Julián Carrón

A força “desequilibrada” do cristianismo

A crise da sociedade e o papel da Igreja. «O homem precisa ser abraçado em toda a sua "densidade de humanidade"». De L'Osservatore Romano, uma entrevista com o Presidente da Fraternidade de CL
Andrea Monda

Giuseppe De Rita, refletindo nestas páginas sobre a crise atual da sociedade italiana e europeia, fez referência ao passado, quando na Idade Média o bom governo de uma comunidade apoiava-se em duas autoridades, a civil, que garantia a segurança, e a espiritual, que oferecia aos cidadãos o sentido da existência. As duas autoridades não podiam se concentrar numa só pessoa, mas na Europa com frequência se tende à concentração do poder. Qual pode ser, nesse contexto, o papel da Igreja e, portanto, a sua responsabilidade?
Na realidade, os dois aspectos estão muito ligados entre si. No espírito de muita gente nota-se a sombra de um grande medo, de uma profunda insegurança. Mas do que se trata? Como fazer frente a isso? Se as pessoas não encontram uma resposta radical ao medo, este predomina e produz reações desmedidas. Resta, porém, totalmente evidente que a politica não é, nem pode ser capaz de dar uma resposta a toda à ânsia de segurança, a todo o desencanto que o homem carrega dentro de si. Emerge, então, a verdadeira questão. A sociedade – com todas as suas instituições, os partidos, os sindicatos, as escolas de todo tipo e grau, e as suas realidades vivas, as comunidades, a Igreja – tem diante de si um desafio: quem deve dar resposta a essa necessidade de segurança que aparece junto com o medo? Para enfrentá-lo não podemos confiar em qualquer tipo de muro: quando se infiltram as atitudes mais hostis, na linha do homo homini lupus, quando qualquer pessoa ou coisa se torna inimigo potencial, a resposta nunca pode se reduzir à “polícia” ou aos “muros”.

Hoje o medo parece ser o sentimento mais difuso, quando, ao invés, paradoxalmente, a sociedade nunca esteve tão segura, como se explica isso?
Exato, porque a questão do medo está totalmente enraizada na questão do sentido. A resposta à insegurança não pode ser somente social, deve ser resposta à questão do sentido, porque o homem jamais pode ser reduzido aos seus aspectos materiais. Em última instância, de onde nasce o medo? Da desorientação que mora no íntimo do homem. A segurança material não é uma resposta suficiente diante da confusão última do eu. Isso é demonstrado justamente pelo fato que você evocou: as sociedades ocidentais nunca estiveram tão seguras, saudáveis e em paz como hoje, no entanto aumentou o senso de insegurança, de medo. O medo do homem só pode ser vencido pela presença. Vemo-lo na experiência elementar de uma criança. A única resposta ao seu medo é a presença da mãe, que ela, de fato, reclama com todas as suas forças: não procura outra coisa, porque nada mais será capaz de contentá-la. O problema, pois, é mais profundo. Alguns dias atrás, em Paris, apresentando um livro, citei o escritor Houellebecq, que é considerado quase que um símbolo do niilismo. No entanto, no fundo desse aparente niilismo revela-se uma exigência de significado impressionante e insuprimível. Numa carta pública dirigida a Bernard-Henry Lèvy escreve: «Para mim é penoso admitir que experimentei, cada vez com mais frequência, o desejo de ser amado. Um mínimo de reflexão me convencia naturalmente, toda vez, da absurdidade de tal sonho: a vida é limitada e o perdão, impossível. Mas a reflexão não podia fazer nada, o desejo persistia e devo confessar que persiste até hoje». O desejo é mais radical do que a reflexão. A reflexão sobre a absurdidade de desejar ser amado, de buscar uma resposta a essa sua sede, deve ceder passagem ao desejo que persiste. É isso o que temos diante de nós, com o que nos medimos, é o problema do desejo – o desejo de ser amado, de se realizar –, que não encontrando resposta se manifesta no medo, na raiva, na violência, na tentativa de erguer muros; mas na raiz há algo que escapa, que é a natureza do homem, e que nessa situação de niilismo, de confusão, de desorientação, fica irredutível. É nesse nível que somos interpelados.

