Moscou. «Alguém estava passando… sem que eu me desse conta»
Sua aventura moscovita durou quase dez anos. «Não parti por buscar algo que me faltasse, mas pela certeza de que já tinha tudo»«Cada batizada e batizado é missão», afirma o Papa. Não precisamos ter nenhuma característica especial ou nos formar na faculdade de missionários para levar Cristo ao mundo; a única coisa necessária é abraçar e tratar de viver, na vida cotidiana, a graça que recebemos no Batismo, isto é, esta misericórdia infinita de Deus que quis nos fazer, literalmente, membros de seu Corpo. Esta foi também a razão que levou Dom Giussani a não contemplar os votos tradicionais para os membros da associação Memoris Domini, da qual pertenço desde 2001. «A associação Memores Domini não comporta a explicitação, nos clássicos “votos”, da perspectiva de vida com a qual a pessoa se compromete. E isto não por uma espécie de reticência, mas porque pensamos que o Batismo e a Confirmação podem bastar para fundar uma entrega total a Cristo e à Igreja, sem que se tenha que recorrer à característica formal da vida religiosa que se expressa juntamente nos votos. A minha imagem é a de um leigo que vive livremente uma existência completamente imersa no mundo, com uma total responsabilidade pessoal».
Quando, no verão de 2009, durante os exercícios espirituais dos Memores Domini foi pedida disponibilidade para ir a Moscou, para ensinar espanhol em uma universidade ortodoxa, o meu coração não hesitou por um momento em elevar ao Senhor a resposta de Samuel: «Aqui estou, Senhor, para fazer a tua vontade». Uma resposta que não nasceu de um raciocínio, e, muito menos, de uma vontade especial ou inquietação “missionária” da minha parte. Conto para vocês os antecedentes. Naquele momento, eu tinha um trabalho que eu amava, uma bonita experiência de vida em comunidade, uma situação familiar boa e, na medida do possível, tranquila... enfim, não tinha nenhuma vontade de deixar essa vida. Por outro lado, o trabalho universitário havia atraído a minha atenção e, de fato, era algo a que havia renunciado “a princípio” na minha vida profissional. Só havia um ponto de inquietação naquela situação de prazerosa harmonia: a impressão forte que me fez naquele verão, antes dos exercícios, de que eu estava “me acostumando” com tudo o que tinha e o desejo de não perder a imponência do Mistério.
Na primeira noite dos exercícios, Julián Carrón começou dizendo se havia alguém dos ali presentes que ainda pudesse dizer, depois de tantos anos, que Cristo era o único – o único! – necessário para ser feliz. Essa pergunta cravou em mim como um punhal. Eu atribuía a Cristo tudo o que tinha, com certeza, não havia separado nunca aquelas coisas que eu considerava como dons (a casa, o trabalho, a família, os amigos) de Quem os dava, e sempre agradecia por eles... mas aquela sensação de costume... e se tudo isso não estivesse presente?, nem essa casa, nem esse trabalho, nem esses amigos? Eu, com a minha experiência, nesse momento, sem nada que me sustentasse, poderia dizer que só precisava de Cristo para ser feliz? Por isso, quando no dia seguinte pediram a disponibilidade para Moscou, com um aviso ao qual faltou escrever o meu nome (pois o perfil que pediam para essa vaga coincidia com o meu e talvez com o de mais uma ou duas pessoas das mais de 1.500 que se encontravam ali) eu não podia deixar de sentir a voz do Senhor que, como aconteceu com Pedro, dois mil anos depois, me dizia: «Isa, você me ama? Você pode dizer ainda que eu sou o único de que precisa?». E eu, com a experiência daqueles anos, cheia de erros, fraqueza, pecado e, sobretudo, de certeza em Seu amor, só pude responder como o apóstolo: «Sim, Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que te amo».
Assim começou esta aventura moscovita, que durou quase dez anos – de setembro de 2009 a maio de 2019 – e à qual parti não por buscar algo que me faltasse, mas pela certeza de que já tinha tudo.
Foram anos belos e muito intensos. Feitos, como a vida, em partes iguais de dor e de alegria, de sacrifício e de esperança, de risco e de certezas. Para mim é muito difícil condensar em poucas linhas tudo o que recebi desta experiência, tudo o que aprendi e que não quero perder. Vou tentar resumir nos dois aspectos que, para mim, foram fundamentais no meu caminho de fé durante esses anos e que me permitiram adentrar, um pouco mais, no conhecimento do Mistério de Cristo.
O primeiro foi o encontro com a fé e a tradição ortodoxa, com este «outro pulmão da Igreja», usando a expressão de São João Paulo II, e descobrir com ela não um antagonista ou, nem sequer, um parente longínquo, mas realmente uma experiência comum, de fraternidade real – ferida, muito ferida, mas intacta em suas raízes e em sua essência salvífica – vivendo a qual, verdadeiramente, se pode «voltar a respirar com dois pulmões». Lembro que, quando comecei a trabalhar na Universidade São Tikhon (uma universidade que nasceu de uma fraternidade de sacerdotes ortodoxos, como uma obra de caridade após a queda do comunismo e que agora conta com nove faculdades de estudos humanísticos) uma amiga italiana, que já trabalhava lá, me disse que, para ela, esse trabalho era como a oportunidade de colocar um pouco de bálsamo na ferida do lado de Cristo. Essa frase ficou impressa no meu coração e foi a pauta do trabalho de todos estes anos. A surpresa foi poder viver a unidade dentro da ferida, fazer uma experiência de companhia profunda, a partir da fé, com amigos, colegas, alunos ortodoxos que me testemunharam a proximidade de Cristo e foram para mim esse mesmo bálsamo. Uma experiência de unidade que aconteceu em muitas ocasiões e que pude experimentar e desfrutar em toda amplitude da Igreja, seja entre os amigos católicos e ortodoxos como também no que se refere à vivência das diversas realidades eclesiais (CL, Caminho Neocatecumenal, Focolares, Opus Dei, Companhia de Jesus...). Realmente pude tocar toda amplitude e profundidade do Corpo de Cristo. Provavelmente esta unidade entre as igrejas levará muitos anos em se fazer visível oficialmente, não se dará, certamente, a um nível hierárquico nas próximas décadas, pois há ainda muitas pretensões, muitos preconceitos, muitas feridas históricas e, sobretudo, muita política e, até que aprendamos a dar a César o que é de César, não daremos a Deus tampouco o que seja Seu. Mas eu aprendi, vivi, saboreei esta unidade verdadeira, que nasce só d’Ele e do que o Batismo faz conosco, quando deixamos que seus efeitos nos definam.
