Estados Unidos. APAC, o impensável é possível
A apresentação num presídio da Louisiana de um documentário sobre o método de detenção “sem guardas” nascido no Brasil dos anos setenta. A “première” que antecipa um tour por todo o país. Eis como nasceu a ideia. E o que tem geradoTodos levantaram a mão, inclusive os guardas. «Era a resposta à pergunta: “Quem acha que aqui também é possível?” Mas também era o jeito mais direto para dizer: “Sim, queremos. É o que nós também queríamos”.» Interior do presídio, noite. A cena é o salão da prisão de Lafourche, Louisiana. É aí que, no dia 27 de maio, foi projetado pela primeira vez o filme Unguarded, o documentário de Simonetta d’Italia-Wiener sobre as APACs, as “prisões sem guardas” nascidas no Brasil em 1972, da tentativa de Mário Ottoboni, um advogado que tinha na cabeça uma ideia, claríssima: ninguém é só o mal que cometeu, não importa a gravidade. E todos podem mudar, se confiarem neles. Desta certeza – e de um trabalho que se ampliou para dezenas de voluntários, juristas, magistrados – nasceu uma rede de dezenas de cárceres alternativos, no Brasil e no mundo. Não têm arame farpado, grades, carcereiros. Mas funcionam. Ajudam de verdade os detentos – aliás, os recuperandos, como são chamados lá – a reconstruírem suas vidas.
É por isso que detentos e policiais de Lafourche, duas horas depois dos créditos, ainda estavam discutindo, comentando, contando. «Para mim foi regenerador, um lembrete de por que venho trabalhar toda manhã», escreveu no dia seguinte Jessica Davis, diretora do Gabinete do Xerife do Condado: «Histórias como essa alimentam meu desejo de ver algo diferente para os homens e as mulheres que estão aqui dentro. Os detentos são Seres Humanos, iguais a nós». Mais ou menos as mesmas palavras que ficam na entrada de cada APAC: «Aqui entra o homem, o delito fica lá fora»…
Foi preciso três anos de trabalho para chegarem a essa estranha “première” atrás das grades. E Simonetta, italiana há três anos em Nova York, onde leciona e faz cinema, nem podia imaginar, na noite em que se acendeu uma faísca. «Eu não tinha visto nada sobre a APAC», contou ela: «Não tinha ido ao Meeting de Rímini no ano em que fizeram a mostra sobre elas [2016, ndr]. Tinha só relatos de segunda mão. Mas o que acendeu o desejo de trabalhar com isso foi uma conversa com Joshua, um amigo que eu e meu marido, advogado, tínhamos acompanhado nos últimos dez anos de sua detenção».
Nessa conversa surgiram perguntas, brotaram urgências «que sinto desde que estudava em Milão e vi meu professor de Criminologia morrer, Guido Galli, assassinado pelo grupo terrorista Prima Linea: o desejo de justiça sempre me atiçou. E quando você conhece alguém das prisões americanas, percebe a grande necessidade de humanidade envolvida nesse tema». Até que ali, à mesa com aquele amigo, «eu tive um flash: você sabe o que é a APAC? Ele sabia mais do que eu: tinha visto as coisas do Meeting. Conversamos sobre isso. E disse, num impulso: “Preciso fazer um filme sobre isso”. E ele: “Se fizer, eu ajudo”».
Tiveram início semanas de estudos. «Quanto mais eu lia, mais entendia que era como ver algo humanamente impossível que se realiza. Depois uma amiga brasileira me pôs em contato com eles. E decidi partir: precisava ir ver o que estava lá me chamando». Um impacto reforçado por um fato: «No dia mesmo em que pousei no Brasil, me disseram: “O Ottoboni, o fundador, acabou de morrer”. Estive no funeral, e percebi que estava diante de algo grande. Havia dezenas de ex-recuperandos que choravam, como filhos sobre o corpo de um pai. Eu precisava contar sobre aquele mundo, ir a fundo naquela experiência».
