Julián Carrón em audiência com o Papa Francisco em 2018

“Se você não acha que Francisco seja a cura, você não entendeu qual é a doença”

O Papa e o caminho da Igreja nesta "mudança de época" que vivemos. Na sequência da publicação em Inglês de "A beleza desarmada", publicamos a entrevista do vaticanista americano John Allen, em Crux, com o responsável de CL

Ainda que muitos católicos, especialmente os mais conservadores, achem muitas vezes o Papa Francisco um pouco provocador para o sistema, o responsável do influente movimento eclesial de Comunhão e Libertação afirma que, se você não acha que o Papa seja a cura, então você não entendeu a natureza da doença que estamos enfrentando num mundo secularizado e pós-moderno.

MILÃO – Provavelmente melhor do que muitos outros, o padre Julián Carrón, sucessor do carismático sacerdote italiano Dom Luigi Giussani na condução do influente movimento de Comunhão e Libertação, cuja base natural está entre os católicos mais conservadores, entende que o Papa Francisco pode ser um choque para o sistema.

Ainda assim é um firme defensor de Francisco, e insiste em afirmar que, se você não acha que este Papa seja a cura, então não entendeu a natureza da doença que estamos enfrentando num mundo secularizado e pós-moderno.
“Às vezes podemos não entender certos gestos do Papa, porque não entendemos totalmente as implicações do que ele define como uma ‘mudança de época’”, disse Carrón a Crux na última segunda-feira.

“É como pensar num tumor como um simples caso de gripe, e assim a ideia de tratá-lo com quimioterapia poderia parecer drástica demais” acrescentou. “Mas, uma vez que tivermos entendido a natureza da doença, percebemos que não vamos conseguir vencê-la com aspirina”.

Em sua casa em Milão, entre outros assuntos, Carrón falou com Crux da edição em língua inglesa do seu livro A beleza desarmada (Desarming beauty) sobre a natureza do “acontecimento” cristão.
“As mudanças que estamos atravessando são tão radicais, tão sem precedentes, que entendo por que tantas pessoas não compreendem ainda o que está acontecendo, ou os gestos do Papa Francisco”, afirmou. “Mas, se não compreendermos estes gestos agora, vamos compreendê-los no dia em que virmos as consequências que estão produzindo”.

Carrón defende que o que aconteceu na modernidade foi o fato de as pessoas terem perdido de vista o que significa ser homem; a crise, portanto, é muito mais profunda do que a simples recusa deste ou daquele preceito moral, e o que hoje é necessário não são apelos morais ou argumentos teológicos, mas o poder de atração que tem uma vida cristã vivida em sua plenitude.

“Vejo que muitas pessoas estão perturbadas e embaraçadas com o Papa, assim como as pessoas estavam com Jesus na sua época – e em particular, recordemos, as pessoas mais ‘religiosas’”, declara. “Por exemplo os Fariseus, que não enxergavam todo o drama da situação dos homens que tinham à sua frente, queriam um pregador que simplesmente dissesse aos homens o que deviam fazer, impondo-lhes pesados fardos”.

“Tudo isto não era suficiente para fazer a humanidade recomeçar, depois veio Jesus, que entrou ns casa de Zaqueu sem chamá-lo de ladrão e pecador; isso poderia ter parecido uma fraqueza. Pelo contrário, ninguém desafiou Zaqueu como Jesus”, disse Carrón. apenas entrando na casa dele.

“Todos os que tinham condenado a sua conduta de vida não moveram um único milímetro da sua posição. Foi aquele gesto totalmente gratuito de Jesus que teve sucesso onde os outros tinham falhado”, declarou.

Fundado por Giussani em 1954, Comunhão e Libertação é um movimento eclesial laico na Igreja Católica; está particularmente difundido em Itália, mas hoje está presente em cerca de oitenta países do mundo. Teve ilustres apreciadores ao longo dos anos, entre os quais o Papa Emérito Bento XVI, que celebrou as exéquias de Giussani e tem para seus serviços domésticos algumas mulheres do grupo de CL dos Memores Domini.

Nascido na Espanha, e durante muito tempo ao lado de Giussani, Carrón assumiu a condução de Comunhão e Libertação em 2005, depois da morte do fundador.
Longe de considerar que há uma fratura entre Francisco e seus predecessores, João Paulo II e Bento XVI, Carrón insiste em afirmar que Francisco encarna hoje a “radicalização” de Bento.

