Se Deus te perguntar
A Bíblia como lugar de perguntas e não de preceitos: dois estudiosos se confrontam e descobrem qual é o segredo do verdadeiro diálogo. Quem conta é um dos dois protagonistas, Lukasz Popko, monge polonês que leciona em JerusalémA Bíblia como um lugar onde Deus faz perguntas ao homem. Esse é o enfoque original do livro Perguntas de Deus, perguntas a Deus. Em diálogo com a Bíblia, publicado pela Libreria Editrice Vaticana com prefácio do Papa Francisco. Os textos sagrados costumam ser vistos como um catálogo de respostas ou mandamentos, e não como uma conversa entre Deus e o homem, e aqui a perspectiva muda. Os autores do livro são dois brilhantes monges dominicanos que conhecem a fundo os textos sagrados, o inglês Timothy Radcliffe, um notável especialista ao qual a Universidade de Oxford outorgou o título de Doctor of Divinity, e o polonês Lukasz Popko, professor da Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém. Conversamos com o Pe. Lukasz sobre essas perguntas.
Como surgiu esse enfoque?
Na verdade, a constatação de que a Bíblia faz perguntas importantíssimas chegou no final. Minhas conversas com Timothy começaram de um jeito bastante simples. Durante a covid, todas as semanas passávamos uma hora conversando sobre as Escrituras, preparando nossos sermões. E dessa experiência de diálogo – e por inspiração de Timothy – surgiu a ideia de um livro sobre o diálogo na Bíblia. Foi somente no fim que nos demos conta de que o diálogo é possível porque há perguntas. O verdadeiro diálogo requer uma pergunta verdadeira. O que nos permite avançar é uma pergunta adequada ou bem formulada. E as respostas abrem novas perguntas.
Isso lembra uma frase do teólogo Reinhold Niebuhr: “Não há nada mais absurdo do que a resposta a uma pergunta que não é feita”.
Mas ela é feita. Em minha experiência docente, grande parte do esforço pedagógico consiste em criar espaços onde os estudantes possam fazer perguntas. Só é possível avançar no conhecimento com a consciência de não saber, com a experiência de uma carência, uma ignorância, algo que não se compreende. Quem acredita que já sabe tudo está iludido.
Não é paradoxal que Deus tenha perguntas? Ele não sabe tudo?
As perguntas de Deus servem para preparar um diálogo. É uma pedagogia para despertar a curiosidade do homem, ou para trazê-la à tona. Digamos que você tenha um amigo que não esteja bem, ele sabe disso, mas não consegue dizê-lo. Uma pergunta tão banal como “como você está?” o ajuda a se pronunciar sobre si mesmo, e essa autorrevelação à base de perguntas e respostas lhe permite entender melhor quem ele é. O diálogo não apenas tem valor informativo, mas também relacional. Funciona mesmo que diga coisas óbvias, como o “eu te amo” de um homem a uma mulher. É algo que ela sabe, mas dizê-lo reacende o sentimento. Não se trata de mera informação, mas de algo muito mais profundo. O fato de Deus fazer uma pergunta faz com que o homem descubra algo sobre si mesmo e cria uma certa intimidade.
Ainda que sejam coisas óbvias?
Principalmente se forem coisas óbvias! A maioria de nossas conversas espirituais não contém novidades teológicas. O Natal, por exemplo, é sempre o mesmo, mas deve ser narrado sempre porque é a única forma de revivê-lo. Quando parentes distantes se reúnem, as mesmas histórias do passado são contadas porque isso mantém a família viva. O valor desses diálogos está em criar um relacionamento.
Os dois primeiros capítulos do livro se concentram nas perguntas de Deus a Adão (“Onde estás?”) e a Caim (“Onde está teu irmão?”). Ambos respondem pondo-se na defensiva. Adão se esconde para justificar que está nu, enquanto Caim diz que não é o guardião de Abel. Muitas vezes o homem se sente intimidado diante do Todo-Poderoso, o que é que permite um relacionamento livre?
Creio profundamente que um diálogo, mesmo que seja com alguém que se esconde, já é um começo. Não é toda a verdade, mas é o suficiente para estabelecer um relacionamento. Deus se conforma com o pouco que o homem pode lhe dar. Um menino de cinco anos não tem toda a linguagem filosófica necessária para descrever a si mesmo, bem como muitos adultos não conhecem a fundo seu coração. Os apóstolos de Emaús descobriram quem era aquele que estava na frente deles mais ou menos ao mesmo tempo, hesitantes no meio da conversa. Deus diz: ok, aceito, vamos começar a percorrer um trecho do caminho juntos, inclusive depois do pecado. Em nossa experiência humana, o diálogo pressupõe uma distância. Quando estamos muito perto de alguém que amamos, não falamos, somos felizes e não precisamos de palavras. Essa é a profundidade do misticismo, e também do eros. No momento da unidade mais profunda se silencia. Há um momento para o diálogo e um momento para o silêncio, e o diálogo é um momento dinâmico que nos conduz até esse silêncio de comunhão mais profunda ao longo de um caminho.
De modo que o diálogo é importante, mesmo que seja imperfeito.
O que importa é caminhar na mesma direção. A comunhão não vem no final, não falamos apenas quando nos entendemos. É por isso que Deus vai até onde Adão está. Ele está na defensiva, se esconde entre as árvores, na mentira ou na manipulação, não tem a coragem de se reconhecer, mas Deus vai ao seu encontro mesmo assim e, pouco a pouco, consegue restabelecer a conexão e a confiança perdida.
