Carrón: «O Natal é o encontro com a realidade dos homens»
«Deus escolhe esta situação humana para desafiar a cultura do descarte com a novidade de um olhar que exalta o valor infinito de todo e qualquer homem». A carta do Presidente da Fraternidade de CL no Corriere della Sera de 24 de dezembroCaro Diretor, fracasso, insucesso, derrota das próprias tentativas. Mau êxito na vida. Quantas vezes não é este o critério com que uma pessoa é olhada (profissionalmente, existencialmente, afetivamente). E quantas vezes isto não se torna o olhar com que ela olha para si mesma. O resultado é a vergonha de si, por trás da qual se escondem situações humanas feitas de feridas, lacerações, dores que cada um guarda no íntimo como a um incômodo que às vezes estoura em nível pessoal e social.
Se a pessoa não tem sucesso, se não está à altura dos padrões dominantes, que impõem o sucesso como critério da vida, então deve ser descartada. É o que o Papa chama de «cultura do descarte» (também recentemente, ao falar dos deficientes e dos detentos). Infelizmente essa cultura vence – a ponto de se tornar mentalidade comum – não só fora, mas também dentro de nós.
No meio de todo esse descarte, será que sobra alguma coisa? Sim, resta esta nossa humanidade ferida, irrequieta, confusa: resta e grita a espera por algo que nos liberte de uma situação que parece não ter saída. Deus escolhe justamente esta situação humana, que nenhuma tentativa parece capaz de mudar, para desafiar a cultura do descarte com a novidade de um olhar que exalta o valor infinito de todo e qualquer homem.
Diante dos nossos fracassos, valem ainda hoje as palavras do profeta Isaías: «Exulta, ó estéril» (Is 54,1), ou seja, você e eu, que nunca conseguimos atingir os padrões. «Não tenhas medo, pois não passarás vergonha; não te enrubesças, pois não terás de que te envergonhar» (Is 54,4). Eis o desafio que Deus lança à nossa maneira tão feroz de nos olhar segundo a nossa medida ou a dos outros. Deus não tem vergonha de nós, da nossa fragilidade, das nossas feridas, do nosso ser jogados para lá e para cá, daquele niilismo que Galimberti descreveu no Corriere dela Sera como «vazio de sentido» (15 de setembro de 2019).
Deus não tem vergonha de nós, da nossa fragilidade, das nossas feridas, do nosso ser jogados para lá e para cá
Mas como é que Deus lança o seu desafio? Qual é o gesto mais poderoso que ele realiza em relação a nós? Não nos oferece uma palavra consoladora, mas acontece na nossa vida. Para fazer-nos entender o quanto valemos, o Verbo – Deus, o significado, a origem e o destino do nosso viver – fez-se carne e veio habitar entre nós (cf. Jo 1,14). Nada é mais convincente do que isto: o Senhor do céu e da terra assume a nossa humanidade. Fazendo-se carne, e permanecendo presente por meio da carne, da humanidade real de pessoas concretas, Ele pode abraçar qualquer situação humana, entrar em qualquer problema, em qualquer ferida, em qualquer expectativa do coração. Pode fazer ecoar hoje, como palavras vivas, aquelas palavras pronunciadas pela primeira vez há dois mil anos e que dão a medida exata da grandeza de cada um de nós: «Que adianta a alguém ganhar o mundo inteiro, mas arruinar a sua vida? Que poderia dar em troca de sua vida?» (Mt 16,26). O nosso eu vale mais do que o universo! Dom Giussani comentava desta forma as perguntas de Jesus: «Mulher alguma jamais ouviu outra voz falar de seu filho com semelhante ternura original e indiscutível valorização do fruto de seu seio, com uma afirmação totalmente positiva de seu destino; só a voz do judeu Jesus de Nazaré. Mas, mais ainda, nenhum homem pode sentir-se afirmado com essa dignidade de valor absoluto, independentemente de qualquer sucesso seu. Ninguém no mundo jamais pôde falar assim!» (Deixar marcas na história do mundo, p. 9).
Quando esse olhar que tanto valoriza o homem entra na vida de uma pessoa, deixa-a admirada e sem palavras, inaugura nela um olhar por si mesma que de outro modo não seria possível. Assim como pude constatar recentemente ao receber a carta de uma jovem amiga: «Quanto mais caminho sob esse olhar, mais se tornam caras para mim todas as feridas que tenho, as minhas pequenezes, as minhas dores, as coisas que de mim não compreendo, os medos, as mesquinhezes, os pecados. Eu sei que tudo isso é a possibilidade para perceber que o Senhor está passando, pois me deixa desarmada, necessitada, pequena. Fico impressionada com o fato de não querer censurar mais nada de mim, aliás, obstinadamente quero olhar para tudo até o fundo. A minha humanidade só me é cara porque é abraçada assim pelo Senhor que vem».
Vem-me à mente uma página inesquecível desse encontro com Cristo presente através da humanidade mudada de uma testemunha sua: «Assim que o Inominado entrou. Federigo foi ao seu encontro com um rosto solícito, sereno e de braços abertos, como para uma pessoa querida; [...] “há muito tempo, muitas vezes, deveria tê-lo visitado”. “Visitar-me, o senhor! O senhor sabe quem sou? Disseram-lhe bem o meu nome?” [...] “Deixe”, disse Federigo, tomando-a com amorosa violência, “deixe que eu aperte esta mão”. [...] Dizendo isso, estendeu os braços para o Inominado, que, depois de ter tentado se esquivar, e resistindo por um momento, cedeu vencido por aquele ímpeto de caridade, também abraçou o cardeal. [...] O Inominado, desvencilhando-se daquele abraço, [...] exclamou: “Deus verdadeiramente grande! Deus verdadeiramente bom! Agora me conheço, compreendo quem sou”» (Os noivos). O ponto realmente interessante é que a experiência do Inominado que Manzoni descreve está ao alcance de todo o mundo, vemo-la reacontecer em pessoas como a minha jovem amiga.
O ponto realmente interessante é que a experiência do Inominado que Manzoni descreve está ao alcance de todo o mundo, vemo-la reacontecer
É esta a «boa nova» que o Natal nos traz. Não só palavras boas, mas o encontro com uma realidade humana, carnal, que desafia o nada que avança e nos permite olhar inteiramente para nós mesmos – como somos – sem vergonha, pois Jesus de Nazaré não se envergonhou de entrar na nossa carne tornando-se homem. O Natal é o menino envolto em faixa que nos diz: «Por que não olhas para ti como eu te olho, como olho para a tua humanidade? Não percebes que me fiz menino justamente para mostrar-te toda a preferência que tenho por ti?»
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