Irlanda. «Vamos olhando»
As feridas da infância, as dores de hoje, a vida na Irlanda. E aquele contato procurado no Facebook… O testemunho de Maria, que se reconhece no “cego de nascença” do Evangelho. «Pode um fato tão feio abrir-me para uma cosa tão bela?»«Deus não pode fazer nada sem uma disponibilidade nossa.» As palavras de Julián Carrón no Dia de início de Ano são as mesmas pelas quais Maria começa para relatar o que lhe aconteceu nos últimos meses. Diz que nunca havia entendido a história do “cego de nascença” do Evangelho, como agora que também ela tornou a “enxergar”. «Ainda não entendo muitas coisas da minha vida, mas uma coisa sei com certeza: a escuridão de antes não existe mais», conta ela falando de sua casa em Carlow, na Irlanda, onde vive com o marido Paul e dois filhos pequenos.
A sua casa não foi sempre esta. Na Itália, onde nasceu 34 anos atrás, muitas vezes mudou de casa. Aos três anos, após ter sido afastada dos pais que tinham graves problemas de dependência de droga, coube a ela uma extenuante peregrinação entre abrigos, juizados e institutos. Uma viagem que pareceu terminar quando, aos sete anos, um casal de Ariccia entrou com o processo de sua adoção. «Não foram anos fáceis, nem para eles nem para mim. Eu era uma menina cheia de raiva e eles já tinham três filhos… Eu lhes causei muito cansaço. Porém neles sempre eu vi uma tenacidade inexplicável que não lhes permitia desistir de mim». Como no dia da Crisma, quando Maria se trancou no quarto porque não queria fazê-la. A mãe, depois de umas negociações, conseguiu fazê-la abrir: «Lembro-me dela sentada na cama enquanto eu, já arrumada e penteada, lhe perguntava: “Mas quem é afinal esse Deus? Eu não o entendo…”. Ela não cuidou de me explicar, e eu talvez comecei exatamente ali a entendê-lo um pouco mais. Devia ser alguém paciente, porque naquele dia eu não recebi a Crisma», conta Maria.
Daqueles anos turbulentos, ficam algumas imagens que se distinguem de todo o resto na sua memória: os cartazes de Páscoa e Natal de CL que, em rodízio, entravam e saiam da cozinha, e uma foto de Dom Giussani abraçando um amigo pregada na geladeira. «Aqueles rostos me falavam de um encontro verdadeiro, definitivo.» O “para sempre” que lhe faz falta, Maria o encontrava também durante as férias de verão, quando a sua família passava junto com outras famílias do Movimento algumas semanas na Calábria: «Os passeios, as brincadeiras, os cantos à noite: ali eu olhava ao vivo aquilo que podia ler afixado nas paredes de casa».
Aos 18 anos, a viagem recomeça. Maria arruma as malas e voa para a Irlanda. «Queria aprender inglês e procurar um trabalho, mas na realidade eu era impelida pela necessidade de entender quem eu era realmente». Na Irlanda troca muito de casa e frequentemente se encontra envolvida em relações que não lhe agradam. Também no trabalho não consegue encontrar estabilidade: trabalha de garçonete, de visagista, de educadora. A nota constante nesta tentativa de descobrir a própria identidade foram seus pais. Não passava um dia sem um telefonema da Itália e, se ela mesma não viajasse até Ariccia para visitá-los, eles é que se deslocavam. «Afinal, quando encontrei Paul e formamos família, eles foram fundamentais. Porque, mesmo se as coisas começavam a se ajeitar, não me bastavam».
Com a chegada do primeiro filho, Michael, Maria começa a sofrer de ataques de pânico: «Paradoxalmente, no momento de maior estabilidade de minha vida, veio à tona toda a minha fragilidade. Eu tinha medo de não ser uma boa mãe, sentia-me inadequada». Sua mãe fica com ela em Carlow por um longo período. Uma manhã, pouco antes de regressar à Itália, voltando da Missa lhe entrega um papelzinho. É uma oração da manhã que encontrou na igreja. Diz-lhe: «Maria, vamos rezá-la juntas, confiemos ao Senhor cada dia, também quando estivermos distantes, e vamos olhando o que Ele vai conseguir fazer disso».
“Olhar” começa a tornar-se um verbo muito importante para Maria. «Precisava rezar, porque aquilo que eu via de mim não me satisfazia. Parecia-me que me escapasse continuamente o fundo de mim, das pessoas que amava e das coisas que fazia». Uma necessidade que explode no final de 2019, quando Matthew, o irmão de Paul, morre repentinamente. «Sabíamos que tinha problemas com droga e, após alguns meses de internação, o hospedamos na nossa casa para ajudá-lo a recomeçar». Para ela aquela morte é como uma ferida que volta a sangrar. Como um disco, ia repetindo a si mesma: «Aí está, não se esqueça de onde você vem… é a sua maldição». Mas nem mesmo estes pensamentos conseguem travá-la. «Mais forte que a dor provada, havia o desejo de podê-la viver sem desespero. Foi assim que certa manhã levantei, peguei o celular, abri a página do Facebook de CL e perguntei se havia alguém da comunidade na Irlanda. De noite, Mauro de Dublin fez contato comigo, e me convidou a um encontro». Maria não pensou duas vezes. Mesmo tendo que viajar de ônibus duas horas e com as previsões meteorológicas péssimas. «Entrei encharcada naquela sala, não conhecia ninguém. Por um instante senti um desconforto fortíssimo. Depois compareceu o Mauro para me acolher: “Bem-vinda! Mas o que será que há aqui para arrastá-la fora de sua casa com este tempo?”. Eu lhe disse que essa era também a minha pergunta».
Depois daquele primeiro encontro, Maria mal conseguiu participar de mais um. Com o confinamento, as Escolas de comunidade se realizaram somente via Zoom. «Entretanto para mim eram, para todos os efeitos, encontros: eu os passava olhando os rostos e escutando as coisas que esses amigos desconhecidos contavam. E tudo aquilo que diziam tinha um nexo comigo. Eu me perguntava: “Mas como é possível que um fato tão desagradável me abra para uma coisa tão bela?”»
Paul, mesmo não sendo entusiasta destes encontros, não pode deixar de reconhecer que Maria não é mais a mesma. Mas, enquanto para ela até os ataques de pânico passaram, ele, depois da morte de Matthew, ficou como que apagado e não consegue mais crer nessa “história” de Deus. Afinal, porém, faz algumas semanas chegou em casa trazendo um presente para Maria. «Eu abri o embrulho e dentro estava uma Bíblia. Era como se ele me dissesse: “Vá você em frente por essa estrada. Fique disponível ao menos você”». Maria percebe toda a responsabilidade disso, mas não está sozinha. Até mesmo as crianças, antes fonte de preocupação, agora as tem como companheiros de caminho. Recentemente, certa noite estando à mesa, Michael, 5 anos, pergunta à queima-roupa: «Na sua opinião, Deus terminou de criar?» Maria leva um tempo engolindo uma mordida enquanto pensa nos últimos meses, naqueles fatos grandes e pequenos que conseguiram tocá-la tão profundamente: «Deus não termina de criar, todo dia continua a fazer muitas coisas no mundo e também dentro de nós. A mim, por exemplo, continua doando um montão de presentes. O último é essa sua pergunta».