Treviso. Uma estranha companhia

Combinam de jantar uma vez por mês para conversar sobre O senso religioso. Notários, sacerdotes, médicos, advogados. Crentes ou não. A maioria não conhecia CL, ou só ouviu falar. E, no entanto, veja o que tem acontecido numa cidadezinha italiana
Stefano Fillipi

Imagine um jantar com professores, médicos, notários, advogados, consultores fiscais, sacerdotes, jovens casais, engenheiros. A classe dirigente da cidade de Treviso, Região do Vêneto. Há um ano e meio, encontram-se uma quarta-feira por mês para ler e dialogar sobre O senso religioso de Dom Giussani. No final de 2017, separaram uma sexta-feira de dezembro, dentro dos milhares de jantares do período natalino, para uma reunião desta estranha companhia. Participaram mais de trinta pessoas, apenas quatro de CL. Gente com histórias diferentes, crentes ou não, pessoas que não conheciam o Movimento ou só de ouvir falar, alguns inclusive com uma opinião negativa. Como Adelino Bertoluzzi, sacerdote da província de Sant’Anna, em Santa Maria Del Rovere. Não gostava de CL, identificava como um grupo político, com orientações de centro-direita. Há uns dois anos, contudo, um amigo presenteou-lhe um livro de Dom Giussani. «E descobri um personagem emocionante, um verdadeiro profeta para a Igreja dos dias de hoje».

Naquela noite, Adelino foi o anfitrião. O jantar é servido em um salão por um grupo de paroquianos que colocou a mesa (cuidando de todos os detalhes, pondo, por exemplo, guardanapos de tecido com um lacinho dourado e uma estrelinha de Natal), preparou a comida e a serviu. À cabeceira estão sentados ele e o amigo que lhe deu o livro, Luca Antonini, professor de Direito Constitucional na Universidade de Pádua. O professor apresenta, mas é o padre que guia a noite. O tema do diálogo é o capítulo doze do livro, “A aventura da interpretação”, ou seja, a liberdade do homem. Adelino lê as principais passagens enquanto trazem a lasanha. De vez em quando, interrompe: «Belíssimo!». Para abrir o debate, distribui uma folha com alguns textos selecionados por ele: passagens de Julián Carrón, da Encíclica Gaudium et Spes, de São Tomás, do teólogo Giannino Piana. Seu background, seus autores de referência antigos e novos comparados com paixão. Dom Giussani permite-lhe reler e aprofundar a sua experiência.


O tema do diálogo é o capítulo doze do livro, “A aventura da interpretação”, ou seja, a liberdade do homem. Adelino lê as principais passagens enquanto trazem a lasanha

É algo que compartilha com os outros comensais. Ferruccio Bresolin, professor emérito de Economia na Universidade Ca’ Foscari de Veneza, fala da liberdade como «capital social» que permite a você não tanto iniciar uma empresa, mas sim entrar em relação com Deus, e se pergunta quais são as limitações da liberdade na realidade. Paolo Pauletto, chefe de unidade de medicina interna, em Treviso, retoma o Santo Agostinho que estudou no colégio. «Este capítulo me deixou sem palavras, à medida que a ciência avança, somos menos capazes de explicar o todo». Antonio Sacchetta, chefe de unidade do hospital Conegliano, cita Lutero e Kant, e fala do senso religioso como um «anseio primário». Samuele Busetto, professor de história e filosofia, pega um copo da mesa para explicar a liberdade como «capacidade do infinito». A capacidade é como a de um recipiente. Riccardo Rossano, advogado e diretor do Teatro permanente de Bari, diz que de Dom Giussani lhe chama a atenção a «educação para a liberdade», como algo «essencial para os jovens de hoje, desconectados da realidade», e convida a ler outro livro, Il senso della nascita (O sentido de nascer), que recolhe um longo diálogo com Giovanni Testori. Rossano acaba de chegar a Treviso, onde a sua esposa trabalha, enquanto ele muitas vezes está em Bari, mas esta noite os dois estão aqui: «Era importante demais estar aqui». Tiziano Barone, diretor da Agência Regional de Trabalho do Vêneto, conta o drama que vive diante dos 230 mil desempregados da região. «Sempre me pergunto qual é a verdadeira necessidade deles enquanto tento lhes buscar um trabalho».

