Los Angeles. «Eu serei esse coração»

Na Los Angeles Habilitation House se aprende a recomeçar, sempre, a cada dia. E o que acontece, no meio da pandemia, nessa ONG que gera empregos para deficientes e veteranos de guerra? Guido Piccarolo e Nancy Albin contam a vida de seus “meninos”
Paola Bergamini

No ponto de ônibus, Anthony olha para o relógio, para a folha que segura nas mãos e pensa: «Nancy escreveu que devo pegar o das 11h05. Está com atraso de dois minutos. Vou perder a hora!» Poucos instantes depois, chega o ônibus. Embarca, junto com uma mulher que o agride: «Você está louco? Quer infectar todos nós?» Anthony se sente perdido, olha de novo para a folha e lê: «Use sempre a máscara». Imediatamente, tira do bolso da jaqueta o equipamento de proteção e o põe. Respira aliviado.
Irá atravessar Los Angeles, mas com os assentos limitados em quotas, devido ao lockdown, pode se sentar e olhar a sua cidade pela janela. Parece-lhe tão estranha, contida pelo efeito da pandemia. Uma hora depois, chega ao seu destino: Harbor Regional Center. Quem o acolhe sorrindo, tão logo entra no salão do andar térreo, é Guido: «Aqui está você! Pontualidade máxima. Podemos começar».
E logo vêm as primeiras instruções: «Este é o novo detergente que vocês devem usar para as mesas de escritório, passando o pano duas vezes. Nancy lhes mostrará mais uma vez como fazer».
E chega a hora do treinamento para os faxineiros da Los Angeles Habilitation House (LAHH), uma obra sem fins lucrativos. Quantas vezes já repetiram aquela explicação tão simples aos vinte funcionários? Quem nos relata é Guido: «Os nossos “meninos” têm autismo, síndrome de Down, retardo cognitivo e outras deficiências de aprendizagem. Toda mudança da rotina de trabalho deles é uma complicação, deixa-os em crise. Precisamos recomeçar sempre, com paciência. Desde março, uma vez por mês, fazemos duas horas de formação. E todo dia estamos ali com eles».
Guido Piccarolo é italiano e chegou aos EUA em 1993. Junto com Nancy Albin, que como ele é dos Memores Domini, em 2008 fundaram esta obra que cria e gerencia oportunidades de trabalho para deficientes e veteranos de guerra.

Quando nos EUA começou o lockdown, a maior parte dos escritórios fechou e, em decorrência disso, as faxinas deixaram de acontecer. Ficaram abertos só aqueles tidos como essenciais, como os da Guarda Costeira ou do departamento de assistência às famílias carentes. E eles precisavam de manutenção, pois sabemos que desinfetantes e novas formas de limpeza são elementos fundamentais para contornar a propagação do vírus. Assim, «como nós oferecemos nossos serviços a escritórios desse tipo, foi possível dar prosseguimento ao trabalho, o que não aconteceu com outras agências», explica Nancy.
Pela primeira vez, Anthony, Stephen e os outros jovens que normalmente são considerados marginalizados, cumprindo a tarefa mais humilde, tornaram-se fundamentais. E foi Guido quem lhes disse isso, na hora do treinamento: «Somos essenciais. Já pensaram? O nosso trabalho é essencial para que possamos seguir em frente». Falava no plural e, conforme esta história avançava, compreendia-se o que estes “meninos” são para ele e Nancy.
Os escritórios que continuaram abertos, tiveram de reduzir o horário de trabalho, o que acarretou uma diminuição da demanda do serviço prestado pela LAHH. Menos horas, menos faturamento. Por conseguinte, menos salário. Essa deveria ter sido a linha a ser seguida, pois nos EUA não há o auxílio emergencial.
Mas, para os “meninos”, aquela era a única fonte de sobrevivência. Portanto, foi tomada a decisão: nenhuma detração, salário a 100%. «Quando teve início a emergência, pensamos que ficaríamos sem trabalho», diz Nancy. «A realidade foi maior que nossos pensamentos. Deu-nos nova oportunidade. Então o critério que nos moveu foi: muito recebemos, muito daremos.»



Em abril, quatro funcionários, devido a situações familiares e de doença, por breve tempo tiveram que ficar em casa. Então Nancy e Guido vestiram o uniforme, pegaram spray e panos e os substituíram. «Diante do imprevisto, ou você se deixa tomar pelo pânico ou o percebe como um sinal do Senhor, da sua companhia. Assim, você não está sozinho e se sente mais livre frente às circunstâncias. E, digamos, também criativo. Penso sempre que, se o Senhor nos conduziu até aqui, Ele nos fará entender como nos mover. Se tivermos de fechar, sem fatalismo, é porque há algo melhor em jogo. Precisamos só ter olhos para ver», disse Guido.
Em 2018, John Walker, idealizador de um importante sistema de limpeza, pediu a Guido e Nancy que chegassem um dia antes da feira que todo ano ele organizava para as empresas de limpeza. Nada comercial, mas uma noite de gala, com direito a premiação para os funcionários que tinham se destacado em seu trabalho, realizando-o de um modo especial. Disse-lhes: «Vocês são os únicos que compreendem as palavras que repito quando entrego a medalha: obrigado, porque todo dia, limpando, nos permitem fazer o nosso trabalho. Vocês são numericamente os menores, mas entenderam o coração desta iniciativa. Por este motivo, lhes peço que ajudem minha esposa nas próximas edições».
Naquele momento, Nancy e Guido ainda não sabiam que ele estava doente. E poucos meses depois ele veio a falecer, tendo feito um pedido antes de partir: que no lugar de levarem flores, fossem feitas doações à LAHH.