Nesse nível a Igreja pode intervir?
Creio que a Igreja, os cristãos têm a esse respeito uma função única. A questão, de fato, é: quem salva o desejo? Que tipo de olhar é necessário receber para que ele não seja reduzido? No mundo clássico, o excesso de desejo era percebido com terror, como uma hybris perigosa. Era preciso, então, colocar “estacas”, reduzir esse excesso, colocá-lo dentro dos trilhos de uma medida. Depois veio o cristianismo. No Evangelho documenta-se a presença de alguém que está diante de todo o desejo do homem. Jesus se dirige justamente a esse desejo, é capaz de olhar de frente o desejo, desvela-o em toda a sua dimensão. Por isso pergunta: «De fato, que adianta a alguém ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?» (Mt 16,26). Muitas vezes interpretamos essa pergunta de um modo moralista e não como expressão última da natureza do homem, do seu desejo, daquela sede de que fala Jesus à Samaritana, da fome e sede das Bem-aventuranças. Jesus poderia ter olhado muitas outras coisas daquela mulher “irregular”, com os seus cinco maridos, mas observa diretamente a sua sede: Ele sabe que só propondo-lhe algo capaz de responder à sua sede de felicidade é que aquela mulher poderá deixar de ir buscar outras coisas, que não poderão dar-lhe a realização do viver. Essa não é somente uma questão pessoal, é uma questão social. Houellebecq evidencia justamente essa relevância pública, social, cultural, política do problema, porque se o homem não encontrar uma resposta adequada à natureza do seu desejo, no fundo estará sempre defasado, buscará soluções insuficientes e terminará como vítima do medo ou da violência. O cristianismo pode enfrentar esse desejo, como lembra Agostinho: «Fizeste-nos para Ti, ó Deus, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti», isto é, enquanto não encontrar uma presença proporcional à profundidade do desejo. Toda vez que o cristianismo entra em crise, emerge de novo aquele espírito pagão que quer controlar o desejo, reduzi-lo, «reconduzi-lo para dentro de limites de segurança», como diz, a seu modo, Todorov, porque ele se torna de novo perigoso. Bergman, no final de Fanny e Alexander, leva um dos personagens a dizer: «Nós não somos preparados, equipados, para certas pesquisas. A melhor coisa é mandar para o inferno os grandes contextos. Nós viveremos como pequenos, neste pequeno mundo. E nos contentaremos com isso», ficando dentro dos nossos limites. É essa a “sabedoria” mundana, que não pode eliminar, porém, a sede inextinguível de significado que queima o coração do homem.

O Papa, falando no último dia 9 de maio à Diocese de Roma, definiu as Bem-aventuranças como “o prêmio Nobel do desequilíbrio”, convidando o cristão a “manter o desequilíbrio”, a administrar a manutenção do desequilíbrio, porque do contrário ergueremos as estacas da bela harmonia grega que, porém, diminui o humano. Não é esse o risco da Europa, que talvez até agora se concentrou em colocar estacas burocráticas, procurando administrar a segurança, mas não dando resposta àquela sede sempre excedente que, porém, é componente do humano?
É justamente esse o ponto. Todas as tentativas, inclusive boas, serão em última instância um fracasso se não se responder a essa sede. A Europa fez um esforço enorme para dar resposta a muitas necessidades. Nenhum país, sozinho, teria podido chegar ao grau de desenvolvimento que alcançamos. Mas, ao mesmo tempo, o descontentamento e o mal-estar aumentam. Como assim? O problema nasce do fato de não ter entendido qual é a natureza da “doença”. Sempre me impressionou a genialidade de Leopardi ao captá-la: «Tudo é mísero e pequeno diante de nossa alma». Para muitos, isso é algo de negativo, como que uma desgraça, quando é a diversidade e a grandeza do homem. Se perdermos a consciência dessa diversidade, da infinitude do nosso desejo, não entenderemos nada do que está acontecendo. Se a Europa não perceber isso, não poderá evitar dar respostas penúltimas, pretendendo que sejam suficientes. Vamos esclarecer: por um lado a Europa, enquanto realidade político-econômica, não deve responder à exigência última, porque não é esse o seu objetivo; mas, por outro lado, deve reconhecer qual é a natureza do problema e deixar espaço para a resposta. A Europa existe enquanto cria e garante aquele espaço de liberdade em que podem se encontrar as diversas respostas de sentido. Porque – a mim me parece uma coisa definitivamente adquirida depois do Concílio – não há possibilidade de acessar a verdade a não ser através da liberdade. Só se a Europa permanecer e se tornar cada vez mais tal espaço de liberdade é que poderemos compartilhar a riqueza que um ou outro terá encontrado na vida e poderemos oferecê-la como resposta às exigências e aos desafios que temos diante de nós. Trata-se de um espaço em que, antes de tudo, seja salvaguardada a possibilidade de reconhecer aquele algo mais que constitui o homem, que nos torna todos seres humanos, embora diferentes e únicos na própria complexidade. Essa é a grande contribuição que o cristianismo e a dimensão da fé podem oferecer.

