A quem é que serve o meu trabalho?
Crise. Precariedade. Desemprego. Num cenário que muda muito rapidamente a batalha para encontrar o próprio lugar abre mil perguntas até em quem tem um emprego. O que podemos aprender com este desafio? Entrevista a Giorgio Vittadini Quais são os critérios para escolher um trabalho? O que fazer quando não estamos satisfeitos com o nosso próprio trabalho? Podemos aceitar um emprego que não nos agrada? Durante quanto tempo? E quanto é que valem as aspirações, os desejos e as ambições? Como conciliar a família com a carreira? «São perguntas que os jovens me fazem muitas vezes, mas que dizem respeito a todos, mesmo para quem já trabalha há muitos anos: são o foco de uma situação que se torna cada vez mais premente», diz Giorgio Vittadini, presidente da Fundação para a Subsidiariedade e professor de estatística metodológica na Universidade Bicocca, de Milão, tendo já acumulado anos de investigação sobre este tema. A realidade fala-nos de uma precariedade difusa, de salários baixos, de grande competitividade, de subemprego e desemprego preocupantes. Mas fala-nos também de que cada vez é dedicado mais tempo ao trabalho. E depois existem os números de uma crise que se faz sentir há quase dez anos, com um desemprego de 12%, que roça os 40% na faixa etária dos 15-24 anos (ndt - dados estatísticos referentes à situação italiana). E temos um futuro nebuloso pela frente. «Num cenário deste género, em contínua mutação e cheio de incertezas, o maior risco é o de permanecer esmagados.»
Partamos, então, deste contexto. Fez investigação sobre o capital humano e sobre as alterações que, nos últimos anos, investiram a relação entre o trabalho e a pessoa (ver artigo "Os big five na escola"). O que é que está em jogo?
Antes de mais, o que está em jogo é uma concepção. Ou melhor, o que está em jogo é o início de uma batalha entre duas concepções. A primeira concebe o trabalho como algo de universalmente compreendido, que tem dentro de si o próprio significado, segundo a qual tu és o trabalho, és a tua carreira, sem uma identidade própria, formatado e útil à empresa. E concebe o trabalho sem ideais, determinado apenas a atingir um ganho individual. Antes da crise, parecia que o bem-estar colectivo só poderia nascer desta falta de valores, deste egoísmo do indivíduo, como na fábula das abelhas de Bernard Mandeville, do século XVIII. Pelo contrário, na crise financeira vimos como isto leva frequentemente a efeitos perversos, mesmos para as pessoas normais que tenham tido sucesso. Talvez se sacrifique tudo pela carreira, mas quando a carreira se revela megera e nos abandona, qualquer pessoa com quarenta e cinco anos se sente acabado, deprimido, porque viveu convencido que só tem valor quem tem sucesso.
Mas parece existir muita gente que foge do trabalho, que trabalha mal...
É a mesma concepção, mas do avesso. Pensar que a vida é, pelo contrário, fora do trabalho. Ceder a esta lógica significa viver centrado na paróquia, num sindicato, na família, nos hobbies, noutra coisa. Pensando que a empresa seja apenas uma espécie de vaca a mugir: retiro o meu salário, empenho-me o mínimo possível, «minha cara empresa, o teu destino não é o meu». Também neste caso vivemos uma concepção desumana, estamos fragmentados, alienados como quem concebe a carreira como único ideal.
Mas qual é a concepção alternativa?
Há cada vez mais evidências empíricas que mostram que é preciso recuperar, no trabalho, aspetos ligados à pessoa na sua originalidade, dos quais falei naquele artigo para a Tracce: estabilidade emotiva, afabilidade, abertura à experiência, para referir apenas alguns. Muitos peritos de recursos humanos e economistas, in primis James Heckman, prémio Nobel da Economia, aperceberam-se de que mesmo a produtividade no trabalho se conjuga frequentemente com estes aspetos. Há uns dias, escreveu-me sobre este assunto um professor de finanças de Denver, dizendo-me que recentemente começaram a ter lugar, de forma inédita, teorias que evidenciam que o background educativo e cultural, a idade e os traços do carácter, contribuem para explicar algumas variáveis, mesmo no seu mundo. A pergunta, então, é se o “indivíduo” tem que ver ou não com um determinado resultado económico, se faz a diferença.
E o que é que responde?
Que está relacionado, e de que maneira! E estamos a tomar cada vez mais consciência disto. Começou-se a descobrir que mesmo os grandes empreendedores não são tubarões doentes de sucesso, mas pessoas que partem de “qualquer coisa diferente”.
Por exemplo?
