Um momento do Encuentro Santiago 2019

Chile. Em Santiago se constrói um bem para todos

O caos e a violência dos últimos dias continuam vivos. Mas no fim de semana, de 25 a 27 de outubro, na capital sul-americana, falou-se também de diálogo, educação, encontro com o diferente, num cenário de música e mostras. A crônica do Encuentro Santiago
Eduardo Fredes Seleme

«Não se sai sozinho do ódio e da reclamação». Por isso faz-se cada vez mais urgente dizer de novo a todos: “Você é um bem para mim”. «O outro é o caminho do diálogo e da autocrítica. O que está em jogo num contexto de desconfianças e recriminações é o olhar de um homem livre que sai ao encontro da pessoa (sem rótulos), com sua história particular, desejos e sofrimentos».

Assim começava o Encuentro Santiago 2019. Com as palavras de um documento publicado alguns dias antes, quando a situação conturbada que atravessava o Chile punha em dúvida tudo e ainda nem estava decidido se o evento seria realizado. Ao final, com uma programação reduzida a um dia, menos convidados e em outra sede (o Colégio San Pablo Misionero de San Bernardo, mais periférico e tranquilo do que a central Universidade San Sebastián), finalmente aconteceria. Porque valia a pena. Agora mais ainda.

A entrada do Colégio San Pablo Misionero de San Bernardo

Num país que menos de dez dias antes se vira imerso de repente num caos de protestos nas ruas e estado de emergência, saques a lojas e toque de recolher, detenções e vítimas (ao menos 18), numa «hora amarga» que nos chama a todos a uma responsabilidade, os organizadores decidiram arriscar, oferecer ao mundo outro olhar. «Precisamos de um bem, precisamos encontrar-nos e reconhecer-nos pelo que somos, porque a exigência de justiça também faz parte do nosso desejo mais profundo».

Assim começou um sábado de manhã. Ainda se respirava o nervosismo que restava dos dias conturbados, o eco da imponente marcha do dia anterior, que levou às ruas um milhão de pessoas, a incerteza de um toque de recolher que se renovava uma noite atrás da outra. Nesse contexto, tudo começou de uma maneira muito significativa, com a apresentação de uma mostra fotográfica intitulada “Aima. Um olhar para além da paisagem”. O fotógrafo Carlos Infante explicou o significado do título. “Aima” é bom, algo que é um bem para mim. Primeiramente, é-o a natureza, um bem que o levou a buscar fotos que nascessem de um uma insaciável necessidade de beleza. Era o prelúdio ideal para que o público pudesse maravilhar-se com o trabalho desse artista. Uma beleza sem fim, em qualquer paisagem do Chile e da América do Sul ou nos rostos de alguns retratos, imponentes por sua profundidade. Uma maneira de entrar diretamente, de chofre, no tema deste Encuentro.

Um milhão de chilenos na praça Santiago na sexta-feira, 25 de outubro

Seguiu-se uma mesa redonda sobre “Educação, uma grande ocasião de encontro”, com a ex-ministra de Educação Mariana Aylwin, filha do primeiro presidente eleito democraticamente após a ditadura de Pinochet, e Davide Perillo, jornalista e diretor da revista Tracce. À pergunta inicial, «a crise destes dias pode ser uma ocasião de união? como se pode criar um diálogo?», Aylwin respondeu com uma frase de peso: «Depois de ter vivido dias de terror, hoje é um dia de esperança». Explicou que «o Chile vive num clima de desconfiança. As instituições, como a política, o exército ou a própria Igreja, perderam prestígio e autoridade. Ainda há bairros controlados pela criminalidade e uma elite que parece cada vez mais afastada das pessoas. Há um grande mal-estar pelas desigualdades sociais e um individualismo cada vez mais difundido. No fim das contas, é difícil ter ocasiões de encontro». Custou muito aos chilenos a conquista da democracia, «mas hoje parece que já não estamos à altura daqueles momentos». No entanto, a convivência «pode renascer graças à educação, uma educação de verdade, que possa relançar o profundo desejo de felicidade que temos no coração». Perillo contou uma cena que vira na noite anterior, assim que chegara ao Chile. «Estávamos passando de carro por uma zona periférica, longe da cidade e das manifestações. Mas ali, à beira da estrada, no meio do nada, havia uma família: pai, mãe e duas criancinhas, com a bandeira e as panelas para o panelaço. Surgiu dentro de mim uma comoção e uma pergunta: “O que eles procuram de verdade? O que nos estão dizendo com esse gesto?”. Tinham o mesmo desejo que eu e que todos levamos dentro de nós: uma necessidade de significado, de felicidade, de justiça. Se partimos daqui, deste ponto comum a todos, o diálogo volta a ser possível».

