O jihadismo exige sinceridade

Repórter espanhol visita campo de refugiados sírios e iraquianos. Aqui, conta os que viu, e faz sua análise da situação atual após os atentados de Paris
Fernando de Haro

Flamigna Agmar e seu marido nos recebem numa garagem que transformaram numa casa de um cômodo só. Acendem o fogão e nos preparam um café. Não querem viver com os refugiados muçulmanos, que instalaram suas tendas em campo aberto, agora brancos por causa da nevada que torna a vida muito difícil. Flamigna e seu marido saíram fugidos da cidade de Homs, por causa do terror espalhado pelo Estado Islâmico. Sentiam medo, sentem medo de que os jihadistas os decapitem. Fugiram de casa com a roupa do corpo e pararam no povoado de Deir a Ahmar, no norte do Líbano, perto da fronteira com a Síria. A localidade, antes da guerra, tinha dois mil habitantes; agora, acolhe seis mil pessoas.

Por trás das colinas, a poucos quilômetros, o Estado Islâmico domina pelo medo. “Vocês vieram para fazer uma reportagem sobre os refugiados sírios e iraquianos; no próximo ano virão para fazê-la sobre os refugiados libaneses”, nos adverte Irmã Micheline, uma monja maronita que acolhe crianças abandonadas e tenta dar-lhes alguma educação. Dentro de uma tenda de plástico, sobre um solo barrento, onde se pisa no gelo em todos os cantos, indica seus novos alunos: “estas são as vítimas da violência, as vítimas desta guerra infame”. Essas crianças e outros mais de dois milhões de habitantes perderam suas casas e se amontoam no bairro armênio de Beirute ou em Erbil, no Curdistão. Muitos deles pedem um visto para ir para os Estados Unidos ou para o Canadá.

A limpeza étnica e religiosa que está em marcha deixou muitos povoados sem cristãos. De alguns deles, como Malula, partiram os últimos que falavam a língua de Jesus, o aramaico. São vítimas de uma guerra civil dentro do jihadismo. Como foram vítimas também os assassinados chargistas da revista Charlie Hebdo, os judeus do supermercado e policiais de Paris.

Há um conflito interno no islamismo que afeta a todos. Nós, os europeus, achávamos que estávamos a salvo. Com dor, despertamos. O conflito tem como epicentro o Oriente próximo, porém já é global. O wahabismo (sunita) da Arábia Saudita, com a pretensão de liderar um projeto ideológico dentro do Islã, quis criar uma alternativa ao xiismo do Irã. É a briga de sempre. Estão convencidos de que o califado desaparecido no início do século XX pode ser reeditado. Pensam que cem anos não são nada na história do Islã. E brigam pela liderança.

Esse sunismo precisa interromper a ascensão xiita, que se estende do Irã até o sul do Líbano (Hezbollá) e que passava através do Iraque de Al Maliki. A Arábia Saudita e o Catar criaram, primeiro, o monstro da Al Qaeda e, logo depois, o do Estado Islâmico. Já não precisam de alimentos, são autônomos. Estão fora de controle e lutam pela notoriedade e o protagonismo. Os combates entre Al Nusra (filial da Al Qaeda na Síria) e o Estado Islâmico ilustram bem a situação. E essa é a luta que chegou até nós. Que jogada é melhor do que matar “europeus blasfemos” para ganhar posições?

Diante da ameaça jihadista, o Ocidente precisa fazer uma prova de sinceridade. Em primeiro lugar, precisamos reconhecer nossos erros políticos no Oriente Próximo. E são muitos. Equivocamos-nos com a invasão do Iraque. Equivocamos-nos ao aceitar a informação de Al Maliki.

O ex-presidente iraquiano enganava todo mundo contando histórias falsas, enquanto seu exército, corrupto e desmantelado, retrocedia diante do avanço dos islamitas. Equivocamos-nos no conflito sírio. Ignoramos o que nos diziam os cristãos do país: eles explicavam, já em 2011, que a oposição não tinha consistência e que Assad, tirano desprezível, era o mal menor. Essa ingenuidade ocidental fomentou que o Exército Livre Sírio se transformasse, em poucos meses, no ninho de dezenas de milhares de terroristas do mundo todo. Equivocamos-nos ao confiar na Turquia, que deixa suas fronteiras abertas para que esses terroristas que chegam de todos os cantos do globo se alistem com os jihadistas. Equivocamos-nos se pensarmos que o conflito entre sunitas e xiitas é bom, porque deixa Israel em paz. E, enfim, nos equivocamos, se considerarmos que os acordos Skyes-Picot, de 1916, com os quais pôs-se fim à hegemonia otomana na região, já não servem. Aquele acordo criou nações multiconfessionais nas quais convivem sunitas, xiitas, drusos, cristãos, yazidis, alauitas e muitos outros. Não era uma solução ruim. Acalentar, agora, o sonho de países monoconfessionais, como o projetado por Netanyahu, é uma utopia muito perigosa.

A sinceridade para fazer frente à jihad exige também reconhecer a debilidade da Europa. Nosso querido Velho Continente exporta jihadistas para a Síria e o Iraque. Há dois mil franceses combatendo nas fileiras do Estado Islâmico. São nossos filhos, não são estrangeiros. Diante do vazio em que crescem, buscam no niilismo violento uma saída. Como a buscaram seus avós no terrorismo dos anos 70. É o fascínio terrível exercido pela morte, matar e ser morto, quando a vida deixou de ser uma experiência atraente.

É ingênuo que sobre os caixões dos chargistas de Charlie Hebdo invoquemos os valores do conhecimento. Oxalá esses valores estivessem vivos! Isso nos permitiria não cair na armadilha de um choque de civilizações, buscado com inteligência pelos jihadistas para ganhar adeptos.

Porém, os princípios das luzes se converteram em slogans vazios. Não significam nada para os jovens das nossas periferias. Só desperta neles um insano gosto pela irreverência.

Sobre a neve que cobre os campos de Deir a Ahmar, quando Irmã Micheline acaricia a cabeça de um de seus jovens amigos sírios, intuímos que a sua é, sim, uma experiência à altura das circunstâncias. A experiência que permite a essa maronita de caráter forte dedicar o dia e a noite, com paixão e humor, àqueles que perderam tudo.

(Artigo retirado do site Paginas Digital)