Pensemos no mito laico de Steve Jobs. Que vai para Stanford de chinelos de praia, que não acaba o curso e estuda só caligrafia. O seu grande contributo, maior até que o informático, é o seu contributo comunicativo: ele intuiu que diante do ecrã estava uma pessoa, na maior parte dos casos com poucos conhecimentos técnicos. Ele aproximou-se desta pessoa e tornou o computador, o iPhone e o iPad acessíveis a todos. Todos os grandes génios empreendedores são pessoas assim. Um manager pode contentar-se em gerir, mas um empreendedor que inventa e desenvolve um novo produto deve ter algum tipo de genialidade humana, a capacidade de intuir as necessidades das pessoas, de perceber quais é que podem ser os pontos de fuga positivos da realidade. O “génio humano” está também na origem do desenvolvimento económico. Uma expressão de Saint-Exupéry diz que para construir um barco não basta juntar trabalhadores, materiais e projecto: é preciso ter noção da infinitude do mar. A investigação sobre os character skills, à qual fiz referência, leva-nos a reflectir sobre estes aspectos. Infelizmente, muitas pessoas, mesmo entre aquelas que começam a reconhecer os efeitos positivos sobre o trabalho dos non cognitive skills, pensam que estes são só novos mecanismos do homem.
Em que sentido?
Pensem na ideia do team building, a nova técnica de formação empresarial. Acredita-se que para formar a criatividade de uma pessoa e a tornar capaz de estar preparada para as mudanças, é necessário colocá-la em condições extremas, nas quais possa desenvolver reacções igualmente extremas: procurar abrigo à noite numa floresta, fazer rafting... Pelo contrário, é necessário que redescubra o seu coração, a sua razão, a sua capacidade de ler a realidade, o gosto pela sua liberdade, o desejo de uma felicidade plena e integral. É “outra coisa” que não pode ser introduzida através de novos procedimentos. É qualquer coisa anterior ao próprio trabalho, que “nasce” fora da empresa, que não pertence à empresa. E isto muitas vezes é motivo de escândalo.
Porquê?
Como disse antes, normalmente prevalece a ideia de que ninguém te pode ser útil a não ser que seja tua propriedade. Mas é exactamente o contrário. É exactamente por uma pessoa ser livre que te pode servir melhor. No Império Romano, os primeiros cristãos nunca puseram em causa o poder. Simplesmente diziam: «eu não te pertenço». Podiam ser soldados, mas não queimavam incensos ao imperador. Santos como Nabor, Félix, Gervásio e Protásio, que se deixaram matar por isto. Aqui é a mesma coisa. O desafio é que eu sirva a empresa, ajudo-te e trabalho, exatamente porque antes de mais nada me deixaste ser livre. Enquanto te dizem: «não, eu quero tudo».
Mas o que é esta “qualquer coisa anterior”?
É o coração da pessoa. É aquilo que te faz desejar alguém ou alguma coisa que responda ao teu desejo de felicidade, de justiça, de beleza. É aquilo que te faz desejar um significado naquilo que fazes, é o teu character, a tua personalidade na sua origem profunda.
Em que sentido?
O cerne do trabalho é um amor ao que se tem pela frente, à condição de trabalho, mesmo que difícil. Como a Vicenzina da música de Enzo Jannacci. Porque é que existem pessoas que têm trabalhos humildes e estão sempre contentes? Antes de mais, porque sabem que, com o seu trabalho, com o ordenado que recebem, permitem que viva alguém que amam. Penso naqueles que emigravam para trabalhar nas minas, gente que amava a família e que, talvez, a deixasse para ir para o estrangeiro. Todos os dias, enfiados quilómetros debaixo de terra. Uma vida perigosa para mandar dinheiro para casa. A afeição justificava tudo isto. E também o gosto de contribuir com o próprio cansaço para o bem-estar do próprio povo. E ainda, a perceção, mesmo através de um trabalho humilde, de que se está a transformar a realidade para a tornar melhor.
Então, o problema é que já não existe esta consciência?
É defensivo dizê-lo dessa forma. Somos rápidos a dizer que não existe mais nada. É preciso procurar estes exemplos. Vê-los. Gente de boa vontade, que sem ter um “antes” e um “depois”, talvez sem saber porquê, leva a sério aquele pedaço de realidade que tem pela frente. Quantas empregadas trabalham incansavelmente para mandar dinheiro à família? Querem o bem de alguma pessoa e com este desejo justificam aquilo que fazem. O mesmo se aplica a tantos imigrantes. Na noite Natal encontrei um rapaz que vendia flores na rua. Custa-lhe fazer aquele trabalho, é difícil viver daquilo; poupa na comida porque sustenta a sua família no Bangladesh. Tinha um emprego fixo de onde foi despedido, mas vê-lo a vender flores transmite uma ideia de amor ao trabalho, porque está ligado a uma afeição. É uma prioridade diferente que, contudo, muda a circunstância.
