Por que o gigante está em crise?

Reflexões de Otoney Alcântara - Advogado, especialista direito constitucional e direito trabalhista – escritas em maio 2016 para a Revista Tracce, edição italiana de Passos, como ajuda a entender o contexto da crise política no Brasil
Otoney Alcântara

Tom Jobim, um dos criadores da Bossa Nova, movimento musical brasileiro dos anos 1950, costumava dizer: “O Brasil não é para iniciantes”. Nunca como nesses tempos, ficou tão evidente a complexidade deste país, o maior da América do Sul e da América Latina, o quinto maior do mundo em território, com população superior a 200 milhões de habitantes. Integrante do BRICS encontra-se entre as 10 maiores economias do planeta; neste momento talvez, não mais.

Há pouco tempo, o Brasil se apresentava como grande promessa econômica mundial, sétima maior economia do mundo em 2011, a segunda maior do continente americano, atrás apenas dos Estados Unidos, produzindo riquezas, desenvolvendo redes de mercado interno e externo em condições suficientes para se tornar a quarta maior economia do mundo por volta de 2050.
Então, como explicar a crise política, econômica e social, talvez a maior da história, em que se vê imerso este gigante desde 2015? Seguem alguns dados que retratam a crise:

Até março de 2016, dez milhões de trabalhadores com carteira assinada ficaram desempregados; o Produto Interno Bruto (PIB) previsto para 2016 terá mais de 2,6% de recessão; até abril são 16 meses consecutivos de crise política; a inflação oficial beira os 10%. Em relatório recente, sobre o estado da economia global, o FMI afirmou que o PIB brasileiro só deixará de diminuir em 2017, quando deve permanecer estagnado (0%). Ainda assim, o Fundo afirma que “[...] o cenário econômico no Brasil é incerto”, e que "possíveis atrasos em retornar a condições mais normais podem voltar a baixar as previsões (globais) atuais de crescimento".

É vertiginoso e demasiado contraditório que em tão pouco tempo a situação tenha se deteriorado tão radicalmente como num sonho que se torna pesadelo. Neste cenário complexo e caótico, com tantas variáveis, o que significa essa estranha equação? Seguem alguns fatores que, se não exaustivos, certamente constitutivos da crise atual, que nos ajudam a entender como se chegou aqui:
O modo como nos últimos anos 12 anos o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) conduziu o estado brasileiro foi radicalizado na era Dilma: a econômica baseada no relaxamento da política fiscal; tentativa de forçar a desvalorização do câmbio e a queda dos juros; expressivo aumento e reforço de mecanismos de intervenção do Estado na economia; aparelhamento do estado, cujo exemplo é o aumento expressivo de gastos fiscais e parafiscais: centenas de bilhões de reais de empréstimos do tesouro federal para o BNDES; desonerações tributárias agressivas; forte expansão de programas voltados para subsídios sociais como Minha Casa Minha Vida e FIES; grande liberalidade para nova rodada de endividamento de Estados e municípios; autorização de contabilidade criativa por parte da equipe econômica (maquiagem das contas públicas); incentivo ao crédito para consumo e consequente endividamento das famílias. Os impactos dessa política foram o retorno da inflação, perda da renda e do emprego, inchaço da máquina burocrática para acomodar os “amigos dos reis” (113 mil cargos comissionados no Brasil, contra 4 mil nos EUA e 600 na Alemanha), exigindo uma autofágica política tributária (carga de aproximadamente 36% do PIB, contra 24% dos EUA e Coreia do Sul, 29% do Japão e 28% da Suíça). Tudo isso gerou um desequilíbrio orçamentário que levou ao rebaixamento do grau de investimento e está na origem da crise.

O segundo fator, não menos importante é a operação Lava Jato, a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro do Brasil. Estima-se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobrás, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de reais. Soma-se a isso a expressão econômica e política dos suspeitos de participar do esquema de corrupção que envolve a companhia. Em março de 2015, o Procurador-Geral da República apresentou ao Supremo Tribunal Federal 28 petições para a abertura de inquéritos criminais destinados a apurar fatos atribuídos a 55 pessoas, das quais 49 são titulares de cargos políticos com foro privilegiado. Nesse esquema, que dura pelo menos dez anos, grandes empreiteiras organizadas em carteis, pagavam propina para altos executivos da estatal e outros agentes públicos. O valor da propina variava de 1% a 5% do montante total de contratos bilionários superfaturados (existem números espetaculares na página da lava jato).

A combinação de degeneração da economia e descoberta da corrupção em níveis inimagináveis levou a população às manifestações de rua. Após a campanha mais acirrada desde a eleição de 1989, Dilma Rousseff foi reeleita presidente do Brasil com 51,6% dos votos válidos. De Lá pra cá por meio das redes sociais, foram convocadas diversas manifestações levando no arco de alguns meses mais de 12 milhões de pessoas às ruas pedindo impeachment de Dilma Rousseff e a punição aos envolvidos no esquema de corrupção. A história do Brasil nunca registrou este nível de participação com a consequente perda de apoio popular do governo, que neste momento chega a uma rejeição de cerca de 70% da população brasileira.