“Diz as mesmas coisas, mas de uma forma que se transmite a qualquer um, simplesmente através dos gestos, sem com isso reduzir de modo algum a profundidade do que disse Bento”, afirmou.

Substancialmente, o livro de Carrón é uma síntese da visão da vida cristã proposta por Giussani, tal como foi amplificada por cada um dos três últimos Pontífices. A ideia chave é a de que o Cristianismo é uma “beleza desarmada”, ou seja, uma forma de viver que não se impõe por nenhum outro poder que não seja o da atração que ela tem em si mesma.

“Queria mostrar que o poder da fé está em sua beleza, em sua atratividade. Não precisa de nenhum outro poder, de nenhum outro instrumento, ou de circunstâncias particulares para resplandecer, assim como as montanhas não precisam de mais nada para nos cortar a respiração”.

A seguir, a primeira parte da conversa de Crux com Carrón:

Crux: O título A beleza desarmada é uma resposta explícita ao terrorismo e à violência de matriz religiosa?
Carrón: É uma resposta explícita a uma forma diferente de ver a fé, a partir daquilo que a torna única. São Paulo uma vez definiu o que Deus realizou ao fazer-se homem como um “despojar-se” de sua divindade, de seu poder divino. Jesus apareceu na história despojado de qualquer forma de poder, unicamente com o esplendor de sua verdade que emanava da sua pessoa, da sua forma de agir, de olhar, de entrar em relação com os outros, sua misericórdia, sua capacidade de abraçar as pessoas e compartilhar sua vida, de compartilhar as feridas dos outros. Toda a força do seu amor por nós passou pela sua “humanidade desarmada”.

Um dos ensaios do livro foi escrito logo após o ataque ao Charlie Hebdo em Paris; nele o senhor afirma que o desafio é criar um espaço para “um encontro real entre propostas de significado, ainda que diferentes e múltiplas”. Pode explicar-nos a que se refere?
Muitas pessoas estão à procura de um significado para sua vida, de uma razão para ir trabalhar, para criar uma família, para enfrentar a realidade, e muitas vezes não a encontram e tentam fugir de várias maneiras. A questão fundamental é esta: num momento em que o valor absoluto para nós, modernos, é a liberdade, a única possibilidade de não voltarmos a cair na força para limitar a liberdade dos outros é que exista um espaço onde as pessoas possam encontrar-se livremente, para compartilhar o significado da vida, daquilo que cada um acha que significa viver plenamente. Se isto não acontece, então o vazio que permanece acaba por gerar conflitos.
As pessoas não podem viver sem um significado, e se o vazio permanecer acabaremos por gerar pessoas que, mais cedo ou mais tarde, sofrerão a tentação da violência... em casa, no trabalho, e de algum modo acabarão no terrorismo. O problema é como responder à falta de significado que muitas vezes vemos na sociedade hoje. Só podemos sair disso numa sociedade livre, num espaço livre, no qual as pessoas possam encontrar-se e confrontar-se a respeito das formas com que cada um escolhe viver, e sobre como é possível fazer escolhas diferentes.

O senhor diz que estamos experimentando uma “profunda crise do humano”. Acredita que o Papa Francisco tenha também a mesma percepção, e como lhe parece que ele está tentando responder a isso?
Ele tem plena consciência de que a primeira questão diz respeito à natureza da crise, porque ela é muitas vezes reduzida simplesmente a uma crise econômica, ou a um problema de valores, enquanto é muito mais profunda. Diz respeito ao que nos torna homens, com a passividade que vemos em muitos jovens, que parecem não ter motivações nem sequer para sair de casa…

É o que Giussani chamava de “o efeito Chernobyl”, não é? É como se uma espécie de radiação tivesse esvaziado as pessoas de significado.
Exato, este esvaziamento da humanidade que deixa as pessoas incapazes de sentir um verdadeiro interesse por alguma coisa. É um problema que tem sua raiz na indiferença, na apatia. Muitas vezes, tentamos responder a isso com regras, com procedimentos, para tentar ao menos limitar a violência que muitas vezes nasce desta indiferença. Mas tudo isto responde às consequências, não vai à raiz do problema. Enquanto não respondermos às necessidades reais das pessoas, revelando a sua capacidade de encontrar um significado que torne a vida vivível, não responderemos inevitavelmente à real natureza da crise, cujas raízes estão nesta redução do que significa ser homem.
E este é o motivo por que estou otimista, porque estou convencido de que o cristianismo pode oferecer sua maior contribuição precisamente nesta situação. Cristo começou tudo encontrando pessoas que, olhando para ele, deram por si dizendo: “Nunca vimos coisa igual”, e o seguiram. Não havia alternativa à sua presença, e aquele encontro deu início à maior revolução da história. A única questão é se somos conscientes da incrível graça que recebemos como cristãos.

