A ferida de Beirute
Crise política e econômica, cortes de luz duas vezes por dia e um contexto que empurra quem vive lá a se fechar. A esperança para o Líbano entre os projetos promovidos pela Campanha da AVSIAgora voltaram à alternância: alguns dias em sala de aula, outros on-line. «Depois de passarmos meses fazendo tudo remotamente, com seiscentos professores acompanhando cinco mil crianças, encarregando-nos de que todos os pais tivessem acesso à internet, é um grande passo à frente», afirma Marina Molino Lova. Ela é italiana, casada, tem dois filhos e é a diretora da AVSI no Líbano, país para o qual se mudou em 2008, depois de se formar em Engenharia Agrícola. Chegou para fazer doutorado na Universidade Americana de Beirute e acabou encontrando trabalho e marido. Assim, ela ficou neste canto do Mediterrâneo tão bonito e atormentado que antigamente era chamado de “a Suíça do Oriente Médio”, por sua riqueza e por uma convivência insólita entre culturas e religiões, do qual agora só se fala para dar más notícias.
A última rodada de manchetes envolvendo o Líbano foi em 4 de agosto de 2020 pela terrível explosão de um depósito de nitrato de amônio, com 220 mortos, mais de seis mil feridos e o centro de Beirute destruído, com danos avaliados em quinze bilhões de dólares. Uma ferida quase mortal para um país que seis meses antes, justamente quando a pandemia eclodia, declarou falência ao não poder pagar os empréstimos internacionais. Desde então, tudo enlouqueceu: inflação semestral de 120%, desemprego de 40%, uma queda do PIB de 9,5% em 2021, apagões contínuos de energia, combustíveis em alta... Três de cada quatro libaneses já vivem agora abaixo da linha da pobreza. Adicione-se a isso uma crise perene de refugiados, agravada pela guerra (no Líbano, além dos quatro milhões de habitantes locais, há quase um milhão e meio de refugiados sírios e meio milhão de palestinos), em um cenário que precisa como do ar de um governo estável. Em vez disso, tem de lidar com uma política em termos mínimos: o executivo que subiu ao poder em setembro, após 13 meses de impasse, é muito fraco, e as eleições marcadas para março são um gigantesco ponto de interrogação.
«Com a última crise, a economia foi pelos ares. Houve o fechamento de 40% das atividades, os salários só dão para pagar a gasolina, e muitas escolas públicas passaram meses fechadas», conta Marina. A AVSI, presente desde 1996, teve que «adaptar sua resposta às necessidades». Onde antes eram aprovados projetos de desenvolvimento especialmente voltados para a agricultura, setor que ocupa uma boa faixa econômica, agora temos que enfrentar uma série de emergências, tentando cuidar de um eixo decisivo: a educação.
«Organizamos atividades para crianças sírias, para prepará-las para seu ingresso no sistema escolar libanês, do jardim de infância aos 14 anos». Depois, formação profissional. «Apoiamos as escolas agrícolas do Ministério e organizamos cursos para adolescentes e adultos». Também há formação técnica, apoio psicossocial para jovens, relação com empresas e instituições para estágios e projetos de cash for work, que permitem que dezenas de pessoas encontrem uma saída para o seu percurso formativo. «Ajudamos as prefeituras com trabalhos de manutenção que de outro modo ninguém faria», explica Marina. E participam de projetos como Rubble to Mountains, dos escombros às montanhas, reciclando toneladas de escombros recolhidos na explosão. São selecionados e transformados grande parte em cascalho, para preencher pedreiras em desuso e reflorestar morros.