Mas, isto são situações limite...
Não, tanta gente ama o próprio trabalho. Gente que deseja incidir sobre a realidade e construir um futuro para si, para a nação a que pertencem, ou talvez emigrando. Mães que querem cuidar da família e trabalhar. Professores que continuam a educar em escolas degradadas. Pessoas que têm gosto em aprender uma profissão ou em descobrir as oportunidades – não contra, mas para o homem – das novíssimas tecnologias, como as da indústria “4.0”. Trabalhadores e empreendedores que fazem tudo para salvar uma fábrica ou criar novos empregos. Gente que trabalha com paixão mesmo que tenha contratos precários.
Mas como é que se faz para viver o trabalho de uma forma humana?
Penso que é preciso recordar-se dos três critérios de que don Giussani fala, a propósito da vocação. Antes de mais, cada pessoa tem de partir do seu coração, do seu desejo, das suas aspirações, das suas paixões, dos seus talentos. Hoje em dia, muitas vezes não olhamos para isto porque não confiamos em nós próprios, não nos apercebemos que temos um coração no qual existe algo de belo. A inclinação pessoal, pelo contrário, é um dom. Só existe um modo de perceber se estas inclinações se podem realizar, que é o segundo critério: verificar, a partir dos sinais da realidade, se se podem realizar assim como são ou se devem ser modificadas com base nas sugestões da realidade. Descobrindo até que estas mudanças de rota não são um menos na realização de si próprio, mas só uma afinação da estrada. Há alguns anos atrás existiam raparigas que, talvez depois da morte dos pais, não se casavam, desistiam de estudar e iam trabalhar para acudir aos irmãos mais novos. Isto pode acontecer tantas vezes na vida, mesmo nas circunstâncias mais complicadas. E, em terceiro lugar, não é necessário demonizar, mas valorizar aqueles que olhando para o que acontece à sua volta querem pôr-se à disposição para servir a realidade nas suas necessidades mais evidentes: pelo que podem, por exemplo, tornar-se médicos para aliviar as necessidades dos doentes, desejar ensinar, ou dedicar-se aos pobres... E consegue-se fazer estes trabalhos.
Portanto, é tudo menos uma questão de balança e calculadora.
Sim. É preciso uma educação para reconhecer as próprias inclinações, a obedecer à realidade, a mover-se com gratuidade. Esta educação, só pode acontecer através de exemplos adultos que acompanhem e indiquem a estrada. Lembro-me de exemplos como a Galdus em Milão, a Cometa em Como, a Piazza dei Mestieri em Turim e outras realidades que relançaram a possibilidade de aprender um ofício: pasteleiro, esteticista, carpinteiro... Não como remendo para rapazes em risco de dispersão escolar. O que fazem os jovens nestes ambientes? Guiados, metem as mãos na massa, experimentam. E começam a descobrir que podem amar aquilo que fazem. Não só ensinando a técnica, mas fazendo apaixonar. É preciso alguém que diga: «Experimenta, olha, faz, desfaz». Alguém que te faça descobrir o teu coração. O trabalho “perde-se” quando o seu sujeito perde o coração. E, por conseguinte, também a capacidade de construir que este encerra. Se recuperas o coração, recuperas uma pista para trabalhar.
Em resumo, é preciso testemunhas. Mas quem?
É preciso pessoas que dão a vida para que um outro viva. «Não existe sacrifício maior do que dar a vida pela obra de outro». Gente que tenha gosto no trabalho quotidiano e o faça nascer nos outros, ensinando técnicas e vontade de trabalhar, qualquer que seja a condição em que se encontra.
E a fé, o que é que acrescenta?
Quando comecei a trabalhar, mostraram-me um quadro que tinha uma cruz escondida atrás. Como que dizendo: «Vês? Ninguém t’a tira, mas aqui não deve ser vista». Diante da objecção que para estar ali devia ser “só universidade”, percebi que, para mim, a fé não era uma pertença ideológica a esconder ou ostentar. Era Um Outro que me fazia companhia, o mesmo que foi carpinteiro dois mil anos antes. Ele dialogou com o meu coração, como presença invisível sempre próxima de mim, esculpido nos rostos da comunidade cristã na qual encarnou e que me corrigiram, inspiraram, confortaram, aconselharam e, sobretudo, que me ensinaram a reconhecê-Lo comigo. Que ajuda para viver o trabalho de forma mais humana!