Como é que, na sua opinião, o Papa Francisco leva adiante esta ideia da fé como uma experiência que se enraíza num encontro?
Ele é capaz de apresentá-la da forma mais simples, através dos gestos que faz, da sua atenção às pessoas, da forma como fala com todo o mundo. Leva as pessoas a entender da maneira mais simples, com os gestos, da mesma forma com que Jesus se fazia compreensível por meio dos gestos.
É difícil ajudar as pessoas a compreender todas as dimensões de fenômenos como a imigração, por exemplo, mas quando ele foi a Lampedusa tornou tudo visível num instante, era impossível não entender o que estava dizendo. Ele nos fez sentir o desejo de entender de onde vinha tudo isto. O mesmo acontece quando se aproxima de alguém que tem problemas no trabalho, ou que precisa de perdão. É como Jesus, que deparava com todas as feridas do seu tempo e respondia a essas feridas.

E, no entanto, parece que alguns não entendem o Papa, ou talvez não concordem com ele. Citou Lampedusa... o Presidente da Câmara, que era famoso em todo o mundo por sua ação de acolhimento aos refugiados, acabou de ser derrotado nas eleições, ficando em terceiro.
As mudanças que estamos atravessando são tão radicais, tão sem precedentes, que entendo por que tantas pessoas não compreendem ainda o que está acontecendo, ou os gestos do Papa Francisco. Mas, se não compreendermos estes gestos agora, vamos compreendê-los no dia em que virmos as consequências que estão produzindo.
Se começarmos a levar a sério o problema da imigração, o problema da pobreza, as dificuldades de tantas pessoas feridas, sozinhas, necessitadas de misericórdia, isso conduzirá a um determinado clima social e então veremos as consequências de uma forma que nem sequer imaginamos. Por exemplo, quando o Papa usa o termo “muros”, está se referindo a situações que teriam sido inimagináveis apenas dez ou quinze anos atrás. Quero dizer, um muro no coração da Europa mais de vinte anos depois da queda do muro de Berlim?
Nossa capacidade de entender [o Papa] depende da nossa capacidade de compreender a natureza do desafio que temos à frente. Às vezes não entendemos certos gestos do Papa porque não entendemos a fundo as implicações do que ele define como uma “mudança de época”. É como pensar num tumor como um simples caso de gripe, e assim a ideia de tratá-lo com quimioterapia poderia parecer drástica demais. Mas, uma vez que tivermos entendido a natureza da doença, percebemos que não vamos conseguir vencê-la com aspirina.

No livro, o senhor passa de maneira desenvolta das citações de João Paulo II a Bento XVI e a Francisco. Muitas vezes esses três papas são postos em contraposição uns com os outros, mas o senhor parece ver uma grande continuidade entre eles.
Vejo uma grande harmonia, ainda que cada um deles tenha tido de enfrentar tempos diferentes. É o que o cristianismo sempre fez. Cada um enfrentou um conjunto de condições históricas nas quais a vida cristã era chamada a desenvolver-se, e cada época reúne um conjunto de desafios diferentes aos quais o cristianismo é chamado a responder de forma concreta. João Paulo II surpreendeu toda o mundo com sua capacidade de comunicação. Parecia difícil encontrar outro como ele, e depois chegou Bento, que impressionou todo o mundo com sua inteligência, sua capacidade de discernimento e de esclarecer certos temas de um modo que mais ninguém teria conseguido fazer.
Depois de Bento, mais uma vez parecia que não poderia haver mais ninguém como ele. Porém chegou um papa que, a meu ver, é a radicalização de Bento. Diz as mesmas coisas, mas de uma forma que se transmite a qualquer um, simplesmente através dos gestos, sem com isso reduzir de modo algum a profundidade do que disse Bento. Parece-me que os três foram à raiz das coisas, não ficaram na superfície, mas foram ao coração do que estava acontecendo concretamente em sua época.
Neste sentido, há uma harmonia que impressiona também a muitos leigos, e é a capacidade que a Igreja parece ter de dar uma contribuição nova e original para enfrentar os novos desafios que tem pela frente. Temos nestes três papas um exemplo claríssimo: cada um deles, no seu momento histórico, soube responder aos desafios desse momento.