Neste ano, devido à emergência da covid, a feira não pôde ser organizada. Mas Guido e Nancy queriam honrar todos os seus “meninos”. Agora, mais do que nunca, nada os detém.
No meio da manhã do dia 9 de setembro, o estacionamento do Harbor Regional Center estava estranhamente lotado. Mais de cem pessoas tinham saído do escritório, em pleno horário de trabalho e esperavam o início da cerimônia de agradecimento para os “meninos” da LAHH, em reconhecimento pelo trabalho realizado. A ideia foi da Nancy e, não podendo executá-la na sede, por falta de espaço, pensaram no estacionamento, convidando os funcionários. Os “meninos” lá estavam, todos alinhados, emocionados. Não esperavam por aquela homenagem, nem por um público tão numeroso. Era impensável, para a mentalidade americana, um intervalo daqueles.
Quando todos já estavam presentes, Guido explicou: «Estamos aqui para lhes agradecer o trabalho que fizeram. A palavra ‘’agradecer’’ deriva de ‘’graça’’, que em inglês se traduz com ‘’bless’’, ‘‘bendito’’. Dizer-lhes ‘’agradeço’’ significa dizer-lhes que vocês são um bem para mim, para Nancy, para todos. E agora a premiação. Iniciamos com David. Venha!» A cada um foi sendo entregue uma placa, um livrinho com a história de cada um e depois... os presentes aplaudiram de pé, como se fosse a festa de formatura de seus filhos. Para o encerramento da cerimônia, Nancy e Guido tiveram uma ideia criativa: convidaram o público presente para se dirigir a um caminhão que ali chegara para a ocasião, de onde foi sendo servido sorvete para todos.

Tendo a casquinha de sorvete numa das mãos, o diretor administrativo de um dos escritórios onde a faxina era realizada se aproxima de Nancy e lhe pergunta: «Mas quem são vocês?» «Nancy e Guido. Os que o senhor sempre viu, fizemos apenas algo a mais. Temos a graça de estar com essas pessoas que acompanham a nossa vida. É disso que vem a nossa alegria».
Um por um, os “meninos”, a maioria afro-americanos, aproximam-se para cumprimentar os presentes. Coincidentemente, eram os dias dos violentos protestos raciais que inflamavam os Estados Unidos. Mas ali estava um grupo de homens contentes, que estão juntos não pela sua origem, mas por merecerem um prêmio, em decorrência do trabalho realizado com amor. «Ainda bem que não foi possível fazê-lo no escritório. As pessoas viram uma realidade que aprecia a vida por aquilo que é, viram uma esperança em ato. Mas sem a pergunta do diretor administrativo, talvez eu não teria percebido isso. Fez-me levantar o olhar», disse Nancy.
«Estamos admirados com tudo o que acontece em nós e em nossa volta. Mas como é possível este olhar novo? Porque existe alguém, o padre Carrón, que nos olha assim e nos impele a olhar um Outro. O seu olhar é o que nos faz ver e abraçar como o Senhor se faz presente na vida diária, até nos detalhes», explica Guido, que ainda acrescenta: assim como Steven, Brandon, Michael e os outros, quando for possível, vão sair. A ideia primordial, com efeito, é ensinar um trabalho e um modo de estar no trabalho. Acompanham-nos até encontrar um novo afazer. Foi assim para os 120 “meninos” que já passaram pela LAHH. Mas nunca os abandonamos. Mantemos contato sempre».

«O mesmo ocorre com os veteranos de guerra. Hoje, cinco veteranos trabalham em San Diego, no hospital da Marinha em funções administrativas. Devido ao que viram ou fizeram, carregam dentro de si feridas incuráveis. Nós os ajudamos, a partir do trabalho, a conviver com a dor, o medo, o mal que sentem», explica Nancy.
Elisabeth, que tinha sido fuzileira naval no Iraque, esteve com eles de 2013 a 2015. Levou três anos para recuperar a autoestima e crer nas suas capacidades. Até que lhe surgiu a possibilidade de um novo trabalho. Passados seis meses, ela convidou Guido e Nancy para jantar. «Soube que você é muito estimada, que trabalha bem», disse-lhe Guido. «Sim. Porém sinto falta de vocês dois. Há alguns dias, dizia a mim mesma: por que tenho esta saudade? Eles ainda são meus amigos, mantemos contato. Até que entendi: falta-me o coração deles». «E hoje, onde está esse coração?», pergunta Nancy. «Ninguém me olha como vocês me olhavam. Mas hoje sou eu que posso ter aquele mesmo coração. Eu serei esse coração, ali no trabalho».
Recentemente, Nancy e Guido estiveram um mês na Itália para conhecer alguns projetos que fossem adequados para atuar com os seus “meninos”. «Há um ano, começamos a pensar numa oficina para preparar massa fresca. A covid parou tudo. Mas agora esperamos voltar aos trilhos. Juntou-se à massa a ideia de produzir o azeite italiano em Los Angeles. Veremos o que a realidade vai pôr na nossa frente. Basta seguir», disse Guido.