Agrega-se o fato de que o Supremo Tribunal Federal vem sendo acionado ao longo do ano de 2015, como árbitro quando um grupo político, tanto da oposição quanto do governo, fica insatisfeito com o resultado de uma decisão do Congresso, de modo que as questões políticas são continuamente judicializadas. Com todos os percalços e algumas decisões questionáveis, esse ato tem racionalizado o conflito político e, entre erros e acertos, pode-se dizer que tem sido uma via saneadora em um momento de total ausência de consenso e legitimidade no ambiente político. Por outro lado, revela que a esfera política não tem sido capaz de autocompor os conflitos de sua competência denotando, de certo modo, o fracasso desta instância.

Por fim, há ainda uma questão geral anterior e transversal a todos os vetores acima apontados, que é o chamado presidencialismo de coalizão. No Brasil, o presidente da República é eleito diretamente pelo sufrágio popular, porém, os representantes parlamentares (também eleitos diretamente) podem ser de partidos diversos do presidente, o que implica na necessidade de se estabelecer uma coalizão, ou seja, o presidente da república precisa de aliados conquistados mediante acordos entre partidos, com distribuição de pastas nos ministérios e alianças entre forças políticas sem qualquer afinidade programática prévia, a fim de alcançar o mínimo de consenso no parlamento para governar. Aqui está origem de diversas tentativas de cooptação do legislativo pelo executivo.
O conjunto destes fatores em uma combinação rocambolesca chegou ao cume com a abertura do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, que consiste em um processo jurídico político, aprovado na Câmara de Deputados no domingo, 17 de abril, com 367 votos favoráveis e 137 contrários. O processo foi entregue ao Senado que dará prosseguimento até a fase final. Os senadores poderão manter a decisão dos deputados e instaurar o processo ou arquivar as investigações, sem analisar o mérito das denúncias (o cenário no senado é favorável ao prosseguimento do impeachment).

O momento é muito dramático para o povo brasileiro, sobretudo para as camadas mais pobres da população que vê as conquistas econômicas e sociais, fruto de 20 anos de políticas sociais inclusivas serem degelados como sorvete ao vento. Políticas de transferência de renda, fruto de políticas anteriores e novas que foram unificadas e assumiram uma posição de centralidade durante o governo Lula, para compreensão destas políticas vale a pena retomar brevemente o processo de evolução mais recente das relações entre Estado e sociedade no Brasil. Segundo Anete Ivo (2008) é possível distinguir quatro ciclos desta evolução na história recente:

O primeiro ciclo é definido pela autora como a “invenção” da cidadania. Ocorrido nos anos 80, em meio ao processo de redemocratização brasileira, esse ciclo foi conduzido por duas forças fundamentais: o novo sindicalismo e os diversos movimentos sociais, além das redes associativas e dos partidos políticos de oposição ao regime autoritário. O principal resultado do período foi a Assembleia Nacional Constituinte e a consequente promulgação da Constituição de 1988, com avanços significativos em termos de direitos civis, políticos e sociais.

No segundo ciclo, aparece aquilo que Ivo (2008, p. 166) chamou de “desconstrução” ou reorientação dos princípios constitucionais dos direitos sociais. Esta etapa, transcorrida ao longo da década de 90, é marcada pelos ajustes institucionais, o que implicou “a subordinação dos princípios universalistas à política de gastos sociais, através de ajustes fiscais e da política de estabilização monetária”.

O terceiro ciclo é marcado por um “consenso” na luta contra a pobreza, passando da universalidade para a focalização dos programas sociais. Esse período vai do final da década de 90 até meados de 2000. É destacada “a urgência de ações que contemplem formas de integração social”. No referido período, as políticas direcionadas à superação da pobreza devem atuar nos limites do ajuste econômico.


Por fim, o quarto ciclo, no qual aparece o programa “se caracteriza por uma maior eficiência gestionária dos programas focalizados” (IVO, 2008, p. 170). A autora utiliza a expressão “política dos mínimos sociais”, chamando atenção para a centralidade, neste período, das políticas de transferência de renda com foco na população mais pobre.


Ocorre, que durante este período parte substancial da população ganhou consciência da sua importância seja como agente político, seja como contribuinte de impostos, que exigem não apenas uma democracia formal, mas também substancial, na qual é obrigação do Estado devolver em forma de serviços de qualidade com transparência republicana o que arrecada com voracidade; uma exigência que o bem comum, mesmo que não totalmente consciente por todos, torne-se o ideal político.


Sem dúvidas, é um momento épico para a nação brasileira, um passo largo de autoconsciência. Neste sentido as acusações originadas no bloco governista, de que se trata de “golpe institucional”, e não tem mobilizado nem mesmo a militância do PT. Setores majoritários da sociedade, bem como o Judiciário, as Forças Armadas, a Ordem dos advogados do Brasil e o Congresso Nacional continuam acenando no sentido de que as mudanças continuarão. Somente o tempo dirá se estão com a razão, porém, estamos diante de um ponto onde não se pode mais olhar para trás. Como diria Fernando Pessoa: “Viver não é preciso, navegar e preciso”.