O senhor não gosta dos rótulos políticos, mas sabe bem que Comunhão e Libertação goza de uma grande reputação na Igreja, especialmente entre os católicos mais “conservadores”. Alguns destes estão hoje preocupados em relação ao Papa Francisco, acham que ele está, de alguma maneira, “reduzindo” as coisas, deixando de lado ou minimizando a doutrina tradicional. O que diria a eles para tranquilizá-los?
A primeira coisa que eu diria é que devemos começar pelo reconhecimento da natureza real do desafio que temos pela frente. Não podemos compreender plenamente a ação do Papa Francisco se não compreendermos a natureza do que está acontecendo, desta “mudança de época”. Se o nosso diagnóstico não levar isto em conta, não poderemos entender a importância de certos gestos deste Papa. Se, pelo contrário, começarmos a entender a profundidade da crise, alargaremos os nossos horizontes e começaremos a ver certos gestos como uma resposta profética a esta nova situação.
Vejo que muitas pessoas estão perturbadas e embaraçadas com o Papa, assim como as pessoas estavam com Jesus na sua época – e em particular, recordemos, as pessoas mais “religiosas”. Por exemplo os Fariseus, que não viam todo o drama da situação dos homens que tinham à sua frente, queriam um pregador que simplesmente dissesse aos homens o que deviam fazer, impondo-lhes pesados fardos. Tudo isto não era suficiente para fazer a humanidade recomeçar, depois vem Jesus, que entrou ns casa de Zaqueu sem chamá-lo de ladrão e pecador; isso poderia ter parecido uma fraqueza. Pelo contrário, ninguém desafiou Zaqueu como Jesus fez, apenas entrando na casa dele. Todos os que tinham condenado a sua conduta de vida não moveram um único milímetro da sua posição. Foi aquele gesto totalmente gratuito de Jesus que teve sucesso onde os outros tinham falhado.
O que é necessário para mudar uma sociedade como aquela em que vivemos? O método usado por Jesus com Zaqueu. [Com o Papa Francisco] temos de nos lembrar do modo com que muitas pessoas de bem, sinceramente religiosas, reagiram a Jesus. Para elas, a forma como Jesus agia era uma espécie de escândalo, no sentido mais forte do termo, um obstáculo para crer.

Está dizendo que os fiéis católicos que criticam o Papa Francisco, por exemplo em relação à Amoris Laetitia, não entenderam o que está em jogo na cultura de hoje?
Acho que sim. Acredito que o que falta hoje é uma compreensão profunda do desafio que temos de enfrentar no plano humano. Às vezes os críticos queriam que o Papa repetisse certas frases, certos conceitos, mas eles são vazios para muitas pessoas, e o são há muito tempo. Ou querem ter regras para seguir, como se isso pudesse curar as pessoas, ou pudesse levar alguém a “verificar” a fé na própria experiência. O mesmo problema que temos todos, inclusive nós, que muitas vezes não somos capazes de transmitir a confiança no futuro aos nossos colegas de trabalho, aos nossos amigos. Só se formos corajosos para reconhecer a situação, sem sentirmos sempre a necessidade de nos defender, é que talvez aprendamos alguma coisa.

É óbvio que o que preocupa algumas pessoas é o fato de que Jesus, quando foi ao encontro de Zaqueu, tinha o objetivo de fazer com que ele mudasse o seu coração. Hoje, para alguns, parece que o Papa, e com ele certos padres e bispos, se empenham num “encontro” sem a mesma expectativa de que seja para uma conversão dos erros.
A conversão não depende do gesto, depende de nós. Quando vamos ao encontro de um ladrão, levamos a nós mesmos a esse encontro. Jesus não teve problemas em ir à casa de Zaqueu, sem precisar explicar-lhe toda a sua teologia ou as regras morais. Foi porque a verdade se encarnava na sua pessoa. O problema que se põe é: que pessoa encontra quem nos encontra? Se o que encontram em nós é simplesmente um manual de coisas para fazer, já as conhecem e não são capazes de pô-las em prática. Mas, se se encontrarem diante de uma pessoa que lhes oferece amor, começarão a desejar ir atrás daquela pessoa e ser como ela, que foi o que aconteceu com Jesus.