O cash for work é um modelo que também é aplicado na agricultura, e funciona. Não é por acaso que a campanha de Natal que a AVSI organiza todos os anos em todo o mundo (e que em 2021 também apoiou o Líbano) contempla ajudas aos community gardens, terrenos abandonados que são subsidiados e equipados com sistemas de irrigação, distribuídos entre 120 pessoas vulneráveis que se encarregam de cultivá-los. A colheita é distribuída depois entre os necessitados. Mas a campanha também financia a adoção à distância de 1.200 crianças, ajuda para 2.850 famílias e a realização do Fada2i, centro multifuncional que está sendo construído em Marjayoun, no sul. «É uma das zonas mais conturbadas do país», conta Marina. «Primeiro a guerra, em seguida a invasão israelense, depois o embargo e novamente a guerra». A convivência aqui se tornou uma ferida aberta. «Mas vemos que é possível. Difícil, mas possível. Sempre foi possível aqui, por décadas. Por isso estamos construindo um lugar onde podemos organizar atividades comunitárias, entre cristãos libaneses e xiitas. “Fada2i” quer dizer mais ou menos “meu universo”. Estará pronto em maio».
Quem sabe se até lá o Líbano terá ao menos começado a dar algum passo, a se mover depois do que Marina chama de «um impasse de loucos. As eleições devem ocorrer na primavera, mas não se veem perspectivas de mudança». Em meio à crise, a corrupção encontra ainda mais espaço. «Agora, você compra as famílias que têm dificuldades por três dólares por mês. Corre-se um grande risco de voltar a um assistencialismo local e faccioso».
É a última coisa que quem ama de verdade este país quer. «Não somos um povo que espera que lhe seja dada uma refeição pronta, nunca fomos», diz Rony Rameh, libanês que trabalha na AVSI e é um dos responsáveis de CL no Líbano. Mas é difícil seguir adiante quando só há eletricidade duas horas por dia e o resto do tempo você tem que usar o gerador do bairro, e o botijão de gás que em outubro você comprava por trezentas mil libras libanesas agora custa o dobro, e quem sabe quanto no mês que vem. «Aqueles que ganham seu salário em dólares resistem, mas os que recebem em libras não», acrescenta Andreina, esposa de Rony. «Outro dia, no supermercado, vi um menino com seu pai. Teria cinco anos e perguntava: “Vamos comprar isso? Podemos levar aquilo? Papai, por que sempre não?”. Você tinha que ver o rosto daquele homem».
Para Andreina, o seu Líbano é «um país de Deus, desde sempre. O Senhor falou ali a Moisés e apareceu mais de setenta vezes na Bíblia». Ela sofre ao vê-lo assim. «Muitas famílias não podem levar seus filhos à escola», afirma Rony. «Aqui a educação é a coisa mais importante. As famílias estão dispostas a vender tudo para seus filhos estudarem. Mas não podem. Muitos vão embora». Veem-se barcos zarpando para Chipre, para a Europa. Enquanto isso, o aeroporto de Beirute se tornou um dos núcleos do tráfego que leva os migrantes ao funil da fronteira bielorrussa.
Rony e Andreina resistem. «Se estivéssemos sozinhos, não conseguiríamos», diz ela. «O que nos dá força é a companhia da fé. Podemos compartilhar a nossa dor, olhar para os nossos amigos, e isso nos dá esperança. Há uma presença que nos permite ver o bem dentro de uma realidade muito sombria. Mesmo aqui há algo para nós». Ele diz que «depois de vinte anos no Movimento, percebemos como é decisivo pertencer a uma companhia assim. Serve para viver». Ela acrescenta que «é essa amizade que me educou e me fez perceber o que é o cristianismo. Antes eu era uma pessoa formal, ligada à tradição e pronto. Agora vivo ligada à realidade».
Marina também fala de “ficar” e de “esperança” quando fala sobre o futuro. Ela o faz com pudor, quase com cautela. «Eu me casei com um libanês, temos dois filhos pequenos. Você se faz mil perguntas. Que preço vai implicar para eles a nossa decisão de ficar? Que educação eles vão ter? A explosão foi devastadora também do ponto de vista humano. Há muita desconfiança e um contexto que empurra as pessoas a se fecharem, a voltarem aos espaços de suas próprias identidades». Entretanto, acrescenta, «aqui me acolheram. Vi a beleza de um povo no acolhimento, nos valores que tem. Vi isso na unicidade deste lugar». Para ela, a esperança está aí, «no que os libaneses continuam a ser. Essa beleza continua existindo. Sofre, mas continua existindo. É preciso ajudá-la a crescer».