São Paulo. A Igreja, a modernidade e a profecia de Giussani
Na apresentação da tradução do livro de Alberto Savorana, junto com o autor, o teólogo Francisco Catão fez uma viagem pela história da Igreja do último século, para enquadrar a novidade trazida pelo fundador de CLNo dia 18 de julho, no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, tivemos um grande encontro entre Alberto Savorana, o autor do livro Luigi Giussani: A sua vida, e o teólogo Francisco Catão. Foi um encontro de titãs apaixonados por Cristo e sua Igreja. De um lado, um jornalista que conviveu com Giussani por mais de 20 anos e por 5 anos se debruçou em mais de 20 mil documentos dos quais cita cerca de dois mil em seu livro, tornando-o não a narrativa sobre um homem que admirava, mas um documento repleto de experiências coladas na realidade. Um cuidado e uma precisão impressionantes. E para estabelecer um diálogo com o autor, um teólogo, grande mestre e testemunha ocular do Concílio Vaticano II trazendo um conhecimento impressionante sobre a história da Igreja dos últimos tempos e contextualizando, genialmente, o lugar em que Giussani se encontra nessa trajetória.
A seguir os principais trechos dessas colocações.
Como tudo começou
Desde bem jovem, conta Savorana, Giussani reconhece a atração que a realidade exerce sobre a pessoa e a busca do homem por encontrar seu significado. Significado este que logo descobre na pessoa – não apenas histórica, mas presente e cotidiana – de Cristo que fará com que o instante, com que cada situação da vida tenha significado. Assim, quando – logo depois de ordenado – fica muito doente e é obrigado a cuidar exclusivamente da saúde por quase cinco anos, ao invés de entrar em depressão, compreende que aquela doença é parte de seu caminho, de relacionamento com aquele amigo que descobriu: Cristo.
Assim que melhora, é enviado pelos seus superiores para dar aulas de teologia e ouvir confissões. E é, por meio dessas confissões, que se surpreende com o que a realidade estava comunicando: a despeito da imensa maioria das pessoas participarem da Igreja, descobre que aqueles jovens que frequentavam a paróquia tinham uma relação com Cristo sem incidência nas suas vidas, Cristo era um grande desconhecido para eles. Esse fato muda a sua história, que se encaminhava para torná-lo um professor de teologia, e o provoca a ser um professor de ensino médio: era necessário e urgente que os jovens tivessem um método que lhes permitisse verificar a verdade da sua vida sem que lhes fossem dadas respostas doutrinais prontas.
Aqui, se encontra a genialidade educativa deste homem que dialoga sensivelmente com a Modernidade: se fazia necessário que cada jovem confrontasse se a sua experiência correspondia ao seu desejo de infinito. Sem adultos que lhes tivessem mostrado um caminho para encontrar Cristo presente, os jovens não conseguiam afirmar mais que o mundo é bom. Era – e ainda é – o desafio da Igreja na década de 50. Montini, arcebispo de Milão e futuro Paulo VI, tinha a mesma percepção que – para o homem moderno – a Igreja, a fé, tinham se tornado algo inúteis. Foi o início da aventura educativa de Giussani, que vai dar aulas em uma escola de ensino médio: o Liceu Berchet. A ideia de uma Igreja em saída, como nos retoma sempre o papa Francisco.
Da afirmação dos valores à Igreja em saída
O professor Francisco Catão, aqui, faz uma breve e precisa retomada da história da Igreja a partir do século XIX para compreendermos onde se situa Giussani, em que momento da Igreja ele surge e qual sua importância.
A Igreja do século XIX havia se distanciado do homem, se tornara formal e sofreu um grande abalo com a Revolução Francesa, experimentando uma grande crise com a Modernidade. A forma de se fazer leitura crítica do texto sagrado, por exemplo, abalava a autoridade da Igreja. E, aqui, havia duas possibilidades: ou a Igreja enrijecia e reafirmava seu poder a fim de restaurar a importância da doutrina e de sua autoridade temporal, ou ia em busca do homem do qual se afastou, acolhendo-o, encontrando-o, ensinando-o.
Leão XIII, em 1878, foi nomeado papa e buscou restaurar a cristandade. Na encíclica Rerum novarum, definiu a relação da Igreja com as questões sociais e retificou o conceito iluminista de liberdade. Mas não foi suficiente. O que se segue são tentativas de reafirmar o poder da Igreja e seus valores. Até que, em 1922, Pio XI é proclamado papa, reconhecendo na Ubi arcano que a vida que os cristãos levam não é mais cristã. E que, portanto, é preciso congregar todas as forças da Igreja para reformar os costumes para que a doutrina e a moral da Igreja voltassem a ter uma incidência real. Defendia que a função da Igreja não é condenar o homem, como o fizera Pio X na tentativa de restaurar a ordem, mas salvá-lo.
Giussani nasce em 1922 na mesma Desio de Pio XI, e há uma certa proximidade no desejo de tornar o cristianismo presente no mundo real. Mas é com o Cardeal Montini que terá muito contato. Em fevereiro de 1963, o cardeal responde à carta que Giussani lhe enviara solicitando autorização para vir ao Brasil e o faz cinco dias antes de partir para o conclave que o elegeria Papa. Nela, Montini concede a autorização requerida, mas observa que não julga completamente correta a relevância que Giussani dá à experiência, que deve ser entendida apenas como um método, mas não como verdade fundamental da educação cristã, porque essa já está contida nas verdades de fé. Essa questão, absolutamente central para Giussani, irá ser esclarecida paulatinamente. Na encíclica Dei Verbum de Paulo VI e, também, no Catecismo de 1992, vemos reafirmada a fé não como definição, mas como algo que se descobre na experiência.