Creio que muitos estariam de acordo sobre o fato de não ser preciso partir das regras, mas o que preocupa as pessoas é se chegaremos alguma vez a ter regras.
Se uma pessoa se apaixona, a um certo ponto isto acontece naturalmente. Quando uma pessoa se casa, e está realmente apaixonada, é natural que deseje limpar a casa, cozinhar um bom almoço, e por aí afora. O problema hoje é que as pessoas não estão encontrando ninguém por quem faça sentido empenhar-se a este ponto. Este gênero de encontro não é um código ético.

Concretamente, muitíssimas pessoas, inspirando-se no Papa Francisco, afirmam hoje que a Igreja deve acompanhar o mundo LGBT, por exemplo, ou os fiéis divorciados recasados civilmente, e nós o fazemos regularmente. Mas o que os críticos dizem é: tudo isto não deveria evoluir até o ponto de dizer que a conduta deles deve mudar?
Vou responder com um exemplo. Achamos muitas vezes que a alternativa é não dizer nada ou ser ambíguo. Eu conheci um grupo de casais, famílias, que reunia entre 18 e 20 famílias; nenhum desses casais era casado, por diversas razões, às vezes até compreensíveis. Algumas famílias pertencentes a Comunhão e Libertação começaram a passar um tempo com eles, sem lhes dizer nada a respeito da sua situação “irregular”. Com o passar do tempo, todos se casaram! Encontraram-se na frente de pessoas que viviam a vida de família de uma forma que não podia deixá-los indiferentes. No fim, casaram-se todos, não porque alguém lhes explicou as regras ou a doutrina cristã sobre o casamento, mas porque não queriam perder aquilo que viam na casa daquelas outras famílias.
No cristianismo, a verdade se fez carne. A única maneira que temos para compreender a fundo esta verdade feita carne é encontrando e olhando para uma testemunha. Toda a liturgia do Natal diz respeito à plenitude de Deus que se torna visível. Se não se tivesse tornado visível, nunca o teríamos compreendido... este é o grande desafio.
É inútil perguntar aos outros se eles são tudo o que deveriam ser. A verdadeira questão é: nós somos testemunhas convictas da fé? Ainda acreditamos na beleza desarmada da fé? Uma pessoa apaixonada sabe o que fazer, e uma pessoa apaixona-se encontrando alguém. Isto é o que faz da experiência de Jesus uma “revolução copernicana” para a humanidade.

***

Recentemente, Rod Dreher defendeu que nós, cristãos, deveríamos abandonar as guerras culturais no Ocidente porque já as perdemos, e o máximo que podemos esperar é a “opção beneditina”, ou seja, a conservação de pequenas ilhas de fé num contexto de uma cultura hostil e decadente. O senhor parece defender que deveríamos deixar para trás as guerras culturais, sem renunciar àquelas posições, mas por um motivo diferente.
Sim, com certeza. Sempre me impressionou a contraposição entre tentar transformar o cristianismo numa religião civil e tentar transformá-lo em algo exclusivo do foro privado. Para mim, é como tentar corrigir o desígnio de Deus. Pergunto-me, quem jamais apostaria que Deus começaria a comunicar-Se ao mundo com o chamado de Abraão? Era a forma de proceder mais inverosímil e desconcertante que se poderia imaginar.
A escolha não pode reduzir-se a uma opção entre as guerras entre culturas e um cristianismo esvaziado de conteúdo, porque nenhuma destas duas hipóteses tem a ver com Abraão e a história da salvação. Abraão foi escolhido por Deus para começar a introduzir na história uma nova forma de viver, que com o tempo pudesse gerar uma realidade visível em condições de tornar a vida digna, plena.
Se Abraão estivesse aqui hoje, na nossa situação de minoria, e fosse falar com Deus para dizer: “Ninguém me deu ouvidos”, o que Deus lhe diria? Sabemos muito bem o que lhe diria: “Foi por isso que o escolhi, para começar a pôr na realidade uma presença capaz de mostrar – ainda que ninguém acredite em vocês – que eu farei de você um povo tão numeroso que a sua descendência será numerosa como as estrelas do céu”.
Quando Ele enviou seu filho ao mundo, despojado de seu poder divino para se fazer homem, fez a mesma coisa. Como disse São Paulo, ele veio para nos dar a capacidade de viver a vida de um modo novo. É isto o que gera uma cultura. A pergunta para nós é se a situação em que estamos hoje nos oferece a oportunidade de reencontrar a origem do desígnio de Deus.

