Não se esqueçam nunca de dizer “Pai”

A semana da Jornada Mundial da Juventude nos lembra que temos um Pai cheio de uma misericórdia que a nós parece impossível. Aqui um artigo do responsável nacional de CL para a Gazeta do Povo
Marco Montrasi

Nesta semana acontece a Jornada Mundial da Juventude, no Panamá. Pensando nesse acontecimento – quase em silêncio –, e pensando também no período que o Brasil e o mundo em geral estão vivendo, gostaria de refletir a partir de uma exigência profunda que percebo muito forte, ainda que implícita, nos jovens e na nossa sociedade em geral.

Evidentemente, este é um momento difícil. Os jovens sofrem mais em comparação a anos passados. São mais frágeis afetivamente e a razão desse sofrimento e dessa fragilidade, geralmente imputados unicamente a eles, provém de uma fraqueza que não é deles, mas do contexto social onde nasceram, vivem e crescem.

A afetividade é um dos instrumentos mais importantes dos quais a natureza dota o ser humano para que ele entre em relação com a realidade. É por meio da afetividade que a realidade nos toca, e assim pode acontecer o conhecimento. Se nada nos toca, nada conhecemos. Um exemplo evidente encontramos na nossa vida de estudantes: quando uma aula era entediante, nem lembrávamos seu conteúdo depois. Mas, quando um professor nos tocava pelo seu jeito de ensinar, isso nos fazia entrar no conteúdo da matéria de uma forma totalmente surpreendente, ou seja, o professor conseguia estimular a nossa capacidade afetiva, fazendo com que as palavras e os conceitos ficassem impressos na nossa memória com mais facilidade.

Julián Carrón, presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação, disse em outubro de 2015, durante um encontro sobre educação na Universidade de Bolonha: «Sinceramente eu não encontro explicação mais adequada para a origem dessa situação do que aquilo que dom Luigi Giussani tinha dito há alguns anos; naquela época parecia uma afirmação estranha, fora do coro das interpretações comuns, mas agora é evidente para todos. Ele sustentava que a origem do mal-estar juvenil é uma fraqueza de energia, uma fraqueza afetiva, razão pela qual os jovens têm dificuldade para aderir – antes de mais nada para reconhecer e depois para aderir – à realidade que têm diante de si. Dom Giussani usava a imagem do “efeito Chernobyl”, em que as radiações provocam uma mudança no organismo que não se vê, mas por causa dela, dinamicamente, o homem não é mais o mesmo. Ele acrescentava que não é assimilado realmente aquilo que se escuta. A razão principal, ele dizia, é que tudo isso é a consequência do fato de que não existe mais nenhuma evidência real, não existe evidência alguma a não ser a moda».

Como se desenvolve esse instrumento fundamental para o nosso conhecimento? A principal e primordial relação que permite à afetividade desenvolver-se é a relação com os pais. O primeiro âmbito que faz com que se desenvolva essa capacidade que todos temos é o relacionamento com a nossa mãe, os seus gestos, o seu olhar, a sua voz. E, depois, com o pai. O ambiente familiar é o primeiro leito onde a capacidade afetiva se desenvolve. A crise que estamos vivendo, portanto, depende muito da crise pela qual esse “lugar” importantíssimo para o desenvolvimento afetivo do jovem está passando. Podemos dizer que muitos dos problemas dos quais os jovens de hoje padecem dependem do desenvolvimento de sua capacidade afetiva que ficou cheia de obstáculos. Os problemas da família – não só a sua existência como leito educativo, mas também a sua dificuldade para educar, devida também à interferência de muitos outros contextos sociais que influenciam muito mais os jovens (por exemplo, a tecnologia e as mídias sociais) – indubitavelmente determinam o desenvolvimento da capacidade afetiva dos jovens e, se essa capacidade não se desenvolve de maneira adequada, a relação com a realidade fica mais difícil e, consequentemente, os problemas – que inevitavelmente surgem quando se vive – são enfrentados de forma mais complicada. Cada obstáculo pode se tornar intransponível, e a incerteza e o medo se tornam mais dominantes com suas inevitáveis consequências.

Essa incompleta e sumária premissa sobre a situação atual é necessária para colocar em evidência um ponto decisivo. Se a criança e o jovem puderem desenvolver de maneira adequada a sua capacidade afetiva no leito de uma firme relação com seus pais, do mesmo modo acontecerá e prosseguirá o desenvolvimento adequado do principal instrumento de conhecimento para o adulto. Se o adulto perder o vínculo ou os vínculos que o fazem crescer de forma segura – poderíamos dizer, se perder o seu “ser filho” –, ele também perderá o instrumento necessário que lhe permite viver uma relação verdadeira e adequada com a realidade. É isso que faz brotar a insegurança existencial que hoje gera tanto medo, medo que depois é transmitido aos jovens. Não ter a certeza de ser amado, de ser gerado, de ter um destino bom, não ter a certeza de que tudo não findará no nada... Isso não é só a exigência fundamental de uma criança ou de um jovem, é uma urgência da pessoa madura e adulta.