Bento XVI percebeu claramente a importância da experiência afirmando, na Deus caritas est, que o cristianismo não é uma doutrina, uma moral, mas um fato. Isto significa que o cristianismo é uma experiência. E, mais recentemente, podemos observar que os fundamentos que Giussani descreve em sua pedagogia são os mesmos que Francisco oferece como programa de governo. Isso é observável desde a Evangelium gaudium chegando ao máximo na Veritatis gaudium, onde o papa aponta a experiência como base da educação católica, e aí caímos em Giussani.
Por isso a responsabilidade dos giussianistas é muito grande: compreender o alargamento que o Espírito Santo propõe para a experiência de Giussani.
A importância e o perigo do tão falado método da experiência
Na audiência com o papa e os membros de Comunhão e Libertação em 2015, ele nos alerta que Dom Giussani nunca nos perdoaria se perdêssemos a liberdade e nos transformássemos em “guias de museus ou adoradores de cinzas”. Savorana retoma essa advertência alertando que o perigo do giussanismo é reduzir o método da experiência a um esquema. Vejamos.
Um fato com algo que acontece agora. Não é experiência se não há um presente. O encontro com uma pessoa que dá à vida uma direção decisiva. Ainda que evite tomar a responsabilidade de dizer que tudo isso é fruto de Giussani, Savorana diz que se pode notar que existe uma afinidade entre Giussani e os papas recentes, que de alguma forma Giussani, Bento XVI e Francisco fizeram e fazem a mesma experiência da fé. O que se quis registrar no livro foi que, a partir daquela carta famosa que Montini escreveu para Giussani no dia em que partiu para o conclave, Giussani escreve aquele pequeno livro sobre a experiência como resposta a esse seu bispo. Porque ele entendeu que era o ponto de reviravolta para a sua realidade, o seu presente dos anos 60. E, na primeira encíclica de Paulo VI, aparece a palavra experiência quase como conatural da experiência de Cristo.
Qual foi a resposta da Igreja do século XIX? Ela tentou defender a doutrina e a moral católica na tentativa de ressuscitar a cristandade medieval. Mas a doutrina e a moral não eram mais capazes de mover o homem moderno. Em 1987, Giussani foi convidado ao sínodo sobre os leigos por Joao Paulo II, e na sua colocação diz: «O que falta não é tanto a repetição verbal ou cultural do anúncio. O homem de hoje talvez espere inconscientemente a experiência do encontro com pessoas para as quais o fato de Cristo é uma realidade tão presente que a vida delas ficou mudada. [...] Um acontecimento que ecoe o acontecimento do início, quando Jesus levantou os olhos e disse: “Zaqueu, desce depressa, vou a tua casa”» (Luigi Giussani: A sua vida, p. 779). O método foi inventado por Cristo, seria estúpido pensar que Giussani tenha inventado o método da experiência. Porque, quando aqueles dois jovens tinham ido ouvir João Batista e eles O seguiram, a pergunta de Cristo foi: «O que estão procurando?». E a resposta: «Onde você mora?», que expressa o desejo de conhecer o outro. Jesus não responde: «Sou Jesus, a segunda pessoa da Trindade, e estou trazendo para o mundo uns tantos novos valores». Ora, o que é isso senão o método da experiência? Jesus disse: «Venham a minha casa e talvez descubram quem eu sou». Foi a descoberta de uma correspondência porque, assim que André encontra seu irmão, Pedro, diz: «Encontramos o Messias!». O evangelista não nos descreve sobre quais foram os temas da conversa com Cristo naquela tarde. Portanto imaginem a potência daquele encontro, a ponto de chegarem em casa e simplesmente dizerem: «Encontramos aquele que há séculos Israel está esperando!». E isso nos tornou protagonistas, a criatura nova sobre a qual fala São Paulo.
A experiência hodierna: «Vinde, Senhor, em meu auxílio»
O professor Catão concluiu o encontro explicando que a profunda experiencia humana é aquela em que o homem, reconhecendo sua miserabilidade, suplica incessantemente que Cristo o ilumine, o salve nas infinitas e pequenas ações de seu dia a dia.
A experiência consiste numa vivência interior, a percepção – percebida no íntimo do coração – de que Jesus dá sentido a nossa vida. É essa vivência inexprimível que suporta todas as expressões que constituem a experiência. Não somos cristãos porque acreditamos em Jesus, somos cristãos porque Jesus dá sentido a nossa vida e Ele o faz não nas nossas grandes ideias e projetos. Ele dá sentido a nossa relação cotidiana de uns com os outros. O teste da experiência é como eu trato o meu próximo, é aqui e agora. Sobretudo o meu mais próximo. É na relação com o próximo que nós testemunhamos a experiência cristã.
O nosso dia é cheio de ocasiões de testemunharmos a nossa fé na relação com os nossos próximos. Não se trata de uma disciplina, de uma filosofia, trata-se de um fato. Um fato que nós repetimos milhares de vezes por dia: se nesses milhares de vezes vence o amor, é sinal de que temos fé; se o contrário prevalecer – a vaidade, a busca da riqueza, as concupiscências – é um teste de que nossa experiência é ainda muito falha. Por isso é que rezamos tantas vezes por dia: «Vinde, ó Deus, em meu auxílio. Socorrei-me sem demora».
A experiência não é um método, mas uma realidade vivida no aqui e agora.
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