O senso religioso. O prefácio de Bergoglio
No dia 2 de maio, o novo livro da Escola de Comunidade foi apresentado em Milão. Aqui, o prefácio da nova edição: um pronunciamento de 1998 de Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, durante um encontro sobre o livroNo dia 2 de maio, no Teatro Dal Verme de Milão, foi realizada a apresentação da nova edição de O senso religioso, de Dom Giussani, editada no Brasil pela Companhia Ilimitada. Na ocasião, dezenas de pessoas assistiram à transmissão on-line, conectados em diversos auditórios de toda a Itália e do exterior. O evento foi introduzido pelo presidente da Fraternidade de CL, Davide Prosperi, e em seguida ocorreu um diálogo sobre os temas do livro com o teólogo espanhol Javier Prades, moderado pela jornalista Irene Elisei.
Abaixo, publicamos o prefácio do livro, o texto do discurso de Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, por ocasião da apresentação pública da edição espanhola de O senso religioso, em 16 de outubro de 1998, em Buenos Aires.
Quando dei a palestra em que se baseia este texto, por ocasião da apresentação da edição espanhola de O senso religioso, não fiz um gesto de protocolo formal, nem mesmo o que poderia ser uma curiosidade científica diante de uma abordagem da exposição de nossa fé. Em primeiro lugar, fiz um ato de gratidão a Dom Giussani. Durante muitos anos seus escritos inspiraram minha reflexão, me ajudaram a rezar; me ensinaram a ser um cristão melhor, e minha intervenção quis dar testemunho disso.
Dom Giussani é um daqueles dons imprevisíveis que o Senhor doou à nossa Igreja após o Concílio, dando origem, além de todas as estruturas e programações pastorais, a um florescimento de pessoas e movimentos que estão oferecendo milagres de vida nova dentro da Igreja. Em 30 de maio de 1998, na Praça de São Pedro, o Papa [João Paulo II] quis encontrar-se publicamente com as novas comunidades e movimentos eclesiais. Foi um acontecimento objetivamente transcendente. De modo especial, ele pediu a quatro fundadores de movimentos que dessem seu testemunho. Entre eles estava Dom Giussani, que em 1954, ano em que começou a ensinar religião numa escola pública de Milão, deu vida ao movimento Comunhão e Libertação, presente hoje em mais de sessenta países do mundo e muito amado pelo Papa.
O senso religioso não é um livro de uso exclusivo daqueles que fazem parte do Movimento; também não é só para cristãos ou crentes. É um livro para todos os homens que levam a sério a sua humanidade. Ouso dizer que hoje a questão que mais devemos enfrentar não é tanto o problema de Deus – a existência de Deus, o conhecimento de Deus –, mas o problema do homem, o conhecimento do homem e o encontrar no próprio homem a marca que Deus lhe deixou para que possa encontrar-se com Ele.
Fides et ratio
É uma feliz coincidência que esta apresentação tenha ocorrido no dia seguinte à publicação da Encíclica Fides et ratio, de João Paulo II, que abre com esta densa consideração: «Basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra, animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? Por que existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tsé, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efetivamente a orientação que se imprime à existência».[1]
O livro de Dom Giussani está de acordo com a Encíclica: é para todos os homens que levam a sério a sua humanidade, que levam a sério estas questões. Paradoxalmente, em O senso religioso pouco se fala de Deus e muito do homem. Fala-se muito sobre os nossos “porquês”, muito sobre as nossas exigências últimas. Citando o teólogo protestante Niebuhr, o próprio Giussani explica que “nada é tão absurdo quanto a resposta a uma pergunta que não se coloca”.[2] E um dos problemas da nossa cultura de supermercado – que apresenta ofertas acessíveis para acalmar o coração – é dar voz a essas perguntas do coração. Esse é o desafio. Diante do torpor da vida, de uma tranquilidade oferecida a baixo custo por uma cultura de supermercado (mesmo que extremamente variada em suas formas), o desafio é fazer a nós mesmos as perguntas reais sobre o significado do homem, sobre sua existência, e dar respostas a essas perguntas. Mas se quisermos dar respostas a perguntas que não ousamos, não sabemos ou não podemos explicar, caímos num absurdo.
Para um homem que esqueceu ou censurou seus “porquês” fundamentais e o anseio ardente de seu coração, o fato de falar de Deus com ele acaba sendo um discurso abstrato, esotérico ou um impulso à devoção sem qualquer relação com a vida. Não podemos fazer um discurso sobre Deus se não tivermos soprado as cinzas que estão cobrindo as brasas dessas perguntas. O primeiro passo é encontrar o significado de tais questões que estão escondidas, enterradas, talvez quase morrendo, mas que existem.
A inquietação do coração
O drama do mundo de hoje é o resultado não só da ausência de Deus, mas também, e sobretudo, da ausência do homem, da perda da sua fisionomia, do seu destino, da sua identidade, da capacidade de explicar as exigências fundamentais presentes no seu coração. A mentalidade comum, e infelizmente também a de muitos cristãos, pressupõe que há uma oposição inconciliável entre razão e fé. Em vez disso – e aqui reside outro paradoxo – O senso religioso enfatiza o fato de que falar seriamente de Deus significa exaltar e defender a razão e descobrir seu valor e o método correto para usá-la. Não uma razão entendida como medida preestabelecida da realidade, mas uma razão aberta à realidade na totalidade de seus fatores e que parte da experiência, que parte desse fundamento ontológico que desperta a inquietação do coração. Não se pode levantar o problema de Deus tranquilamente, com o coração quieto, porque seria uma resposta sem pergunta.