O segundo aspecto foi a descoberta de que a missão é, antes de tudo, para si mesmo, pois coincide com essa viagem ao mais profundo do seu ser, porque só quando você encontra Cristo «que vive em você», é possível levá-lo ao mundo. Antes de partir, uma amiga tinha me dado um cartão com uma frase de Dom Giussani, que ele tinha dito a uma pessoa que ia de missão: «Você vai lá para viver a sua relação com Cristo e basta». Esta frase esteve em todo momento visível no meu quarto assim como na porta estiveram as palavras que Moisés dirige ao Senhor: «Se Tu não vens comigo, não me movo daqui», de modo que não podia sair do meu quarto sem as ler. Posso dizer que estes anos foram o modo de empreender esta viagem em direção ao conhecimento de mim mesma para poder começar a me libertar de mim mesma. Porque nesta travessia tive que lidar com tudo aquilo que carregamos dentro de nós e que nunca queremos olhar, a fraqueza, a inutilidade, o próprio mal, a impaciência, a mentira da própria imagem, a mesquinhez mais absoluta. Não, eu não estou exagerando. Vi cada uma destas coisas vir à tona em grandes e pequenos exemplos (que não vou enumerar), mas tudo isso era necessário, como dizia Mounier («é necessário sofrer para que a verdade não se cristalize em doutrina»). E a verdade, a verdade de mim mesma, é a qual proclama São Paulo: «Quando me sinto fraco, então é que sou forte», porque só neste ponto de encontro com a própria impotência, nasce pura e simples – carregada de uma doce dor – a consciência de que o meu nada é redimido e salvo pelo seu Tudo, de que basta reconhecer a minha necessidade d’Ele para voltar a sentir o seu abraço. Lembro-me de um momento que significou um antes e um depois neste caminho. Estava passando por uma temporada ruim, marcada por algumas feridas causadas em relacionamentos muito queridos; sentia-me um pouco abandonada e, talvez, traída. Por outro lado, o trabalho estava me pesando e repetia para comigo mesma que o que eu fazia lá poderia fazer em qualquer outro lugar – nada de especial –. O idioma também me dava dores de cabeça e, dentro da vida da comunidade, sentia-me também bastante fria e apática... enfim, não via por nenhum lado o que nós pensamos que são “frutos da missão”. Nesse estado caí um dia de joelhos e, enquanto rezava, eu me dei conta de que toda aquela circunstância era privilegiada para mim. Era o Senhor que, como amado ciumento, me dizia: «Isa, não vou deixar que você se apegue a nada que não seja Eu. Nem à amizade, nem ao sucesso laboral ou “missionário”. A nada. Só lhe falto eu». Perceber isto me encheu de uma paz e de uma ternura imensas e foi o início de uma libertação que me permitiu depois – e continua o sendo agora – desfrutar cada vez mais de tudo o que encontrava, das pessoas, do trabalho, de tudo. Porque tinha começado a ultrapassar os empecilhos que nos impedem normalmente de vivenciar esta alegria, os empecilhos do próprio “eu”, da mania de ser o centro da vida e de não dar espaço a Ele, que é o único que pode, realmente, amar tudo o que somos.
Quando se alcança esta consciência de si mesmo, se é missionário, porque a certeza de ser amado, de participar deste Amor, se reflete no rosto, nos atos, inclusive nos mais cotidianos e aparentemente pequenos. Em dez anos acontecem muitas coisas e me foi dado ver muito. Fui testemunha de grandes milagres, de vidas tocadas pela mão do Senhor; com os amigos da comunidade de CL e outros fizemos grandes coisas, eventos culturais (exposições para o Meeting de Rimini, e por diversos lugares da Rússia), acordos acadêmicos (entre universidades ortodoxas e católicas, também com escolas), reuniões com pessoas de diversos países onde assisti a cenas de perdão e reconciliação para outros impensáveis – entre russos e ucranianos – e um longo etc. Mas, embora pareça surpreendente, não são estas coisas – grandes, bonitas, cheias de significado – o que mais me comove; o que trago gravado a fogo foram as palavras e reações de algumas pessoas que, antes de voltar para a Espanha, manifestaram para mim de diversas maneiras que viram a sua vida ser “tocada” pela nossa relação nestes anos. E fico comovida precisamente porque não eram pessoas com as quais tinha me envolvido conscientemente, antes pelo contrário, nada havia nesses relacionamentos que me indicasse que estava “acontecendo” alguma coisa e, no entanto, Alguém estava passando. Através de mim, nos meus afazeres mais cotidianos... e sem que eu me desse conta. Basta o nosso sim, no que fazemos, lá onde quer que estejamos, para que Ele passe e mude o coração. E, como me dizia um amigo há algum tempo atrás, «nós não temos nem ideia das dimensões do nosso “sim”».