Um barco lotado de refugiados.

“Olhá-los nos olhos é a chave de tudo”

Centenas de mortos, novamente. Mas, a tragédia de 18 de abril “era anunciada”. Fala Carla Trommino, advogada de Siracusa especializada em migrações, que desde 2013 se ocupa dos menores desembarcados na Sicília
Paolo Perego

“Estava tudo anunciado. Sabia-se muito bem que a operação europeia Triton de patrulhamento não podia assegurar aquilo que havia feito a Marinha italiana com a operação Mare Nostrum. E que a Europa não tinha intenção de dar garantias neste sentido. A situação explosiva na Líbia está sob os olhos de todos há meses’. Carla Trommino é uma advogada de Siracusa especializada em migrações. Há alguns anos acompanha de perto o que ocorre com os migrantes que atravessam o Mediterrâneo rumo à Itália, e fundou, em 2013, uma associação, AccoglieRete, que se propõe dar uma proteção legal aos menores não acompanhados que desembarcam nas costas sicilianas. E hoje, desconsolada, olha a tragédia de sábado passado, na qual perderam a vida 700, 800, talvez 900 pessoas. Nunca se saberá exatamente.

A enésima tragédia às portas da Itália. Parece que nada muda nunca, apesar que de desembarques e migrantes do Norte da África, já se fale há anos. É frustrante…
Sim, porque a política conhece faz tempo os instrumentos para enfrentar isso. Muitas soluções foram analisadas, propostas e avaliadas, de canais humanitários até mesas de negociação com os Países africanos... Enfim, ninguém pode dizer que foi pego de surpresa. Isto nos deixa perplexos. Há pouco o que dizer. Conhecíamos todos os riscos daquilo que estava sendo feito em nível de política nacional e comunitária. Talvez a única coisa que faltava fosse desmentir a convicção de que uma operação como Mare Nostrum, brecada pelo Governo no outono, fazia aumentar as chegadas.

Não é assim?
As estatísticas de 2015 demonstram que não diminuiu o número de migrantes desembarcados em nossas costas: só entre janeiro e março foram mais de 22 mil, contra os 20 mil do ano passado com Mare Nostrum. E em abril ainda mais, com 1500 desembarques ao dia, apenas na última semana. Não há mais álibi. A esta altura as perguntas surgem espontaneamente, e às vezes você chega a pensar que, no fundo, para alguém vai bem assim. No Parlamento se discute a proposta de instituir um dia da memória a 3 de outubro (nesse dia, em 2013, afundou a poucas milhas de Lampedusa uma barca lotada de refugiados: houve mais de 350 mortos) para recordar as tragédias do mar ligadas aos migrantes. Enquanto isso, não se faz nada para que estas tragédias não se repitam. Uma coisa só que o Governo fez no quesito imigração: fechar o Mare Nostrum. Com o resultado que vemos. E quanto ao resto? Confesso ter ficado chocada ao ouvir o Primeiro Ministro, a poucas horas da notícia, perguntar-se como é possível ficar indiferentes, para em seguida acrescentar: “Mas isto é o drama e a beleza da política”. Só que o único drama é o daquela gente, não certamente de quem tem poder de tentar impedir estas mortes.

É só inércia?
Existem perguntas que todos deveriam iniciar a pôr e indagar. Por exemplo, quais ramos da administração e da política estes tráficos conseguem corromper? Até onde conseguem chegar? Muito me fez refletir uma coisa que ouvi nestes dias, e que também registrei em alguns relatos dos migrantes: ocasionalmente, alguns são forçados a partir, mesmo sem ter pagado a viagem. Sobretudo, ultimamente. É um modo que os traficantes usam para pressionar os Governos que os deverão acolher.

E, no entanto, é preciso acolher essa gente…
Agora os recém-chegados são levados para Sicília ocidental. Aqui em Siracusa, onde já temos muitos, a situação é estável. Também Ragusa está cheia. E ainda novos centros estão se abrindo… a coisa grave nisso tudo é que sempre nos encontramos sem um planejamento orgânico, sem uma estrutura, sem um sistema que funcione realmente. Respostas sempre improvisadas.

Por que isso acontece?
O meu pensamento é que permanecer na “emergência” seja a condição melhor para lucrar, para fazer as coisas sem controle, sem licitações, sem muitas restrições. E este é terreno fértil para corrupção e negócios ilícitos.

Mas, a ação dos Governos é suficiente para responder?
Como diz o Papa, é uma questão que não interessa só a Itália ou Malta. E nem mesmo só a Europa: é muito mais ampla. Deve intervir também a ONU. Esta deve assumir a responsabilidade. Não basta a normal atividade da UNHCR, a agência que se ocupa dos refugiados. A ONU deve colocar-se em primeira linha com um empenho maior, também economicamente.

De que estamos falando?
Da necessidade de que haja uma migração feita de fluxos controlados. Quando falamos de “mar seguro”, falamos também disto. Corredores humanitários para os refugiados identificados ainda antes de partir, vistos concedidos pelas embaixadas na África para quem procura um trabalho e tem uma pequena poupança que lhe permita vir à nossa terra, ao invés de dá-la aos traficantes… Isto, na visão de quem “acolhe” e pode ter temores e preocupações, permite também uma maior segurança. Porque você sabe quem entra no seu território e o pode controlar.

Em suma, precisa ajudar quem deixa a própria terra rumo ao Ocidente?
A migração não se detém. É um dado histórico, não apenas do passado recente. Essa gente chega para bloquear os tráficos incontrolados, contudo, seria necessário abrir canais humanitários nos países de origem, antes que essas pessoas cheguem à Líbia, antes que acabem vítimas da carnificina. Aliás, por que não fazer como foi feito com os barqueiros albaneses na década de noventa, quando fomos destruir barcas e botes nas praias deles? Por outro lado, precisa acompanhar e encontrar uma alternativa para quem foge. Precisa tornar a mobilidade possível, segura e sustentável. E fazê-lo juntos como a Europa e as Nações Unidas. Ao passo que o refrão continua sendo “vamos bloquear, vamos fechar”…

É uma hipótese que assusta e preocupa. Vemos isso nas polêmicas, velhas e novas, destes dias. O Papa, no domingo, convidou a “olhar” aquelas pessoas, que “como nós, buscam a felicidade”.
Ele fala indo ao coração das coisas, em sua simplicidade. Ele é assim. Mas é verdade. Nós as conhecemos, estas pessoas, já fazem parte de nossas vidas. Devemos olhá-los nos olhos, muitos disseram. Não é questão de coragem, você os têm na sua frente. Talvez para nós sicilianos, pelo nosso modo de ser, é também mais simples: é uma realidade que vivemos cotidianamente. Mas olhá-los nos olhos, conhecê-los, é a chave de tudo. Porque, conhecendo-os, você se reconhece: como eles. Procuramos semear paz, nós ao menos, em um clima que já é difícil entre guerras e terrorismo. Começamos a pedir ajuda à Comunidade Internacional, para que pelo menos as famílias daquela gente possam reunir-se: serve a lista de quem estava naquele barco, para que todos tenham um nome, e um funeral. Para que toda a dor que nos circunda exista e não seja escondida ou censurada.