Mikel Azurmendi

Mikel Azurmendi. «Fui marcado pelo sorriso de pessoas ressuscitadas»

Filósofo e antropólogo basco. Agnóstico. Há dois anos apresentou A beleza desarmada em Madri. Para ele, no mundo de hoje é necessário «sair da ideologia e entrar no tu»
Fernando de Haro

Mikel Azurmendi tem 75 anos. Filósofo e antropólogo basco, por muitos anos engajado contra o terror social e político imposto pelo ETA, oferece talvez um dos olhares mais livres e lúcidos que se possam encontrar na Espanha. Um olhar laico, que se confrontou até o fundo com os traços mais urgentes do nosso tempo, sobretudo a imigração, o nacionalismo, o jihadismo, o valor público da experiência religiosa. Ele, agnóstico, dois anos atrás, ao participar do lançamento em Madri do livro A beleza desarmada de Julián Carrón, relatou a surpresa de ter conhecido pessoas que viviam um cristianismo «diferente daquele que eu vivi».
Disse ter vislumbrado «a transição de um conjunto de normas e pecados à lei do significado, onde há somente uma obrigação: buscar o significado». Num mundo como o de hoje, onde a «maior necessidade», dizia, «é sair da ideologia. E entrar no tu».

Se tivesse que definir a situação social e cultural do Ocidente neste início de século, com quais palavras o faria?
No plano social, parece-me que já triunfou o individualismo mais possessivo e solipsista, para o qual o outro é algo que não me diz respeito, ou que me interessa só para descarregar sobre ele a minha raiva. No plano cultural, por todo o século XX assistimos a uma lenta mas progressiva dissolução do sentido da vida, e agora, no século XXI, iniciamos uma corrida em direção ao niilismo. Tudo se compra e vende, até um mestrado em Direito. Há desconhecimento total do bem. O mal? Não existe. Um “eu” equivale ao puro “direito de decidir”; “o indivíduo” é aquele que pode decidir acerca de cada coisa, seja ele quem for e sejam os outros quem forem. Tem “direito” de fazer o que lhe agrada e de dizer o que lhe passa pela cabeça (porque “a sua verdade não é mais verdadeira que a minha”). Julgamo-nos donos da vida e da morte. Aquela terrível promessa de Nietzsche (em A vontade de potência) já se tornou realidade numa imensa parte da população do Ocidente. Ao lado dessa grande maioria da população, há pequenos grupos de pessoas que vivem uma vida dividida entre uma bolha livresca de academismo (“fanáticos mornos” da Razão, ocupados em debates meramente conceituais sobre Justiça, ou Bem ou Democracia) e uma vida gasta na procura do prazer pessoal. Ademais, há um punhado de homens que tentam acolher o pobre e o doente, preferindo sair ao encontro do outro.

Parece-me que já triunfou o individualismo mais possessivo e solipsista, para o qual o outro é algo que não me diz respeito, ou que me interessa só para descarregar sobre ele a minha raiva

Num dos seus livros, o senhor defende um «cordial universalismo do nós». Falar do “nós” implica falar de história, de afetos, de vínculos. Que é o universalismo do nós?
Eu também venho de uma mistura daqueles homens que ridicularizo. Se escrevi aquela frase que o senhor cita, e agora me parece banal, certamente era porque por muito tempo pensei que os valores da nossa sociedade continham um fundo de alcance universal, porque eram inclusivos: o “nós” democrático-liberal me parecia a sociedade menos etnocêntrica que conhecia e a que mais incluía as diferenças culturais alheias. Hoje vejo que se trata de uma imagem brega demais da nossa identidade cultural, gerada por impulsos humanistas enfraquecidos, totalmente diversos dos que hoje vigoram: relativismo e individualismo. O único universalismo do “nós” ao qual sou favorável é que o “outro”, seja quem for, é sempre um bem. O ser humano é dependente, depende do outro para ser ele mesmo (para nascer, crescer, desfrutar ou sofrer e morrer). É este o conceito mais universal do mundo dos homens, é como a nossa lei de gravidade. Vejo a quebra mais total de qualquer etnocentrismo como a única saída para a nossa sociedade liberal. Por isto, qualquer nacionalismo é um grande inimigo da humanidade, e qualquer acúmulo de ira, inveja ou ódio é um passo contra a humanidade.



