Javier Prades López

Temos algo em comum?

Um debate aceso em todo o Ocidente abre uma pergunta: «Como favorecer que a política não acabe reduzindo-se à defesa de interesses particulares ou a uma proteção abstrata do interesse geral?». A contribuição de Javier Prades no jornal espanhol ABC
Javier Prades López*

As últimas consultas eleitorais nos Estados Unidos e na Europa reavivaram o debate entre políticas que apoiam “movimentos identitários” e as que reivindicam a “cidadania”. As primeiras favorecem os interesses de grupos específicos, e as segundas privilegiam os aspectos formais do procedimento democrático, como garantia de igualdade na sociedade civil. O debate jurídico e político é complexo, mas traz à luz algo que incumbe aos atores da vida social: como favorecer que a política não acabe reduzindo-se à defesa de interesses particulares – às vezes mediante lobbies muito fortes – ou a uma proteção abstrata do interesse geral?

A resposta ultrapassa os limites estritos da política e questiona a cada um de nós. Precisamos de vozes de todos os setores sociais que assumam a responsabilidade de mostrar o que compartilhamos todos nós que vivemos na Espanha. Poderíamos aceitar que existe uma espécie de “nós” se, por exemplo, reuníssemos numa mesa representantes de todos os partidos parlamentares? E se reuníssemos espanhóis radicados nesta nação há séculos com imigrantes recém chegados, ou castelhanos com catalães? E se nós, crentes, sentássemos à mesa junto com agnósticos ou ateus?

Nesta época parece mais fácil exigir o “nosso” em face do “dos outros”. Custa-nos ceder ao trabalhoso desafio de identificar um “nós” que não exclua ninguém, supondo que seja possível. Olhando bem, não podemos fugir à tarefa de afirmar um “nós” de alguma forma. Fazemo-lo continuamente. Por isso é oportuno olhar como isso acontece.

Os pais de Gabriel Cruz, o menino espanhol assassinado em março.

Trata-se de voltar a pensar sobre as características do humano enquanto tal. O mais delicado é estabelecer o modo como se discernem as características comuns, quando vemos as dificuldades pelas quais elas atravessam as categorias básicas de lei natural ou de bem comum no terreno moral e jurídico. Cabe dizer algo similar sobre o debate recente entre multiculturalismo, “movimentos identitários” e “cidadania”, com todas as suas variantes. Que caminho nos convém seguir?

Um primeiro passo consiste em admitir que as diferenças não podem chegar até o ponto de negar o comum. Pensadores como Husserl ou Wittgenstein, Lévinas ou Derrida recordam-nos que a estranheza e a incompreensibilidade só são possíveis num contexto de compreensibilidade. Sem isto, não se poderia nem sequer advertir o estranho. Somos diferentes, mas não radicalmente estranhos: há entre nós – os seres humanos – uma identidade mais profunda do que todas as diferenças, precisamente a que possibilita perceber o outro como diferente de mim. De fato, quem é o “outro”? É sempre um alter ego, é “outro como eu, mas não sou eu”. Se o “outro” não fosse compreendido como um “eu”, obscurecer-se-ia sua alteridade humana e com ela sua dignidade fundamental.

Tendo por válida essa abordagem, urge encontrar um método para alcançar essa aceitação compartilhada. Depois da crítica às ideologias no século XX, não será suficiente aplicar um determinado sistema de ideias. Será necessário começar por um “reconhecimento”: é preciso surpreender – por assim dizer, em ato – os traços humanos que estão sendo tratados. Uma criança não se contenta com saber que, em geral, as mães amam seus filhos, mas precisa da experiência de ser amada concretamente por sua mãe. A partir do amor efetivo da mãe, a criança compreenderá as afirmações de valor universal sobre o amor entre mães e filhos.

Temos de iniciar um processo paciente de observação da vida social, de como se apresenta nas tarefas cotidianas e na opinião pública. A educação e a cultura serão tais se permitirem identificar aquilo a que Luigi Giussani chama nossa «experiência elementar». Com este termo, refere-se ao núcleo de evidências e exigências que constituem o coração da pessoa em sua relação com a realidade. Ao usar a noção de experiência, ele sugere que não se trata tanto de elaborar de antemão uma teoria sobre o homem e logo aplicá-la, mas de observar sua situação concreta na história, sempre aberta a uma relação mais plena. As manifestações da beleza, do bem, da verdade, da justiça... aparecem como uma promessa por cumprir, à qual não conseguimos dar plenitude por nós mesmos. É como se cada um vivesse numa permanente «desproporção» entre o que é e o que deseja ser, entre o que conhece efetivamente e o que quer alcançar, sem tréguas. No momento em que o que deseja se mostra ante seus olhos, o homem pode reconhecê-lo e acolhê-lo: «É isso!», e ao mesmo tempo se vê encaminhado para «mais além». A partir da circunstância concreta abre-se o horizonte infinito da pessoa. É uma inquietude que se torna familiar para nós.

Ajudemo-nos a evocar os aspectos elementares do humano que temos em comum. Quando o copiloto da Germanwings conduziu propositalmente seu avião contra os Alpes, todos nós sofremos uma dor profunda pelas vítimas, e sentimos um calafrio ao nos dar conta do que acontece na sociedade quando se trai uma relação fundamental de confiança. Pudemos entender na hora que a confiança é um valor irrenunciável. Quando a mãe de Gabriel nos pediu que não alimentemos o rancor ou o ódio em nome do seu Pescaíto [peixinho], atrozmente assassinado [refere-se ao assassinato recente de um menino de oito anos por parte de sua madrasta, ndt], e que agradeçamos o bem de sua vida, encontramos uma paz que não nos podiam dar as reivindicações furiosas por vingança. Identificamos em ação o bem social que é a gratidão e a não violência na busca pela justiça. Quando constatamos o que implica a difusão de notícias falsas e suas consequências tóxicas em todos os níveis da convivência, unimo-nos aos que reivindicam a exigência de verdade e de justiça para proteger a comunicação social. Graças a Deus a lista desses exemplos é mais longa.

Assim, pouco a pouco, será mais fácil olharmos juntos para nossa experiência humana elementar, aquilo que nos une. E a política poderá articular melhor a proteção dos direitos ou interesses particulares com a tutela do que realmente todos nós compartilhamos. A democracia espanhola sairá ganhando.

* Reitor da Universidade Eclesiástica San Dámaso de Madri

retirado de ABC, 30 de abril de 2018