Guy Consolmagno. «Digo a todos que a ciência é uma alegria»
O diretor da Specola Vaticana, o observatório que expressa «o amor da Igreja pelo universo», fala da liberdade de pesquisa e da relação entre ciência e fé. E responde àquela pergunta tão bizarra: «Você batizaria um extraterrestre?»Quando ele se apresenta, diz que é «um fundamentalista e um nerd. Um fundamentalista no que se refere à ciência e um nerd do ponto de vista religioso». Desde 2015, Irmão Guy Consolmagno é o diretor da Specola Vaticana, o observatório astronômico do Papa. Nascido em 1952, ele é um americano de Detroit. Olhos vivos, barba grisalha, gola de Irmão jesuíta (fez os votos, mas não foi ordenado sacerdote), usa um anel de ouro com a efígie do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde estudou e lecionou.
No último dia 14 de junho, o Papa Francisco foi cumprimentá-lo, a ele e ao grupo de jovens cientistas reunidos para a Escola de Verão anual organizada pela Specola (este ano foi dedicada ao estudo das “estrelas variáveis”). O Papa recordou-lhes que «somos pessoas que amam o que fazem e que descobrem no amor pelo universo uma degustação do amor divino que, ao contemplar a Criação, declarou que ela era uma coisa boa». Por sua vez, a quem lhe pergunta por que o Papa tem um observatório astronômico, Irmão Consolmagno responde: «Serve para mostrar ao mundo que a Igreja ama e apoia a ciência».
Mas qual é a diferença entre esse observatório e os outros centros de astronomia?
A primeira diferença é que nós não somos financiados por fundos de curto prazo, isto é, por projetos que duram dois ou três anos, mas podemos nos permitir trabalhar em pesquisas de maior fôlego. Eu pude trabalhar durante 25 anos nas propriedades físicas dos meteoritos. Eu não sofria pressão para produzir resultados, como hoje acontece a muitos cientistas, nesse meu campo. É uma grande liberdade.
E a segunda diferença?
É a razão pela qual fazemos esse trabalho. Nós existimos para lembrar por que vale a pena ser cientista: não pela fama, pelo dinheiro ou pelo poder. Nós experimentamos a alegria que nos vem do Criador, enquanto fazemos experiência, como cientistas, da Criação.
Há séculos que a Igreja repete que entre ciência e fé não há oposição. No entanto, o senhor é sempre questionado sobre esse ponto.
Essa contraposição é levantada continuamente, mas, na realidade, conheço muitíssimos cientistas que são profundamente religiosos e a história está cheia de casos assim. O pressuposto de quem me coloca a questão é falso.
Justamente: qual é a razão profunda dessa dificuldade?
A maior parte das pessoas estuda a ciência desde criança. O mesmo acontece com a religião: nós frequentamos a igreja desde pequenos. Depois, isso acaba. Assim, muitos adultos têm uma ideia muito ingênua do que sejam a ciência e a religião. Imaginam como se fossem dois livros, separados, que contêm fatos. O que acontece se algum fato do primeiro contradiz um fato contido no segundo? Mas essa ideia não corresponde à realidade. Nem a ciência nem a religião são isso.
E o que são?
O Papa Francisco disse bem no discurso na nossa Escola de Verão: a ciência tem a ver com a possibilidade de conhecer a realidade melhor e mais profundamente, corrigindo a si mesma, porque sabemos que nada é conhecido de uma vez por todas. E, todavia, precisamos partir das coisas que já conhecemos. Do mesmo modo, também nunca podemos considerar o conhecimento da religião completo: nunca poderei dizer que conheço a Deus de modo exaustivo, podendo assim parar de pensar e de rezar. Não podemos. Sempre podemos aprender, sempre podemos compreender melhor.
O que é, para o senhor, o testemunho cristão dentro da comunidade científica?
Parte da minha resposta é condicionada pelo fato de eu trabalhar com Física e Astronomia. Nesse campo, quase todos estão conscientes do quanto nós não conhecemos e todos sabem o quanto o universo nos parece muito mais misterioso do que há 150 anos. Entre físicos e astrônomos há uma grande abertura para a fé religiosa, qualquer que seja ela.
O senhor está me dizendo que a oposição entre ciência e fé é uma invenção dos jornais?
Não, esse clima de abertura é mais raro em outras disciplinas. Entre os biólogos, por exemplo, há ainda muita desconfiança. A biologia está numa fase diferente da sua evolução: ainda está tentando mapear as relações causa-efeito dos sistemas vivos. Os biólogos ainda não chegaram às questões mais amplas que os físicos, depois da descoberta da quântica, tiveram que se colocar a respeito dos limites da sua disciplina, questionando muitas coisas que antes consideravam certezas adquiridas. Os biólogos também chegarão lá.
O seu último livro de divulgação científica intitula-se “Você batizaria um extraterrestre?” . A sua resposta é: «Sim, se ele me pedisse». Por quê?