Ajude-nos a entender a raiz do fracasso desse universalismo iluminista de que falamos. Quando boa parte do pensamento moderno decide sair da “menoridade” e construir uma razão adulta, toma posição frente ao problema da Bíblia. Considera que os fatos dos relatos bíblicos pertencem a uma “idade do espírito” superada. Spinoza, por exemplo, afirma que o divino, pela sua natureza universal, não pode manifestar-se no particular, no fato histórico. Em que medida este pressuposto constitui uma forma mentis ainda viva em todos nós?
Spinoza foi o primeiro que questionou de maneira radical na Europa cristã a revelação de Deus. E o fez desmantelando o imaginário teológico da sua época na base de uma crítica histórico-filológica: pondo em relação a Bíblia com o contexto particular em que foi escrita, chegou a concluir que a verdade do texto bíblico era somente a experiência particular do povo hebraico (com tudo o que lhe era conexo, os profetas, os costumes, etc.). Ou seja, relativizou a perspectiva da Bíblia. Deu à sua pesquisa o título Tratado teológico-político porque o seu objeto era libertar os homens da superstição combatendo «o segredo das monarquias e seu interesse em enganar os homens adoçando com a religião o medo com que os escravizavam». De acordo com ele, só uma república garantiria a segurança de todos, «deixando cada um livre para pensar o que quisesse e livre para dizer o que pensasse». Era uma imensa ousadia. No capítulo 13 daquele livro afirma que «as escrituras não contêm senão ensinamentos muito simples, e pretendem apenas que nós obedeçamos. Acerca de Deus não ensinam senão o que os homens podem imitar vivendo segundo certas regras». Do Novo Testamento pega a Carta aos Romanos (13,8) para deduzir que o amor ao próximo resulta numa pura obediência, já que constitui uma norma que não fornece nenhum conhecimento. Nos capítulos seguintes demonstra que a fé leva à obediência, enquanto, ao contrário, a filosofia ensina a pensar; a fé não exige dogmas verdadeiros, mas só obediência.

E quais consequências isso tem?
“Sair da menoridade”, ou a separação entre Ciência e Fé, verifica-se pela primeira vez na Europa graças ao erro antropológico de dividir o humano em dois: o ser que pensa e o ser que age, um ser no qual não há nenhum nexo entre as duas atividades. Amar o outro já se tornou uma imposição, uma norma divina que não exige nem fornece conhecimento. Este erro nos indica que a ética se transformou, neste nível do cristianismo, numa mera coleção de normas e obrigações sem relação com a racionalidade. Em nível filosófico foi Hegel quem retomou o ponto de vista spinoziano que partia da irredutibilidade da experiência particular do povo hebreu para apostar na história universal como totalidade dos pontos de vista: ou seja, extraindo de toda a experiência histórica a sua “essência racional”. Também Marx e outras correntes materialistas adotaram esse ponto de vista hegeliano afirmando a legitimidade universal do materialismo. E deste modo facilitaram a hecatombe moderna da eliminação em massa de seres humanos. De minha parte, gostaria de poder dizer-lhe que diante do problema da Bíblia existe só a fé. Se você crê que Jesus era Deus, feito homem para nos ensinar coisas esquecidas acerca da violência humana come fator de desumanização e recíproca aniquilação, então aceita totalmente os textos dos Evangelhos. O valor universal deles é o amor, o abraço ao necessitado, o pôr fim ao ódio, à inveja, à raiva. Ou seja, que a vida do homem tem sentido unicamente ao lado do outro. O universal é isto.

Se você crê que Jesus era Deus, feito homem para nos ensinar coisas esquecidas acerca da violência humana come fator de desumanização e recíproca aniquilação, então aceita totalmente os textos dos Evangelhos. O valor universal deles é o amor, o abraço ao necessitado, o pôr fim ao ódio, à inveja, à raiva. Ou seja, que a vida do homem tem sentido unicamente ao lado do outro.