Que desafio a liberdade! O diálogo torna-se intenso. Luciana Cocco, esposa do notário Lorenzo Ferretto, sentado ao seu lado, lembra os anos em que ensinava. «Deixava a porta da sala de aula sempre aberta. Os meninos tinham que ter consciência de que cada momento de aula é um ato de liberdade. Se queriam sair, podiam fazê-lo. Mas permanecer significava se envolver, estavam ali por sua própria vontade. A porta aberta era um sinal e a liberdade era sinal de amor». Elia Porcellato, engenheira, recorda que a liberdade também foi utilizada para alianças politicas, «no entanto, o que mais me impacta é pensar no amor de Deus que quis que nós fôssemos livres. Não seria tudo mais fácil se fôssemos menos livres?». Eva Bredariol, advogada, não pode evitar as referências bíblicas; a sua homônima poderia ter dito não à serpente tentadora. Entretanto, ela resolve isso muito bem: «A mulher foi o instrumento para nos tornar conscientes do bem e do mal». E para Jean-Baptiste, sacerdote de Burkina Faso e hóspede durante um ano do padre Bortoluzzi, a liberdade como realização de si faz-lhe recordar o seu pai morto na África há alguns anos. «Contou-nos que estava supercontente porque havia conseguido algo grande. Repetia-nos sempre: fiquem perto de Jesus e não terão medo de nada».

Elia pergunta: «O que mais me impacta é pensar no amor de Deus que quis que nós fôssemos livres. Não seria tudo mais fácil se fôssemos menos livres?»

Duas horas em um ambiente impossível de encontrar em outros lugares, com gente dos mais variados tipos, mas que se escuta, se respeita, fala na sua vez, não interrompe. São também personalidades de alto nível, mas é evidente que os bons modos por si sós não explicam a atenção, o interesse e o silêncio coletivo quando alguém intervém. Alguns chegaram com o livro de Giussani, outros com o tablet, muitos fazem anotações enquanto comem, uma pessoa trouxe a Bíblia. Celulares que tocam: nenhum. Talvez as refeições nos mosteiros sejam assim, comendo enquanto alguém lê.

«Justamente da ideia do mosteiro nasceu tudo», conta Antonini. «Uma realidade pequena, capaz de influir na sociedade». O seu mosteiro é a casa dos Memores Domini onde vive. «Muitas vezes convido as pessoas com quem me encontro. E é inevitável que nasçam curiosidades e perguntas sobre a nossa vocação e a sua origem, que é Dom Giussani. Com alguns dissemos: por que não marcamos com mais frequência para abordar o PerCurso de Dom Giussani? Faz quase três anos que o jornal Corriere della Sera voltou a publicar os seus livros, isso quer dizer que eles não são um patrimônio somente de CL e dos seus membros, mas de qualquer pessoa sedenta de vida, inclusive sem pertencer ao movimento. Muitos me agradeceram por lhes ter apresentado um pensador e educador que precisavam encontrar».


O jornal "Corriere della Sera" voltou a publicar os seus livros, isso quer dizer que eles não são um patrimônio somente de CL e dos seus membros, mas de qualquer pessoa sedenta de vida, inclusive sem pertencer ao movimento

O primeiro a agradecer é Adelino. Em Treviso é muito conhecido, é um sujeito aberto a muitas realidades, dos empreendedores aos imigrantes. É conhecido como aquele que se faz sempre. «Quando nos conhecemos», conta Antonini, «nos perguntamos o que podíamos fazer por Treviso. O Papa Francisco convidava-nos a ser uma Igreja “em saída”, a sair às periferias existenciais, não só geográficas. A nossa cidade continua sendo rica e burguesa, com exemplos de generosidade excepcionais, mas que corre o risco de perder o sentido do que se faz». Os jantares com amigos em casa converteram-se em encontros mensais em um restaurante cujo nome é bastante emblemático: «Porquê». Cada um convidou os seus amigos. «O que mais chama a atenção», comenta Antonini, «é que Giussani fala à sua experiência, a faz emergir, se converte em um companheiro de caminho decisivo. O interesse pela origem da nossa vida é imensamente maior que todos os discursos acerca do futuro da cidade, das estruturas, da questão civil».

«O interesse pela origem da nossa vida é imensamente maior que todos os discursos acerca do futuro da cidade, das estruturas, da questão civil»

Ao princípio, custava-nos entender o texto, a linguagem de Giussani era difícil. Fez-se um caminho, aceitou-se um desafio com fascínio e fidelidade. E agora os diálogos são só sobre Giussani. «A sua modernidade me fascina», diz Bortoluzzi, «a maneira com que intuiu, décadas antes, a confusão que reina hoje em dia. Mas também a sua capacidade de propor a todos não um personagem do passado, mas sim uma pessoa presente».

Trazem o panetone coberto de creme, falam de uma peregrinação à Terra Santa para agosto. A última surpresa é quando nos levantamos da mesa. Ainda não é o momento de nos despedirmos porque todos ficam recolhendo os pratos e talheres, e fazem isso de forma espontânea, não é necessário pedir a ninguém. Para Silvia Biscaro, advogada, é a primeira vez: não foi convidada por ninguém de CL, mas pelo professor Bresolin. À saída, confessa a Antonini: «Você não faz ideia de como estava buscando um lugar como este».