Mas parece que do desconforto e da insatisfação passa-se com frequência ao rancor e às reações emotivas que daí derivam, como poderia ser entendido o “soberanismo”: se a Europa não corresponde a mim, me tranco em meu pequeno espaço individual ou nacional, aonde sou o soberano. Mais que uma resposta, essa parece ser uma reação quase que automática.
É uma reação que evidencia uma falha. De fato, alguém que está satisfeito não experimenta rancor, não “reage”. A reação parte de uma exigência que ainda não obteve resposta e frequentemente nem sequer aflorou ainda na consciência. Essa é a grande oportunidade – segundo penso – do cristianismo. O niilismo que vemos em muitos fenômenos da vida social, cultural, literária, revela a existência de uma pergunta aberta, inquietante, sobre a própria vida, documentando a irredutibilidade do humano. Quem pode dar-lhe uma resposta? A Igreja é chamada a entrar no jogo, encontra aí a sua função. Por força daquilo que pela graça recebemos, nós, cristãos, temos nesse contexto uma função crucial. O homem precisa ser olhado de um modo não redutivo, ser abraçado em toda a sua “densidade de humanidade”. É o modo como Jesus olha Zaqueu, que aparentemente era menos necessitado, porque era muito rico: capta nele uma necessidade verdadeira, a de ser olhado sem ser reduzido aos meros fatores materiais e sociais. Zaqueu sente-se olhado de um modo que movimenta o seu eu, que o põe em ação, e acolhe Jesus cheio de alegria. A resposta a essa necessidade, às vezes oculta, às vezes não suficientemente consciente, veio de alguém que não havia reduzido o humano que havia nele. Jesus sabe interceptar essa necessidade nos pobres que encontra pela estrada, nos doentes e feridos do seu tempo (Zaqueu é um homem ferido), tal como hoje o Papa demonstra saber fazer no relacionamento pessoal, na relação com os outros, testemunhando no presente a contemporaneidade do olhar de Jesus.

O fenômeno da globalização também parece ter um pouco traído as suas promessas, enfraqueceu a mediação e fez renascer o sentimento oposto e excessivo da identidade. A crise da mediação e dos corpos intermediários gerou a condição de solidão, tornou-se crise da pertença, a favor de um sentimento de identidade forte, mas só individualista. Também aqui o cristão pode ter uma palavra oportuna.
Uma palavra decisiva, porque o cristianismo dá uma resposta justamente à solidão, à solidão do coração, gerada pela exigência insatisfeita e irredutível de significado, à qual só uma presença excepcional, a presença de Cristo na carne de um encontro humano, pode responder. Pensemos no homem frente à doença, à morte. Pois bem, o cristianismo não é só um discurso, mas uma palavra encarnada. O Verbo se fez carne a fim de que cada pessoa possa experimentar a Sua presença na vida e em lugares onde a solidão radical surge e explode mais agudamente, muitas vezes sendo evitada; o Verbo se fez carne, presença, para compartilhar a vida inteira de cada um de nós, sem nada censurar, partindo dos aspectos elementares, concretos, até a solidão mais radical. A Igreja é por definição uma comunidade, um lugar intermediário, que coloca em relação o indivíduo com o significado último, com o Mistério: ela é a continuação daquele grande intermediário que é Cristo. Cristo coloca em relação o Infinito com o homem histórico concreto. O cristão “privado” não existe, ele termina sempre, por sua própria natureza, gerando comunidades, lugares onde juntos se pode enfrentar a solidão completa, a verdadeira.