A razão que reflete sobre a experiência é uma razão que tem como critério de julgamento comparar tudo com o coração, mas com o coração no sentido bíblico, ou seja, como aquele conjunto de exigências originais que todo homem possui: a necessidade de amor, felicidade, verdade e justiça. O coração é o núcleo do transcendente interior, onde a verdade, a beleza, a bondade, a unidade que dá harmonia a todo o ser têm suas raízes. Nesse sentido, definimos a razão humana; não o racionalismo, aquele racionalismo de laboratório, o idealismo ou o nominalismo (este último tão na moda), que pode tudo, que pretende possuir a realidade por possuir o número, a ideia ou a racionalização das coisas. Ou, se quisermos ir ainda mais longe, afirmam possuir a realidade dominando de forma absoluta uma técnica que nos ultrapassa no exato momento em que a utilizamos, caindo assim naquela civilização que Guardini gostava de chamar de “a segunda forma de incultura”. Ao contrário, falamos de uma razão que não se reduz nem se esgota no método matemático, científico ou filosófico. Cada método é apropriado em seu próprio campo e com relação a seu objeto específico.
Certeza existencial
No que diz respeito às relações pessoais, o único método adequado para chegar ao verdadeiro conhecimento é viver, e viver juntos uma companhia vivaz que, através de múltiplas experiências e sinais, nos permite chegar ao que Giussani chama de “certeza moral” ou, melhor ainda, “certeza existencial”.[3] Este é o único método adequado, porque a certeza não está na cabeça, mas na harmonia de todas as faculdades do homem, e possui todas as condições para ser uma certeza ao mesmo tempo real e racional.
Por sua vez, a fé é, precisamente, uma aplicação particular do método da certeza moral ou existencial, um caso particular de confiança no outro, nos sinais, nos indícios, nas convergências, no testemunho dos outros. No entanto, a fé não é contrária à razão. Como todos os atos tipicamente humanos, a fé é razoável, o que não implica que possa ser reduzida a mero raciocínio. É razoável – forçamos a expressão –, mas não “raciocinante”.
Por que existe a dor, por que existe a morte, o mal? Por que a vida vale a pena viver? Qual é o sentido último da realidade, da existência? Qual é o sentido de trabalhar, amar, comprometer-se no mundo? Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Estas são as grandes e elementares perguntas que um jovem, e também um homem adulto, faz a si mesmo; e não apenas os crentes, mas qualquer homem, seja ateu ou agnóstico. Mais cedo ou mais tarde, especialmente nas situações extremas da existência, diante de uma grande dor ou de um grande amor, na experiência de educar filhos ou no exercício de um trabalho aparentemente sem sentido, essas perguntas inevitavelmente vêm à tona. São perguntas que não podem ser erradicadas. Eu disse que essas são perguntas que até um agnóstico faz. Quero mencionar aqui, homenageando-o, um grande poeta de Buenos Aires, um agnóstico, Horacio Armani. Quem lê seus poemas encontra uma sábia exposição de perguntas abertas a uma resposta.
Resposta total
O homem não pode contentar-se com respostas reduzidas ou parciais que o obriguem a censurar ou esquecer algum aspecto da realidade. Na verdade, no entanto, nós o fazemos: e isso é apenas uma fuga de si mesmo. O homem precisa de uma resposta total que compreenda e salve todo o horizonte do seu “eu” e da sua existência. Dentro de si ele possui um anseio pelo infinito, uma tristeza infinita, uma nostalgia – o nostos algos de Ulisses – que se satisfaz apenas com uma resposta igualmente infinita. O coração do homem mostra-se sinal de um Mistério, isto é, de algo ou alguém que é uma resposta infinita. Se não for no Mistério, as exigências de felicidade, de amor e de justiça nunca encontram uma resposta que satisfaça plenamente o coração humano. Se essa resposta não existisse, a vida seria um desejo absurdo.
Não só o coração do homem, mas também toda a realidade se apresenta como sinal. O sinal é algo concreto, indica uma direção, algo que pode ser visto, que revela um significado, que pode entrar na experiência, mas que remete a outra realidade que não é vista. Caso contrário, o sinal não teria sentido.
Por outro lado, questionar-nos diante dos sinais requer uma capacidade profundamente humana, a primeira que temos como homens e mulheres: a admiração, a capacidade de nos surpreendermos, como a chama Giussani, enfim, um coração de criança. O princípio de toda filosofia é o maravilhamento, e só o maravilhamento leva ao conhecimento. Observe-se que a degradação moral e cultural começa a surgir quando essa capacidade de maravilhamento se enfraquece, se anula ou morre. O ópio cultural tende a anular, enfraquecer ou matar essa capacidade de maravilhamento. O Papa Luciani disse certa vez que o drama do cristianismo contemporâneo está em colocar categorias e normas no lugar do assombro por um acontecimento. O maravilhamento vem antes de todas as categorias, é o que me leva a buscar, a me abrir; é o que torna a resposta possível, que não é nem uma resposta verbal nem conceitual. Porque se o maravilhamento me abre como pergunta, a única resposta é o encontro: e só no encontro minha sede se sacia, em nada mais.
NOTAS
[1] João Paulo II, Carta encíclica Fides et ratio, 14 de setembro de 1998, 1.
[2] Cf. R. Niebuhr, Il destino e la storia. Antologia degli scritti, Milão: Bur, 1999, p. 66.
[3] L. Giussani, O senso religioso, Jundiaí: Paco Editorial, 2017, pp. 43-44.