A segunda pergunta era ainda mais provocativa: que quer dizer hoje ser adulto? Aylwin respondeu dizendo que «em primeiro lugar significa acolher os jovens, escutar seus sonhos. Isso muda o olhar». Falou do trabalho educacional que faz na sua fundação. Perillo partiu justamente desse exemplo. «Em lugares assim é onde podem ser gerados sujeitos capazes de encarar a realidade, até a mais complicada. É preciso testemunhas». Aylwin acrescentou que «parece que queremos destruir, mas não sabemos como construir. Ao passo que o caminho, o método, existe: é o diálogo». Falou de seu pai quando, num discurso logo após o fim da ditadura, falou de reconciliação e de um Chile para todos, «civis e militares». Diante dos protestos do público, repetiu com força: «Sim, civis e militares». «O pior que fizemos estes anos foi não ter dialogado, perdemos essa força que caracterizou a nossa transição». Perillo reiterou que a crise «é uma grande oportunidade para isso, para deixar de dar por óbvias certas posições, certas posturas, e voltar a conversar». Também é uma oportunidade para os cristãos, para irem ao fundo da experiência que vivem. «Quem pode oferecer respostas à altura da necessidade que vemos hoje? A fé tem algo a dizer sobre isso?».

O encontro sobre a educação

Logo depois veio o segundo encontro. Sendo que o Encuentro Santiago quer ser um lugar onde se encontra a diversidade, veio até aqui, para falar de si mesmo e de seu povo, Aniceto Norin, lonko – líder – de uma comunidade mapuche, um povo que habita o Chile há milênios e que depois das ondas de colonização luta para manter suas tradições. Ele viveu um dos episódios mais dramáticos dos que se viveram nestes tempos de grandes discussões sobre os direitos das populações indígenas, o assassinato de um casal de idosos pelas mãos de alguns mapuches. Aniceto foi acusado injustamente por isso, teve de passar por três processos judiciais que não conseguiram provar sua culpa, mas que para ele acarretaram mesmo assim uma condenação, com um veredito evidentemente político que não levou em conta os numerosos testemunhos que o inocentavam. Teve de apelar ao Tribunal Internacional para conseguir justiça.

Mas essa inocência se viu selada pelo abraço com um dos filhos das vítimas. Um gesto que mostrou não só a possibilidade de perdão entre duas pessoas, mas também a unidade possível entre dois povos que podem entender-se e viver em harmonia no âmbito mais sagrado para os mapuches, que é a terra mesma. Além da consciência de um líder que vive sua liderança como uma responsabilidade: destinou o dinheiro que recebeu como indenização à sua comunidade. Chama a atenção ver num homem assim um senso religioso, uma abertura que o leva continuamente a tentar construir pontes, criar relações, dentro e fora de seu povo.

Ao término da manhã, leu-se a mensagem de Julián Carrón, que «neste momento especialmente dramático que o Chile está vivendo» mostrou primeiramente sua proximidade, para logo acrescentar: «Como qualquer coisa que acontece, esta também é uma provocação, uma oportunidade para o amadurecimento de vocês. Espero que o Encuentro Santiago possa testemunhar que há pessoas que aceitam o desafio». E assim foi.

O dia continuou com um fórum sobre o fim da vida e a eutanásia, um tema muito atual por toda uma série de propostas de lei sobre o tema. Título: “Amar é dizer ao outro: você não pode morrer”. A advogada Sofia Huneus e o médico Gonzalo Arradiaga, cinesiologista, entraram na questão sob diferentes pontos de vista. Está em questão a descoberta do que é realmente uma “morte digna”, quando o que se costuma propor é sempre a eutanásia como caminho para decidir sobre a própria vida. Fala-se de leis, de cuidados paliativos, da relação entre médico e paciente, do papel da família... e abrem-se perspectivas sobre um tema decisivo que frequentemente é vítima de preconceitos ideológicos.

O espetáculo musical

O toque de recolher – retirado no último momento – obrigou a cancelar a programação noturna. O ritmo foi retomado no dia seguinte, domingo, com a missa. Ali se misturaram as camisetas vermelhas dos voluntários com o público. Inclusive havia mais pessoas do que em anos passados. Depois, dois testemunhos sobre o valor do esporte, sobre como a descoberta do «bem que é o outro» é decisiva até quando a pessoa se mede com o outro para competir.

Para terminar, um diálogo sobre a exposição de Jó, “Há alguém que escute meu grito?”. Ficou montada durante todo o Encuentro no pátio da escola, junto com as fotografias de Infante. Serviu de ponto de partida para o último encontro, sobre a dor inocente e a relação com Deus. Houve inúmeras perguntas que ficaram abertas, com muitos visitantes aglomerando-se diante dos painéis.

Terminou com um momento de músicas: cantos da tradição latino-americana e baladas de rock. A beleza voltava a fazer-se evidente. A mesma beleza que a do rosto dos voluntários. EM palavras de Laura, uma voluntária muito jovem que trabalhou para que o Encuentro fosse possível: «Alegro-me de ter participado de um gesto que é como uma mão que constrói o bem de todos». No fundo, o Encuentro Santiago é esta descoberta: pode-se construir um bem para todos dando-se a si mesmo.