A Suprema Corte dos Estados Unidos (foto: Joshua Woods/Unsplash)

EUA. Aborto, «sentença que restitui centralidade à democracia»

Entrevista com Paolo Carozza, docente da Universidade de Notre Dame: «A sentença não é construída sobre bases morais, mas jurídicas» (de Tempi.it)
Leone Grotti

«A abolição do direito constitucional ao aborto é sem dúvida uma decisão histórica, que tornará os Estados Unidos uma democracia melhor.» Paolo Carozza tem certeza disso, ele que é docente de Direito e diretor do Instituto para Estudos Internacionais Helen Kellogg na faculdade de Leis da Universidade de Notre Dame (Indiana). Numa entrevista para o site da revista italiana Tempi.it, Carozza explicou por que os juízes da Suprema Corte, que no dia 24 de junho reverteram a sentença Roe vs. Wade, não decidiram com base em argumentações morais ou políticas e por que a sentença restitui finalmente, «depois de quase 50 anos», centralidade ao povo americano.

Professor, os meios de comunicação na Europa estão incrédulos: como é possível limitar o aborto depois de 50 anos?
Primeiramente, é importante sublinhar que a decisão não impõe de modo algum restrições constitucionais à interrupção da gravidez. Apenas estabelece que a Constituição americana não ordena nem proíbe o acesso ao aborto e, por consequência, devolve o ônus da decisão aos representantes eleitos pelo povo nos diversos Estados americanos.

Então a sentença, em certo sentido, torna os Estados Unidos mais “europeus”?
Exatamente. Essa sentença aproxima a América das práticas em vigor na maior parte dos países do mundo, em vez de deixá-la à mercê da licença para abortar quase ilimitada que a sentença Roe vs. Wade permitiu por meio século.

E o que vai acontecer agora?
Alguns Estados americanos vão aprovar maiores restrições ao aborto, outros vão reduzi-las , e a maioria vai tentar encontrar compromissos complicados entre as diversas visões dos cidadãos, permitindo o aborto mas só em algumas condições por períodos de tempo mais ou menos limitados, assim como ocorre na maior parte dos países europeus. Mas a sentença Dobbs também terá implicações profundas em outro tema.

Qual?
O da interpretação e aplicação correta da Constituição. Também terá repercussões na definição de qual é o papel apropriado dos juízes na nossa república democrática. É uma volta às origens decisiva em relação à centralidade que casos como Roe puseram nas mãos dos juízes, quase como se tivessem de resolver por nós as controvérsias morais fundamentais que agitam a nação.

Diga a verdade: a maioria dos juízes é contra o aborto, então reverteram a Roe vs. Wade.
Não. A sentença não leva em consideração os argumentos morais a favor ou contra o direito a obter um aborto nem as considerações políticas em prol de uma abordagem mais liberal ou mais restritiva ao aborto. De fato, rechaça explicitamente essas formas de argumentos, insistindo no fato de que o único problema relevante é a interpretação correta da própria Constituição. O parecer da maioria é favorável tanto a uma abordagem literal quanto a uma historicamente informada, e oferece dois argumentos.

Quais?
Primeiro: em nenhum lugar a Constituição americana reconhece um direito ao aborto. Segundo: não há nenhuma base histórica para afirmar que um direito ao aborto esteja enraizado na história e na tradição dos Estados Unidos. O juiz Samuel Alito, escrevendo em nome da maioria, mostrou convincentemente que a sentença Roe vs. Wade realmente não tinha nenhum fundamento legal.

Clássica argumentação dos pró-vida.
Não, isso é uma coisa que inclusive muitos apoiadores do direito ao aborto nos Estados Unidos reconhecem há tempo.

E quais são as razões que baseiam a opinião de dissenso dos juízes liberais?
O tema em que mais insistem é que remover a garantia constitucional ao acesso ao aborto traz uma ameaça série e direta à autonomia e à igualdade das mulheres. Eles sustentam que o aborto é necessário para que as mulheres, enquanto cidadãs, sejam livres e iguais. Mais que uma argumentação jurídica (apesar de também haver questões técnicas no parecer discordante), é fundamentalmente uma argumentação política e sociológica.

E a maioria, como foi que responder a essa objeção?
De um jeito muito simples: é justamente porque essas controvérsias morais são fortemente divisivas e é justamente porque em torno delas dezenas de milhões de americanos se acham em desacordo entre si que é importante a Corte ater-se apenas ao que a Constituição estabelece claramente. A Suprema Corte, afirmam eles, é composta por nove pessoas falíveis, não eleitas e com um cargo vitalício. Elas não podem substituir a própria visão moral e os próprios juízos políticos aos que vêm à tona no processo democrático do povo americano.

Na Europa, o aborto é hoje um totem, um tabu. Já nos Estados Unidos o debate ainda anima e divide a população como no primeiro dia. Por quê?
Há causas profundas que vão muito além do aborto. A correlação dinâmica e distintiva entre direitos fundamentais, política e justiça é algo que remonta ao primeiríssimo período da república americana. Quase dois séculos atrás, Alexis de Tocqueville explicou que é muito raro na América uma controvérsia política qualquer não terminar cedo ou tarde na frente de um juiz. Mas o contrário também é verdade: é muito raro que uma decisão judiciária sobre temas controversos dê a palavra final à controvérsia política que a gerou.

Então os americanos nunca aceitaram que a Roe vs. Wade calasse a boca e a consciência deles?
Exatamente. A Roe foi rechaçada como ilegítima desde o primeiro momento, porque a Suprema Corte tentou remover o aborto do espaço do compromisso política e legislativo que o povo confia a seus representantes eleitos.

Mas por que nos Estados Unidos ainda brigam por causa do aborto?
Uma das razões é a presença pública e a visibilidade de que gozam nos Estados Unidos as comunidades religiosas, especialmente as cristãs, que resistiram melhor do que as europeias no último século e mantiveram erguida a bandeira pró-vida ao longo das décadas. Para mim, é surpreendente que a geração dos meus filhos seja muito mais pró-vida do que nós jamais tenhamos sido na idade deles. Isso se deve principalmente ao poder da ciência e da imaginação deles. Hoje temos um conhecimento muito maior (e muito mais visual) da embriologia e do desenvolvimento humano desde a concepção até o nascimento, e isso constitui um testemunho poderoso da humanidade e, consequentemente, da dignidade de cada ser humano não nascido.

O presidente Joe Biden declarou que é tudo culpa (ou mérito, conforme o ponto de vista) dos três juízes conservadores nomeados por Donald Trump. O que você pensa disso?
As três nomeações de Trump foram absolutamente decisivas, visto que os três juízes escolhidos por ele estão presentes na maioria dos cinco que reverteram a Roe. Mas acho importante ressaltar que para eles três essa decisão é coerente com uma abordagem maior, mais sofisticada e séria (embora contestado por alguns, obviamente) a respeito da interpretação da Constituição e do papel do juiz. Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett foram nomeados – e apoiados em geral pelos conservadores (não só pelos que votaram no Trump) – não apenas na esperança de que revertessem a Roe vs. Wade, mas por uma convicção mais geral.

Qual?
Se os juízes mantiverem um papel limitado e contido, no longo prazo a democracia constitucional melhora e fica mais saudável.