Carrón: «No escuro, se há alguma luz nós a vemos melhor»
Na BergamoIncontra, o presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação conclui o ciclo sobre O senso religioso, de Dom Giussani. Leia a entrevista que ele deu ao Eco di BergamoNo último encontro do ciclo de apresentações sobre o livro O senso religioso, de Dom Luigi Giussani, organizado pela BergamoIncontra, esta noite, às 21 horas, no Centro de Congressos João XXIII, haverá uma fala do padre Julián Carrón, presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação. O título é “A tarefa da realidade: despertar as perguntas últimas”. O sociólogo alemão Ulrich Beck dizia que «a maioria das pessoas concorda com uma frase, além de todos os antagonismos e em todos os continentes: “Eu não entendo mais o mundo”». Com efeito, os quadros de referência parecem ter caído. As famílias se desfazem. Os partidos, depois de alguns anos, desaparecem, ou mudam de nome. A própria Igreja já não é vista como um «abrigo sólido».
Como se faz para viver nesta confusão?
«Penso que a confusão atual, por um lado, evidencia todas as dificuldades do momento, mas ao mesmo tempo traz à tona, com clareza, o que não está confuso de modo algum: o desejo do homem de encontrar uma resposta para essa confusão. Recentemente, uma pessoa me descreveu seu tédio pessoal, e o tédio que vê ao seu redor, mas – dizia – há algo que ao mesmo tempo nos une: a certeza, quase infantil, de que estamos à espera de algo. Isto não desaparece. E é mesmo extraordinário. Cultivamos em silêncio essa espera. Não sabemos o que é, de onde vem, como se manifestará, mas esperamos uma coisa radicalmente nova. E, por outro lado, a mesma confusão, num certo sentido, faz com que seja mais fácil identificar, notar as pessoas que podem constituir uma resposta. Um amigo doente, que vive estes dias no hospital, me contou que alguns médicos, vendo como ele encara a doença, lhe perguntam se pode ir visitar outros doentes que estão muito mais deprimidos do que ele. Paradoxalmente hoje, na escuridão, é mais fácil notar as pessoas que continuam a iluminar».
O incêndio da Notre Dame de Paris parece um sinal funesto do destino da Igreja na França, e na Europa. Os dados da religiosidade nesse país parecem confirmar uma debacle. No entanto, mesmo naquele contexto muito secularizado e cético, as pessoas sentiram aquela igreja como algo de “nosso” – não acha?
«Sim, é um bom exemplo da situação em que estamos: há uma falta de interesse pelo que constituiu a Europa, o fato cristão; no entanto, diante de um símbolo como a catedral de Paris, todos se sentem afetados. Depois, uma pessoa pode viver isso simplesmente como um momento de nostalgia ou, pelo contrário, pode questionar-se por que, diante do risco de destruição daquela igreja, sentiu dentro de si uma dilaceração. Aqui o homem joga a partida: se quer responder a esse golpe, ir até o fundo, perguntar-se o que lhe falta; ou deixar de lado, parar no choque sentimental do momento. Esta é a ambiguidade da situação em que vivemos: pode ser uma belíssima ocasião para o homem redescobrir aquela ternura para consigo mesmo que ressuscita com mais clareza ainda a exigência de um significado. E, se a levarmos a sério, começam a surgir diante dos nossos olhos sinais de resposta».
Não é tão fácil como poderia parecer sermos verdadeira e lealmente apegados a nós.
«É um olhar que vem de fora de nós o que possibilita esse apego. À criança que chora e que tem medo responde a mãe, que a introduz numa experiência de si diferente. Na vida podemos encontrar, mesmo como adultos, um olhar que nos permite uma ternura para com nós mesmos antes impensada. Como aconteceu a Zaqueu no Evangelho: todo o mundo ao seu redor pensava em “recriminá-lo”, Jesus passa e o olha como nem mesmo ele sabia olhar para si próprio. Todos temos como que uma rigidez. Não achamos o ângulo certo para ver as coisas, a perspectiva adequada. Precisamos de outro que nos ajude para começarmos a olhar para a nossa humanidade tal como ela é: então também começamos a mudar. Mas não é tão fácil assim encontrar pessoas que se tenham reconciliado com sua própria humanidade. É isto o que a Igreja, justamente por causa do que a constitui, é capaz de testemunhar. A grande possibilidade da Igreja hoje é esse abraço às pessoas feridas».
É esta a mensagem de fundo do Papa? Não uma “abonação” no plano moral, um desconto que altere os parâmetros do comportamento pessoal com base nas condições morais atuais da sociedade, que puxam para baixo, mas o convite a redescobrir a natureza da Igreja como abraço ao homem.
«Isso mesmo. É um olhar cheio de ternura por nós. Hoje precisamos tocar, ver o olhar de alguém cheio dessa misericórdia. Concreta, porque o Cristianismo passa sempre pela carne. Para o homem da nossa época não bastam os e-mails ou as mensagens abstratas. Só passando por um olhar humano é que a salvação pode alcançar-nos. E nós, muitas vezes, pelo contrário, nos olhamos com o olhar determinado pela mentalidade comum, que julga».
Muitos crentes hoje se refugiam na acídia ou no apego ressentido ao passado. Existe o risco de uma introversão moralista do catolicismo?
«Ele está sempre à espreita. E, no fim, acabamos por ser vítimas de nós mesmos, da nossa medida. Só Jesus pôde introduzir um olhar assim, capaz de valorizar o homem, de ver toda a fome e a sede que constituem o coração dele, e responder a elas».
Antigamente a palavra “católico” era uma grande parte do ser italiano, ou espanhol. Hoje, “católico” parece referir-se a alguém que tem inclinações particulares, um tanto estranhas, muito discutíveis. O que aconteceu?
«Católico é o que é pertinente ao humano. No mix da nossa sociedade, pessoas de qualquer cultura, de qualquer proveniência, quando encontram um olhar assim acham-no adequado: querem sentir-se olhadas assim, valorizadas assim. Se o reduzirmos a algo sufocante, o catolicismo perde sua natureza, que é abertura universal».
Recentemente, li alguns livros, apologéticos ou polêmicos, que falam da Igreja de hoje quase sem nomear Jesus Cristo. Não é um pouco estranho?
«É a maneira como a mentalidade comum entra também na vida da Igreja: de tanto que reduzimos Jesus, quase temos vergonha de dar destaque a Ele. É a personalidade histórica de Jesus e o seu olhar que ainda hoje continuam sendo interessantes para todos os homens, que o encontram encarnado numa figura humana. O Papa vai a Abu Dhabi, vai ao Marrocos porque o procuram, é reconhecido. Uma encarnação do Cristianismo como a que ele representa é percebida. Ele não tem de renunciar a Jesus para chegar a todos; aliás, é só porque vive em Jesus que consegue apresentar-se como uma figura humana capaz de interessar a todos».
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