O senhor parece bastante otimista sobre o fato de isso ser possível.
Com certeza. Sou totalmente otimista, por causa da própria natureza da fé. Meu otimismo se baseia na natureza da experiência cristã. Não depende da minha capacidade de leitura da realidade, do meu diagnóstico da situação sociológica. O problema é que, para sermos capazes de recomeçar deste ponto de partida absolutamente original, temos de voltar às origens da fé em si, ao que Jesus disse e fez.
Se há um motivo de pessimismo, está no fato de que muitas vezes reduzimos o cristianismo ou a uma série de valores, a uma ética, ou simplesmente a um discurso filosófico. Isto não é atraente, não tem o poder de fascinar ninguém. As pessoas não sentem a força de atração do cristianismo. Mas, justamente porque a situação que estamos vivendo hoje é tão dramática, de qualquer ponto de vista, paradoxalmente é mais fácil propor a novidade do cristianismo.

Se olharmos para a Europa hoje, está crescendo uma nova geração que de fato não esteve envolvida nas velhas batalhas que assistiram à contraposição entre religião e secularismo; são pessoas que cresceram numa cultura abundantemente pós-religiosa e, consequentemente, muitas vezes olham para este fenômeno não com animosidade, mas antes com curiosidade. Tudo isto configura uma nova fase para a evangelização?
Sim, há uma nova fase. A pergunta é se nós, cristãos, vamos saber tirar proveito desta oportunidade para entender, nós em primeiro lugar, o que é de verdade a fé, o que significa ser cristão, por que ser cristão deve ser interessante para nós e para os outros. Temos de aprofundar este ponto, independentemente da preocupação com os números, e projetar-nos unicamente na plenitude da experiência que Cristo põe na nossa vida.
Estou pensando numa expressão que Giussani usava muitas vezes, falando da fé; dizia: “A fé é uma experiência presente, onde encontro na minha experiência pessoal a confirmação de sua conveniência humana”. Sem isso, a fé não será capaz de resistir num mundo em que tudo diz o contrário de nós.

Portanto a sua estratégia para a evangelização no início do século XXI é viver a fé de uma maneira em que essa “experiência de confirmação” possa verificar-se, e depois, gradualmente, introduzir os outros a esta forma de vida?
Quando um cristão vive a fé com este tipo de alegria, com esta plenitude, é evidente que quando vai para o trabalho, ou quando está com os amigos, ou quando está no aeroporto, os outros vão ver essa novidade nele. Se você chega ao trabalho às 8 da manhã, e no seu local de trabalho encontra um colega que está cantando, que o abraça e divide com você suas fraquezas e dificuldades, você acaba por perguntar: “O que é que faz você chegar ao trabalho cantando às 8 da manhã?”.
Isto comunica o cristianismo muito mais do que muitas outras coisas, mais do que todas as motivações éticas, porque, quando uma pessoa vê uma coisa deste gênero, acaba naturalmente por perguntar: “De onde vem essa alegria? De onde vem essa plenitude de vida?”. Pode não pensar imediatamente que a origem dessa felicidade se chama Jesus Cristo, que se chama fé. Mas, quando começa a perceber que essa maneira surpreendente de viver no mundo real, tão feliz, tão alegre, tem sua raiz na fé, então se torna interessante.
O cristianismo, em resumo, se comunica vivendo-o. T. S. Eliot uma vez perguntou: “Onde está a vida que perdemos vivendo?”. Para nós é o contrário; nós ganhamos a vida vivendo na fé. Se não for assim, não seremos interessantes para ninguém, nem mesmo para nós. Em outras palavras, foi a Igreja que abandonou a humanidade, ou foi a humanidade que abandonou a Igreja?

Propor não uma série de teorias, mas uma forma de vida?
É uma experiência de vida.