Sinteticamente, pode-se dizer que aquilo que se perdeu foi a consciência de se ter um pai, e a certeza de que existe um Pai com “P” maiúsculo, uma presença poderosa que salva e que faz novas todas as coisas. É impressionante, então, ver como o Papa Francisco insistentemente está nos testemunhando o que quer dizer ser filho e ter um pai. Isto se vê muito bem se, com um pouco de atenção e de abertura, seguimos suas audiências sobre o Pai Nosso, como a de 16 de janeiro deste ano: «“Pai”: essa palavra tão bonita de ser dita. Podemos ficar todo o tempo da oração somente com esta palavra: “Pai”. E sentir que temos um pai: não um patrão ou um padrasto. Não: um pai. O cristão se dirige a Deus chamando-O antes de mais nada de “Pai”».

E na semana anterior, em 9 de janeiro, o papa havia dito:  «Claro, essas afirmações nos deixam em crise, porque parece que muitas das nossas orações não obtêm resultado algum. Quantas vezes pedimos e não obtemos – todos fizemos essa experiência –, quantas vezes batemos e encontramos uma porta fechada? Jesus nos aconselha, nesses momentos, a insistir e a não nos darmos por vencidos. A oração transforma sempre a realidade, sempre. Se não mudam as coisas ao nosso redor, pelo menos nós mudamos, muda o nosso coração. Jesus prometeu o dom do Espírito Santo a cada homem e a cada mulher que reza. Podemos ter a certeza de que Deus responderá».

Todos nós, no fundo, conscientemente ou não, desejamos fazer essa experiência. Talvez essa seja a coisa que facilmente mais consideramos óbvia quando nos tornamos adultos, ficando cada vez mais autônomos neste mundo hipertecnologizado. Temos muitíssimas oportunidades de fazer as coisas sozinhos, com menos dificuldades, e assim achamos que sozinhos conseguimos dar um jeito para viver – aliás, que podemos viver melhor –, e nos esquecemos de que pra viver precisamos da experiência de ser filhos. Aparentemente temos muitos amigos, mas não vínculos que nos ajudem a viver e a ser mais livres; vínculos com alguém que nos faça ser, ser mais nós mesmos, que nos introduza em coisas novas. Esse tipo de vínculo é necessário, e desse vínculo sentimos uma enorme falta.

Os jovens (e todos nós) precisamos ver adultos, quer dizer, pessoas livres e contentes por viverem também em meio às dificuldades. Homens e mulheres que não esquecem que são filhos, que olham para alguém que os gera, mesmo sendo adultos. Estas são as pessoas que, pensando bem, nos fascinam. Não são os gurus que sabem tudo e que nos dão conselhos sobre tudo, ou o life coach a quem perguntar e pedir tudo, mas pessoas que vivem uma liberdade proveniente de alguém que carregam no canto do olhar e que as torna livres.

O papa quer nos introduzir ou reintroduzir a essa presença, a esse Pai, a esse circuito infinito de amor. Como também ele disse em 16 de janeiro de 2019: «Deus busca você, mesmo que você não o busque. Deus o ama, mesmo que você tenha se esquecido d’Ele. Deus vislumbra em você uma beleza, mesmo que você pense ter desperdiçado inutilmente todos os seus talentos. Deus não é só um pai, é como uma mãe que não cessa jamais de amar a sua criatura. Por outro lado, existe uma “gestação” que dura para sempre, muito além dos nove meses daquela gestação física; uma gestação que gera um circuito infinito de amor. Pode ser que também nos aconteça caminhar por estradas distantes de Deus, como aconteceu com o filho pródigo; ou de nos precipitarmos numa solidão que nos faça sentirmo-nos abandonados no mundo; ou, ainda, errar e ficarmos paralisados pelo sentimento de culpa. Nesses momentos difíceis, podemos encontrar ainda a força para rezar, recomeçando pela palavra “Pai”, mas dita com o sentido terno de uma criança: “Abbá”, “Papai”. Ele não nos esconderá o Seu rosto. Lembrem-se bem: talvez alguém carregue dentro de si coisas, coisas que não sabe como resolver, tanta amargura por ter feito isto e aquilo... Ele não esconderá o Seu rosto. Ele não se fechará no silêncio. Você lhe diz “Pai” e Ele lhe responderá. Você tem um pai. “Sim, mas eu sou um delinquente...”. Mas tem um pai que o ama! Diga-lhe “Pai”, comece a rezar assim e no silêncio Ele lhe dirá que jamais o perdeu de vista. “Mas, Pai, eu fiz isto...” – “Jamais te perdi de vista, eu vi tudo. Mas fiquei sempre lá, perto de ti, fiel ao meu amor por ti”. Essa será a resposta. Não se esqueçam nunca de dizer “Pai”».

O papa está nos mostrando isto: que é possível descobrir que temos um Pai, cheio de uma misericórdia que a nós parece impossível, com quem podemos entrar num relacionamento real, por meio de sinais humanos, e que viver com esperança não é uma ilusão de crianças e ingênuos sonhadores. Ele faz uma proposta: «Comece a rezar assim!». É possível, ao alcance de todos, precisa arriscar e verificar.

Nos próximos dias, no Panamá, tenho certeza de que, para quem estiver aberto e disposto a ver esse homem em ação, alguma coisa poderá mudar em sua vida.

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