimina o problema de ser bons. Vá e dê tudo, e, ao mesmo tempo, espere tudo.