O Pe. Radcliffe cita no livro o lema da Academia Dominicana de Ciências Humanas de Bagdá, “aqui nenhuma pergunta é proibida”. Nem mesmo com Deus há perguntas proibidas?
Jesus grita na cruz: “Por que me abandonaste?”. É uma pergunta, sua pergunta ao Pai. Uma pergunta muito dramática que pode soar paradoxal. É possível que Deus abandone seu filho? Mas é uma pergunta fundamental, e é uma pergunta que cria comunhão. Por que você não estava lá? Por que está distante? Mas se eu te falo significa que você está presente, que expresso a minha dor e até a minha cólera, porque creio que você está presente e está me ouvindo. De fato, é o início da ressurreição.
As perguntas da Bíblia são muito lineares, quase elementares: “Onde estás?”, “A quem buscais?”, “Simão, tu me amas?”. O que nos diz esse estilo tão direto de Deus?
No fundo, pode-se dizer que Deus tem algo em comum com os sábios e com as crianças. Os pequeninos fazem as mesmas perguntas elementares que os filósofos. Mas talvez as perguntas mais simples sejam também as mais fundamentais e difíceis de responder. O que é a vida? Quem me fez? Quem eu sou? Muitas vezes nós, adultos, nos distraímos com muitas coisas, nos concentramos nos detalhes e perdemos de vista o que importa de verdade. De vez em quando, precisamos de algo ou de alguém que nos devolva o essencial. Com suas perguntas, Deus dirige nosso olhar para o mais profundo de nosso ser, como fazem as crianças ou os filósofos. A simplicidade para nós, adultos, é algo que nos custa. Talvez, depois do pecado original, tenhamos dificuldade de recuperar a integridade de nossa pessoa, manter nosso ser unido: mente, coração, emoções, relacionamentos…
Estamos divididos.
Falta-nos o vínculo entre essas realidades tão diferentes. Deus vai ao nosso encontro e nos dá esse vínculo. Um dos mandamentos de Jesus é amar a Deus “de todo o coração”. Acredito que nosso problema está no “todo”, nessa unidade da pessoa que as perguntas de Deus nos devolvem. Se não recuperarmos essa totalidade, no fundo, não seremos ninguém.
Você se refere à condição do homem de hoje…
Penso que é um risco para qualquer pessoa. No século XVII, o filósofo francês Blaise Pascal encontrou a imagem do rei que, com todo o seu poder, sempre precisa de distrações para não ser “mais infeliz do que o último de seus súditos”. Agora o perigo cresceu porque, com mais riqueza e tecnologia, todos temos infinitas possibilidades para não pensar nas coisas mais importantes.
O último diálogo do livro é entre dois homens da Igreja, os apóstolos Pedro e Paulo. Não aparecem nem Deus nem Jesus, e mais que um encontro é um desencontro que no final se recompõe. Radcliffe e você fazem uma comparação com a Igreja de hoje. Como podemos discutir abertamente a partir de posições opostas sem nos machucarmos? Onde está o ponto de unidade?
Comentamos a Carta aos Gálatas. Paulo se encontrou com Pedro uma primeira vez e então discutiram, mas agora Pedro mudou de ideia. Como é possível dialogar com alguém que primeiramente diz “A” e depois “não A”? Quem é você? No fundo, Pedro tinha um bom motivo: buscar a comunhão com seus irmãos. E talvez esse seja o desafio do Papa Francisco: construir uma ponte. É preciso ressaltar que Pedro e Paulo, em seu conflito, tiveram a mesma atitude que Deus teve com Adão: fazer uma pergunta e continuar dialogando sem perder nem a confiança nem a coragem, ainda que o diálogo não seja ideal.
No prefácio do livro, o Papa Francisco escreve: “Penso que Deus ama mais as perguntas que as respostas”. Que valor têm as respostas, então?
Elas nos permitem continuar a confrontar. Vemos que uma discussão foi boa quando, ao final dela, gostaríamos de continuar conversando. O risco é quando o conflito se torna quase um ritual e a discussão não nos permite dar passos. Os mandamentos não dizem: “Não se irrite”. Amar é muito mais profundo do que estar calado e fingir que está tudo bem. Desse ponto de vista, se entende o que o Papa diz. No entanto, há perguntas que manipulam. Por exemplo, as que os fariseus faziam a Jesus para colocá-lo em uma situação ruim ou para preparar uma armadilha. Mas Jesus não se retira, mesmo sabendo que estavam atrás dele. É como uma partida de tênis: você bate para que o adversário erre. Às vezes Deus joga conosco, bate na bola e responde, mesmo que nós não saibamos como jogar, fazendo com que a partida continue.
Deus não se escandaliza com nenhuma pergunta que venha dos homens?
Com nenhuma. É verdade que às vezes Ele não responde de forma direta. Na noite da Paixão, Jesus não respondeu às perguntas de Herodes nem as de Pilatos. Esse é o silêncio de Deus. Mas ficar em silêncio é uma maneira de responder. Pode-se falar com o olhar e deixar ao interlocutor um espaço para julgar. Às vezes Deus responde anos depois ou de uma forma inesperada. O importante é que o relacionamento continue vivo. A fé é ter a certeza de que Deus sempre responde.