O futebol, a barbárie e a esperança

A violência das torcidas no final do Campeonato Brasileiro no domingo, 8 de dezembro, nos assustou. Mas existem fatos de esperança que indicam que o futebol pode ser usado para o bem ou para o mal. É uma escolha pessoal
Rafael Marcoccia

Deveria estar aqui comentando o término do Campeonato Brasileiro. Mas novamente se discute o que fazer com vândalos que espalham terror nas arquibancadas dos estádios brasileiros, afastando famílias e pessoas em busca de diversão.

Esse ano o futebol brasileiro retrocedeu pelo menos 18 anos, para uma época em que briga entre torcidas dentro ou nos arredores dos estádios era mais frequente – quem não se lembra ou já ouviu falar da barbárie do Pacaembu entre são-paulinos e palmeirenses na final da Supercopa de Futebol Júnior, em 1995? A partir daí, brigas foram contidas, é verdade, mas no fundo, deslocadas para locais distantes de onde os jogos aconteciam.

O que aconteceu ontem foi o ponto culminante e mais violento do que ocorreu durante todo o Campeonato Brasileiro. Em vários jogos a pancadaria entre torcidas correu solta. Falo de memória: Flamengo e São Paulo e Vasco e Corinthians em Brasília; Atlético-MG e Cruzeiro, no Independência; Atlético-PR e Coritiba, na Vila Capanema, e São Paulo e Corinthians, no Morumbi.

É verdade que as punições que ocorreram depois desses jogos não adiantaram nada e que é necessário reformar o regimento da competição. É claro que os envolvidos devem realmente ser e permanecer presos, coisa que infelizmente ainda não acontece. É evidente que deve-se verificar e apurar onde o responsável da partida errou na organização do evento (deveria usar segurança pública ou privada?), e depois puni-lo.

É óbvio que torcida organizada não deve receber ingressos nem manter vínculos profundos com as diretorias do clube. É defensável que muitas torcidas organizadas deveriam ser extintas – pois se é verdade que inúmeras delas desenvolvem trabalhos sociais e são constituídos de pessoas de bem, são igualmente coniventes ao não coibir verdadeiramente os elementos violentos, que elas sabem de fato quem são.

É justificável que as pessoas fiquem revoltadas e tristes, xinguem e externem com termos duros o que ocorreu. É até normal que se discuta a preocupação com a imagem que o país passa para o resto do mundo, já que está organizando Copa do Mundo (embora é bem verdade que a gravidade do que aconteceu ontem iria repercutir da mesma maneira no mundo todo com ou sem Copa).

Todas estas questões me remetem ainda a outra reflexão, que está por trás de tudo isso que toca dolorosamente a todos e a todos faz gritar. A selvageria de ontem é reflexo de uma sociedade com graves problemas, anteriores às leis. Se ficarmos preocupados apenas em aperfeiçoar regras, podemos simplesmente projetar a esperança em um aprimoramento de regras, de leis e punições futuras em que conseguiremos resolver cada problema apresentado. Entretanto, é evidente que o problema não se esgota.

O problema é do homem, que é limitado e tem que se reconhecer como tal. Como diz Chesterton em O Segredo do Padre Brown: “Nenhum homem é, de fato, bom, enquanto não souber quão mal ele é, ou poderia ser”. E não há regras e leis que dão conta de eliminar essa condição.

No fundo, as pessoas acabam sucumbindo a uma corrupção individual, onde abandonam seus valores e aspirações mais íntimas em função das imposições da própria dinâmica social atual ou da massa da qual fazem parte; esquecem ou achatam, assim, o desejo de bem comum e expressam um individualismo exacerbado.

Para não cair constantemente nessa armadilha – porque na verdade, sempre damos escorregadas-, devemos nos perguntar constantemente: onde está o valor da pessoa? Quem é o outro? Que relacionamento estabeleço com ele? Que sociedade se constrói atualmente? Quais os valores que vale a pena defender?
Quando Luís Alberto, jogador do Atlético-PR, ainda no gramado olhando toda a confusão, diz com dor “Todo mundo é ser humano”, expressa com uma frase simples e óbvia essas perguntas.

É necessário portanto estar aberto à realidade e enxergá-la em todos os fatores. Às vezes e infelizmente precisamos de fatos como o de ontem para nos chacoalhar, para acordarmos da letargia que nos envolve, para dar a cada coisa a real dimensão que ela tem.

Mas sempre é possível recomeçar. Repito o que disse a poeta Adélia Prado em entrevista para o Estadão no último sábado, em que perguntada quando a realidade cotidiana se mostra como maravilhamento e quando não passa de mera realidade respondeu: “Quando olho a pedra e vejo pedra mesmo, só estou vendo a aparência. Quando a pedra me põe confusa de estranhamento e beleza, eu a estou vendo em sua realidade que nunca é apenas física. A aparência diz pouco”. Que a gente tenha a razão aguda a esse ponto para não perder a totalidade da realidade. A chave está aqui.

Se a gente perde o contexto no qual o futebol se insere – ele é apenas um jogo, uma diversão, ou como gosto de dizer: “a coisa mais importante entre as menos importantes” – a gente abre a porta para o mal entrar. E acaba destruindo aquilo que a gente tanto gosta.

A esperança

Ao mesmo tempo em que algumas pessoas se utilizam do futebol para extravasar toda sua violência, há pequenos fatos que dizem muito.

Sábado pela manhã, na TV Record, foi veiculada uma reportagem muito bonita sobre o caso de um menino de três anos, Miguel, com síndrome de Down e que sofre de uma doença rara, a Síndrome Moya Moya, que o faz ter vários AVC’s. A solução é uma cirurgia caríssima. Pessoas apaixonadas por futebol e sobretudo pela vida se mobilizaram e conseguiram envolver vários jogadores – Pato, Ganso, Marcos, Barcos, Neymar, Daniel Alves entre outros – dos principais times do país e até de fora para leiloar camisas autografadas e levantar os fundos necessários. Conheço todos os envolvidos e a seriedade da ação. A história está toda aqui. Vale a pena assistir.

Considero que seja uma resposta – ainda que frágil e indireta – à violência de ontem. Pessoas que amam de verdade o esporte o usam para promover o bem e reconhecem o valor da vida e dos outros.

Que diferença de postura!

A esperança está justamente nessas pessoas que têm a consciência aberta pra um bem. É claro que não vão salvar o mundo com isso mas, de qualquer forma, aquilo que estão fazendo tem um significado pra cada um, um significado para o Miguel e um significado para quem está ao seu lado. A partir daí ninguém sabe o que pode acontecer. De toda forma, é o relacionamento com essas pessoas que muda de verdade a sociedade.

O futebol pode ser usado para o bem ou para o mal. É uma escolha pessoal.

Qual é o meu relacionamento verdadeiro com o futebol?

É para refletir.

(publicado no Blog do Coccia, segunda-feira 9.dez.2013)