Papa Francisco propôs o tema, aliás o método, da sinodalidade; é o sinal dessa transformação social própria do cristianismo?
Parece-me um ponto fundamental, porque o caminho na vida se faz junto. A questão é como cada um de nós, junto com os outros, mete em comum as riquezas das experiências que faz. Essa caminhada juntos para encontrar a estrada, num compartilhamento que constantemente toma a iniciativa e corrige as coisas que não vão bem, onde cada um se torna verdadeiramente protagonista, pode prosseguir se estamos dispostos a recomeçar sempre, a mudar, a recomeçar do zero. A provocação da realidade está sempre “de tocaia” e faz parte da caminhada humana, sustentada pelas contribuições dadas pelos últimos, doando de novo aquilo que você considerava óbvio, pela ajuda que lhe oferecem as pessoas mais impensáveis. A pessoa precisa estar constantemente atenta a se deixar enriquecer por tudo o que o Mistério faz para dar uma resposta às necessidades. A questão é se nós estamos dispostos a reconhecer qualquer migalha de verdade, de iniciativa, de dica que aparece na vida da Igreja. Muito me impressionou na Christus vivit ver sublinhado o desejo de abraçar e estimular qualquer iniciativa. Quando isso acontece na Igreja, todos os dons que Deus, em sua liberdade total, distribui são acolhidos. Então tudo contribui para o bem da Igreja, que, como diz o Papa, é poliédrica. A figura do poliedro nos lembra que a vida não é rigidamente harmoniosa, não é redutível a esquemas meramente lógicos. Como escreve Bento XVI na Spe salvi, «um progresso adicional só é possível no campo material”, mas onde entra a liberdade se recomeça sempre, porque ela «pressupõe que nas decisões fundamentais cada homem, cada geração, seja um novo início». Por isso é difícil fazer previsões e programações. Bem o dizia Goethe: «O que herdaste dos teus pais, voltes a ganhá-lo, para possuí-lo». Aquilo que os nossos antepassados haviam percebido como um bem, ao nos reunirmos após o drama da segunda guerra mundial – começando por um gesto concreto como o acordo sobre o carvão e o aço –, agora que desenvolvemos tudo, nos parece nada; para eles, ao invés, foi o início concretíssimo de uma caminhada que floresceu. Tudo se pode corrigir, mas a questão é não colocar em perigo as conquistas e os progressos obtidos ao longo dos anos. Trata-se de introduzir as correções necessárias, como em qualquer obra. O ser humano é perfectível, como qualquer uma das suas construções.

A voz do Papa é muito ouvida, mas é também uma voz isolada em um mundo que parece mover-se em direções diferentes, se não opostas. É o momento para os cristãos serem aquelas “minorias criativas” de que falava Bento XVI?
Ao Papa é reconhecida, por muitos, originalidade e autoridade. Justo no momento em que parece isolado, é mais facilmente reconhecível a sua diversidade. Esse é um sinal de como a contribuição dos cristãos, que em certos momentos pode ser numericamente menos consistente, nem por isso é menos relevante. Às vezes, ligamos a nossa capacidade de incidência só aos números. Muitos, ainda hoje, temem que, se não possuirmos determinados postos ou números, a nossa presença se tornará irrelevante. Mas a relevância, a incidência histórica de uma presença não depende dos números, mas sim da sua diversidade. O Papa testemunha isso: em sua aparente impotência, tem uma capacidade de incidência infinitamente maior do que qualquer outro poder. Uma obra artística não depende das suas dimensões, depende da beleza que manifesta, da diversidade que carrega em si e que comunica. É isso que Cristo trouxe, uma diversidade, que a nós soa como um paradoxo: que Deus decida vir ao encontro do homem desorientado e que para fazê-lo se despoje da sua divindade parece-nos um absurdo. Isso é o contrário do que nós faríamos. Deus nos “dribla” constantemente. Mas, podemos dizê-lo, alguma contribuição para a mudança do mundo Cristo a deu ao se despojar da própria divindade! Essa é a força “desequilibrada” do cristianismo, da presença dos cristãos: onde ele é autenticamente vivido gera nova vida, mesmo dentro da sua aparente pobreza, da sua aparente insignificância. A Igreja é essa beleza que está dentro do mundo, que faz sempre novas todas as coisas. Essa é a grande contribuição que os cristãos são chamados a dar, justamente agora que os números são o que são. Para nós é um novo início. Mas para a Igreja é uma “velha história”, como testemunha a Carta a Diogneto. Essa carta documenta qual era o verdadeiro testemunho que os cristãos, na sua aparente irrelevância, davam nos primeiros séculos. A esse testemunho somos chamados ainda hoje.

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