A alegria que eu sinto ao responder a essa pergunta não vem da possibilidade de eu crer nos alienígenas. É que ela me obriga a questionar o significado desse Sacramento. O Batismo é a livre escolha de uma alma, que deseja estar mais próxima de Deus. É decidir-se pela pertença. Mesmo no caso dos recém-nascidos (que farão sua escolha na Crisma); de qualquer forma tudo gira em torno da liberdade. Não se trata de uma questão sobre a genérica possibilidade de administrar os sacramentos aos extraterrestres, mas tem a ver com esse Sacramento distribuído a um indivíduo em particular. Do contrário, é uma pergunta que não tem sentido, até que nos encontremos de fato frente ao caso de um alienígena que pede o Batismo.
Hoje, para mim, cada estrela está ligada a uma história, feita de coisas que eu estudei e de circunstâncias que eu vivi. É uma história profunda. Então, quando olho para o céu, vejo velhos amigos e a lembrança de velhos amigos
Há 30 anos os senhor deixou o MIT para unir-se aos Peace Corps, uma organização de voluntariado. Por quê?
Eu percebi que tinha esquecido que a ciência é para a alegria e a verdade. Naquele momento, para mim, existia apenas a carreira. Eu decidi virar as costas para a ciência e começar uma nova vida. Mas as coisas não correram como eu queria.
Em que sentido?
Eles me pediram para ensinar Astronomia em Nairóbi, no Quênia. Eu percebi que ali também as pessoas queriam participar da maravilhosa discussão de como o mundo funciona. Lá percebi que a ciência era o talento que Deus me deu para aproximar as pessoas a Ele. Eu não esperava: o que Deus estava pedindo de mim, que eu amava completamente e pelo qual eu teria feito qualquer coisa, era exatamente o que eu queria fazer.
Qual foi o momento mais difícil como homem e cientista?
Eu nunca perdi a fé em Deus, mas perdi isso na ciência. Eu me vi trabalhando com pessoas que não se comportavam bem. Eu me perguntava por que eu deveria confiar numa ciência feita por homens que tratavam mal suas esposas ou estudantes. A falibilidade humana me fez duvidar da ciência como tal.
Como saiu disso?
A vida mostra que nenhum ser humano é sem pecado. Você também deve lidar com sua fragilidade. E descobri que a moralidade dos cientistas pode não ter consequências no seu trabalho científico. Com o tempo, percebo que me tornei mais “conservador”, porque aos poucos entendo as razões pelas quais a Igreja nos pede certas coisas. Mas aquela crise foi útil para que eu aprendesse a ser paciente com as pessoas e a confiar na Graça de Deus, que vem em nosso socorro para elevar nossa humanidade ferida pelo pecado original.
Em seu discurso em 14 de junho, o Papa fez uma distinção entre o conhecimento científico, o conhecimento metafísico e o olhar da fé. E depois disse: «A harmonia destes diferentes níveis de conhecimento leva à compreensão; e a compreensão – esperamos – nos abre para a Sabedoria». O que é a sabedoria para o senhor?
Seria necessário sabedoria para responder... (ri). Lembro-me de uma citação de um amigo meu, um cientista que se tornou um filósofo. Diz: os dados não são informações, porque são apenas números. As informações nos dizem de onde vêm esses dados. Informação não é conhecimento, porque o conhecimento está colocando informações num contexto para fazer com que as séries de dados interajam umas com as outras. O conhecimento não é a compreensão: uma coisa é dizer: “Roma é a capital da Itália”, outra coisa é se perguntar: “Por que Roma é a capital da Itália?”. E nenhuma dessas coisas coincide com a sabedoria. Ela é a capacidade de ver e entender cada uma dessas dimensões e colocá-las juntas, fazendo com que elas canalizem para um lugar ainda mais profundo. Então, talvez, o homem sábio é aquele que, com Sócrates, diz: «Eu sei que não sei».
Quando o senhor olha para o céu hoje, olha para ele de forma diferente de como quando começou a olhar para ele quando jovem?
Vejo a mesma beleza. Mas hoje eu a conheço pelo nome, eu conheço a história que levou os corpos celestes a ter essa cor, eu sei por que as cores são diferentes, eu sei por que em algumas partes do céu há mais estrelas do que em outras. E então eu me lembro da data em que vi uma estrela naquela noite particular, da outra estrela que eu descobri com aquele amigo com quem, então, nós tivemos uma conversa muito bonita. Lembro-me daquelas observadas junto com meu pai. Hoje, para mim, cada estrela está ligada a uma história, feita de coisas que eu estudei e de circunstâncias que eu vivi. É uma história profunda. Então, quando olho para o céu, vejo velhos amigos e a lembrança de velhos amigos.
Então o estupor não diminuiu.
Tornou-se muito, muito mais profundo.