O Papa Francisco fala muito de criar uma “cultura do encontro”, e o conceito de encontro também era fundamental para Giussani. Olhando para a Igreja hoje, quais são os exemplos de uma “cultura do encontro” que mais o impressionam?
Sempre fico impressionado com exemplos de criação de espaços para o encontro entre pessoas totalmente diferentes entre si. Por exemplo, aqui em Milão nós [Comunhão e Libertação] mantemos um reforço escolar, um centro, no qual grupos de professores – alguns membros do Movimento, outros não – oferecem seu tempo livre para ajudar jovens que têm problemas na escola. Entre os jovens há italianos, imigrantes, fiéis de várias religiões, na maioria católicos ou muçulmanos e lá se assiste um espaço de encontro. Provêm de situações muito diferentes, e encontram ali um lugar onde a sua humanidade renasce. Uma vez, um rapaz veio com uma barra de ferro na mochila; em circunstâncias diferentes teria sido tratado como um terrorista. Mas estando com aquelas pessoas, libertou-se de toda a sua agressividade, e acabou por se tornar um dos responsáveis daquela iniciativa. Este é o poder do encontro.

Conhece também exemplos fora do Movimento?
Bem, obviamente não conheço o mundo todo, mas posso dar alguns exemplos. Às vezes frequento paróquias de Roma e Milão, e é possível ver como esse espírito de encontro está vivo nelas. Conheço um sacerdote aqui em Milão que tem uma relação com alguns detentos. Tem uma capacidade impressionante de se envolver com eles, de uma forma que os ajuda a reconstruir suas vidas.
Depois há a experiência da APAC no Brasil, aquela rede de prisões sem guardas e sem armas, cuja taxa de reincidência, que nas prisões normais gira em torno dos 80%, cai para 15%. Pode-se achar que é uma ilusão, que na verdade só estão encorajando a criminalidade. Muito pelo contrário, é um exemplo do que acontece quando há um encontro real. Tudo o que vai contra a verdadeira humanidade, cedo ou tarde desaparece.
Por exemplo, havia um detento que tinha fugido de um determinado número de prisões, e que por acaso foi parar numa dessas APACs, e nunca mais tentou fugir. Um juiz ficou tão impressionado com esta história que quis ir à prisão para lhe perguntar: “Por que você não tentou fugir?”. E o detento respondeu: “Porque do amor ninguém foge”.
Às vezes o nosso problema é que já não acreditamos em certas coisas. De fato, pensamos que qualquer outra solução, ainda que violenta, é mais eficaz do que o poder do amor.

Está dizendo que no fim o nosso “realismo” não é assim tão realista.
Isso é certo. Demos por óbvio que certas coisas são uma ilusão, e perdemos a única oportunidade de ir realmente ao fundo do coração de cada um. Uma vez mais, isto é o que me torna otimista – a fé é eficaz!
Como disse o Papa Bento XVI há alguns anos, ainda existe uma oportunidade para o cristianismo hoje, neste mundo? Respondeu que sim, porque o coração do homem precisa de algo que só Cristo pode dar. A capacidade de corresponder ao verdadeiro desejo último do homem é o que tornará o cristianismo atraente.

O senhor parece dizer que devemos ter coragem também neste sentido, não ter medo de desafiar a opinião comum desta maneira.
Aquilo com que não podemos nos contentar é um cristianismo reduzido, um tanto ambíguo, achando que esse seja o caminho para encontrar a todos. Não, temos de vivê-lo de forma corajosa, plenamente, devemos estar convencidos, com a mesma audácia com que Jesus entrou na casa de Zaqueu, sem de modo algum censurar as coisas que ele tinha feito, mas desarmado, respondendo ao que ele tinha no coração. Historicamente, este é um método absolutamente novo. Jesus impressiona São Paulo da mesma forma com que impressiona a nós. Não há nada que desafie mais o coração de um homem do que um gesto como este, um gesto absolutamente surpreendente.

Um conceito chave de Giussani, que o senhor repete em todo o livro, é que a fé é um “acontecimento”. Pode explicar o que significa isso, e por que é tão importante?
A fé ser um acontecimento significa que a vida de uma pessoa muda quando ela encontra um fato, como aconteceu a João e André quando encontraram Jesus. Não se pode evitar a realidade de um fato que ocorreu, não se pode eliminá-lo. Pensemos em São Paulo, que era um perseguidor dos cristãos, tentava eliminá-los; o encontro com Cristo vivo revolucionou seu modo de pensar.
É como a cena descrita por Manzoni em Os noivos... a experiência do encontro com alguém tão capaz de perdão foi tão surpreendente, que era impossível não se abandonar à sua força fascinante. Quando o cardeal cumprimenta o Inominado e este lhe diz: “Se vou voltar? Quando o senhor me recusar, vou ficar obstinado à sua porta, como o pobre. Preciso falar-lhe! preciso ouvi-lo, vê-lo! preciso do senhor!”.
Este é o tipo de experiência arrebatadora que muda a vida, isto é a fé. [A personagem do cardeal em Os noivos é inspirada na figura do cardeal Frederico Borromeo, de Milão, 1564-1631].
O Papa Bento sempre disse que na origem do cristianismo não está uma doutrina, um ensinamento, mas o encontro com Cristo. A forma do “acontecimento” cristão é esse encontro, não de forma virtual ou apenas como uma proposta que qualquer um faz. Não, é um encontro tão forte, que você não quer perdê-lo pelo resto da vida.