Voltemos à separação entre a fé gerada por fatos históricos e a universalidade do conhecimento. Lessing chegará a dizer que «casuais verdades históricas não podem nunca chegar a ser a prova de necessárias verdades racionais». Que consequências tem uma formulação come esta? Não me refiro só à ciência, que é sempre importante, mas ao viver cotidiano, que afinal é o que nos quebra as pernas ou nos faz cantar.
Lessing era alemão, nasceu cem anos depois de Spinoza, mas teve grande estima pelas ideias dele. Um ano antes de morrer, publicou A educação do gênero humano (1780), um texto que preparava a ética racionalista de Kant. Na frase citada, Lessing especifica que as verdades históricas são contingentes, e as verdades da razão necessárias. E que é impossível passar de uma para outra. Escreve-o num contexto em que pretende demonstrar que os milagres e as profecias de Cristo foram verdades na sua época, mas que agora já não servem para a finalidade que tinham então: isto é, para «chamar a atenção das massas... para que os homens seguissem as pegadas» de quem fazia milagres. Mas hoje são somente «notícias de milagres e profecias passadas», são um fato histórico e em si não contêm verdade alguma. Lessing nega o valor da testemunha, nega a confiança entre os homens como fundamento da verdade: a gente pergunta ao vizinho para saber alguma coisa, não? Porque a gente confia que o outro diga a verdade. Ler Aristóteles ou Eurípides implica confiarmos no fato de que quem transcreveu aqueles textos não os inventou. Isto não é uma “notícia”, mas um fato histórico, e muito razoável de crer. A época da pós-verdade e das fake news é a réplica contemporânea do racionalismo de Lessing: se todo o passado não é senão notícia de um passado, que sentido terá crer numa notícia mais do que em outra? Na pós-verdade, se a verdade desaparece é porque se anula a relação de confiança entre o outro e mim.

O magistério dos últimos papas retomou a definição do cristianismo como acontecimento. Que importância isto tem?
Sem tê-los lido há mais de cinquenta anos, também eu cheguei a esta conclusão acerca do cristianismo, tendo acompanhado o caminho de alguns cristãos por dois anos. Eles vivem de Jesus e querem ser como Ele; a Sua presença lhes dá a força para imitá-lo, e assim amam o necessitado, o acolhem, o educam, “saem”, vão ao encontro do outro, seja lá quem for. Isto é o cristianismo, eu disse a mim mesmo, deparar com algo de importante que acontece na sua frente. Quando isto não acontece, penso que não haja cristianismo, mas somente um conjunto de superstições, uma mistura de ritos e doutrina, uma outra religião mítica diferente da que eu deixei há mais de cinquenta anos. A importância de ser o cristianismo um acontecimento é que a pessoa o vive, vive a fusão com Cristo, experimenta Cristo como num laboratório. Deste modo outros podem observar o experimento e pode acontecer que os entusiasme, ou não. Mas isto dependerá de cada um, não daqueles que foram vistos. Em todo caso, uma pessoa se tornará cristã hoje unicamente por ter encontrado os cristãos, pela atração da vida deles em Cristo, que vivem o acontecimento da Sua morte e ressurreição.

A importância de ser o cristianismo um acontecimento é que a pessoa o vive, vive a fusão com Cristo, experimenta Cristo como num laboratório. Deste modo outros podem observar o experimento e pode acontecer que os entusiasme, ou não. Mas isto dependerá de cada um

Que contribuição podem dar os cristãos neste mundo?
Uma única contribuição: ser testemunhas de Jesus e dar testemunho dele. Vestir os nus, dar de comer a quem tem fome, acolher os sem-teto, visitar os enfermos, ajudar os viciados em drogas... Porque todos esses necessitados são Jesus.

Não sei se posso terminar com uma pergunta pessoal. Estou lendo o livro que o senhor quis escrever sobre Comunhão e Libertação na Espanha. É apaixonante, porque o seu olhar é agudíssimo, vê o que eu não vejo em pessoas e circunstâncias que conheço bem, algumas há mais de trinta anos. O que mais o marcou desta tribo?
A alegria de viver, o seu sorriso de ressuscitados.

De onde lhe vem esse olhar?
É um olhar vesgo, o dos meus olhos, não há dúvida... Entristecem-se ao ver o mal que nos fazemos uns aos outros, mas se enternecem diante de crianças amadas pelos próprios pais. Pobres dos meus olhos! A realidade distorce o seu olhar enquanto anelam ver a ressurreição nos rostos.