O caminho para fazer isso foram os encontros. Histórias que vemos no filme, ou nos bastidores. Rostos como o de Bruno, que no início aparece em seus últimos meses de APAC e no final aparece fora, com mulher e filhos, pois a vida mudou. Ou o de Luzia, que contou a Simonetta sua história atribuladíssima, cheia de dor e violências («enquanto filmávamos a entrevista, o diretor de fotografia começou a chorar»), e nos meses seguintes, tendo saído da APAC, não aguentou. Suicidou-se. «Sua vida era um grito de amor, forte», diz a cinegrafista ainda abalada: «E me marcou porque me fez entender que a APAC não é um sistema perfeito: é uma proposta de vida à sua liberdade. A APAC não te salva mecanicamente: oferece uma ocasião para retomar a sua vida à luz de um amor, de um olhar. Por isso fala a todos, até a quem nunca esteve na prisão: dá-me a possibilidade de voltar à origem de mim, de escutar o meu verdadeiro coração».
Nem tudo transcorreu facilmente, a pandemia complicou muito. «Mas eu nunca me senti sozinha. Muitos me ajudaram. TJ Berden, amigo e produtor, que é um grande apoiador da APAC, lançou-se no projeto de cabeça. Os amigos da AVSI-EUA me ajudaram a conseguir o dinheiro». Além disso, recebi a contribuição surpreendente da 4th Purpose Foundation, uma organização sem fins lucrativos dedicada a melhorar a vida dos detentos: «O CEO, John Smith, me telefonou, ele mesmo um ex-presidiário: “Você está mesmo fazendo isso? Faz tempo que eu procurava alguém que trabalhasse sobre as APACs… Do que você precisa?” Ele financiou o resto do projeto sem nunca ter me visto. Até hoje eu ainda não o encontrei pessoalmente».
Agora o filme já está circulando, a partir das próprias prisões. «E para nós é um sonho: se conseguimos levá-lo aí, quer dizer que há a possibilidade de entrar no mérito de um problema enorme para a sociedade americana. O cárcere, aqui, é um mundo à parte, mais que em outros lugares. Precisamos entrar lá para mudá-lo».
É o que está acontecendo, a começar pela Louisiana. «A projeção era às 19h. Às 21h30 ainda estávamos lá debatendo.» O que mais te marcou na conversa? «Os detentos captaram na hora uma coisa muito forte que Valdeci Antônio Ferreira disse, o herdeiro de Ottoboni: o crime é a experiência da recusa levada ao extremo, é um grito de ajuda. Quando nos sentimos recusados, gritamos para pedir amor, do berço ao leito de morte. Com qualquer gesto nosso. No fundo, é a busca por Deus. E é o que mais os marcou, muitos nos disseram isso. Porque é verdade.» Depois a pergunta, a das mãos levantadas. É possível? «Todos responderam que sim. Todos. Um dos guardas foi muito explícito: “Aqui, os presídios são um lugar onde você enfia alguém lá dentro e joga fora a chave. E para nós é cômodo, porque é um negócio. A APAC é outra coisa: impensável, mas possível. Porque, se é possível no Brasil, também é aqui”.»
Depois de Lafourche, há outras projeções programadas. Mais um presídio em Louisiana, no Condado Saint John. Algumas hipóteses no Tennessee, «e lá seria ainda mais interessante, pois as prisões são duras mesmo». E, a partir de setembro, as universidade: «Notre Dame, Columbia, Loyola Chicago. As datas já estão marcadas, e é só o início: encontramos um distribuidor no Brasil, e algo está se movendo na Europa».
LEIA TAMBÉM - Carrón-Esposito em Loano. A prova do instante
E você, neste início, o que descobriu de si mesma? «Voltou a se abrir aquela ferida que mencionei, a necessidade de justiça. Eu sempre me perguntei se o perdão era possível de verdade, em relação a alguns crimes. É possível a mudança? Agora posso dizer que é. Antes de mais nada, para mim. Porque o que vi me fez ir a fundo em mim mesma. Aquele perdão tocou também a mim.»#PrisõesApac