O objetivo de seu livro é despertar a consciência deste acontecimento?
Exatamente. O problema é como comunicar este acontecimento às pessoas. É como a experiência do amor, de se apaixonar... não acontece porque se fala disso, acontece porque uma pessoa se apaixona.

Num dado momento, o senhor escreve que o objetivo da comunidade – referindo-se talvez a Comunhão e Libertação, mas também de forma mais geral à Igreja – é o de gerar “adultos na fé”. O que quer dizer?
Quero dizer pessoas que fiquem regeneradas pela participação na comunidade cristã, no sentido de que adquiram uma nova capacidade de enfrentar o real, uma nova capacidade de ser livres de uma maneira diferente de antes. E uma nova capacidade de transmitir um sentimento de maravilhamento ao outros. Se o cristianismo não for capaz de gerar um novo tipo de pessoas, então ficará separado das suas vidas.
Não há nada de mais decisivo, no momento presente, do que a capacidade de gerar adultos na fé, adultos que vivam com liberdade entre os outros e possam testemunhar a fé, não só quando vão à igreja ou participam de qualquer “outra” atividade diferente da vida quotidiana, mas no concreto do seu trabalho e da sua vida.
São necessárias pessoas que possam levar a novidade da fé ao coração do mundo, que suscitem a pergunta: “Onde será que foram buscar essa novidade, esse frescor? O que está por trás?”. A capacidade de responder a esta pergunta vai conduzir naturalmente as pessoas a algo maior e melhor.
Este é um testemunho real da fé... ainda que os outros não cheguem a identificar o nome de Cristo, só o olhar por aquela pessoa já torna impossível não querer perceber o que a faz ser assim. Vão querer saber quem é o “terceiro”, e este é um testemunho.
Só um verdadeiro testemunho pode tornar visível e tangível o acontecimento da fé... a capacidade de tornar a fé algo razoável para os homens só pode vir de uma experiência concreta dela, de um “acontecimento”. É isto o que permite que uma pessoa não tenha medo de não ser entendida, e que possa resistir à tentação de reduzir o cristianismo a algo diferente.
Pergunto-lhe uma coisa: por que às vezes nós achamos que, para tornar compreensível um gesto gratuito, ele tenha de ser reduzido a outra coisa, tenha de ser menos gratuito? Quanto mais gratuito é, tanto mais deveria ser surpreendente e atraente, não? Não devemos reduzir as coisas para que elas sejam entendidas.
Às vezes achamos que, se uma pessoa não tem fé, devemos reduzir as coisas para que as entenda. Mas o contrário é que é verdade – quanto mais um gesto é gratuito, como perdoar alguém por uma ofensa em vez de lhe responder do mesmo modo, tanto mais surpreenderá radicalmente aquela pessoa. Não é que tenhamos de reduzir, para evitar o escândalo... ninguém nunca se escandalizou por ser perdoado.

Na última página do livro, o senhor escreve que a letícia é como a flor do cacto. O que quer dizer?
A fé introduz na vida uma atração que, ao mesmo tempo em que nos atrai para si, não nos deixa sozinhos. Nada desafia mais uma pessoa do que algo que responde em total plenitude a todas as suas expectativas. Nada transforma radicalmente a vida como a realização de todas as suas promessas! Eis por que a fé é como o cacto... é lindíssimo e nos atrai, mas ao mesmo tempo espeta. Podemos aceitá-la ou recusá-la, mas nada transforma e perturba a vida com a mesma força.

Poderíamos dizer que este livro é uma tentativa de expressar a visão da evangelização que nasce de Giussani e que foi amplificada pelos três últimos pontífices?
Para mim, a resposta é sim.

Texto original em inglês: cruxnow.com