Paris, as manifestações após a revisão da constituição (Foto: Vincent Isore/IP3 via ZUMA Press/Ansa)

Aborto. O passo atrás de Paris

Muitos foram às ruas para comemorar aos pés da Torre Eiffel, iluminada para a ocasião. Mas o que realmente representa o direito ao aborto inserido na constituição francesa? Conversamos com o constitucionalista italiano Vincenzo Tondi della Mura
Stefano Filippi

Primeiro país do mundo, a França incluiu na Constituição o direito ao aborto. O que levou a essa imposição de direito? E quais consequências terá? Falamos sobre isso com Vincenzo Tondi della Mura, professor de Direito constitucional na Universidade do Salento.

De onde vem essa iniciativa legislativa?
O Parlamento francês considerou que um recente pronunciamento da Suprema Corte dos EUA constituía uma ameaça também para a própria legislação nacional. A referência é à decisão Dobbs de 24 de junho de 2022, que aboliu outra decisão histórica, a Roe contra Wade de 1973, que havia legalizado o aborto nos Estados Unidos e é a precursora das legislações sobre aborto também na Europa. A decisão Dobbs é explicitamente mencionada pelo Conselho de Estado francês, chamado a expressar um parecer preventivo depois que no Parlamento foram apresentadas várias propostas para consagrar essa nova liberdade fundamental.

A França temia ser atingida pelo contágio antiabortista que começou nos Estados Unidos?
O Conselho de Estado francês define a decisão Dobbs como «um choque para as liberdades em todo o mundo». Nesse sentido, o Parlamento quis se precaver, não apenas caracterizando o recurso da mulher à interrupção voluntária da gravidez como um direito, mas até elevando-o à categoria de direito constitucional, de modo a obrigar também as futuras maiorias políticas de qualquer orientação a respeitá-lo. É evidente a intenção toda política – e diria também propagandística – do revisor constitucional: ser o primeiro no mundo a elevar à categoria constitucional o direito ao aborto. Tudo isso com base numa leitura simbólica da decisão Dobbs.

O que você quer dizer?
A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos é mais complexa do que é apresentada pela mídia. Ela, por exemplo, cita os avanços da embriologia desde a época da decisão Roe contra Wade: basta considerar as certezas científicas sobre o fato – por exemplo – de que já na décima segunda semana de gestação um feto pode abrir e fechar a mão, começa a fazer movimentos e sente o estímulo do mundo externo ao útero. Na realidade, a decisão não impôs de modo algum restrições constitucionais ao aborto. Apenas estabeleceu que a Constituição americana não ordena nem proíbe o acesso ao aborto e, consequentemente, devolveu a responsabilidade de decidir aos representantes eleitos pelo povo nos diferentes estados americanos; ainda mais que desde 1973 a legislação sobre o tema havia se tornado cada vez mais permissiva. A decisão Dobbs pede «respeito e preservação da vida pré-natal em todos os estágios de desenvolvimento» junto com a «proteção da saúde e segurança da mãe». Proíbe procedimentos médicos abortivos que causem dor ao feto, incentiva a «preservação da integridade da profissão médica» e finalmente frisa que não se deve abortar com «discriminação com base na raça, sexo ou deficiência» do nascituro. A decisão Dobbs está longe de ser bárbara e obscurantista, como é retratada. Mas nada disso foi considerado pelos legisladores franceses.

Quais são os efeitos da constitucionalização do aborto?
O artigo inserido na Carta Fundamental francesa dispõe: «A lei determina as condições em que se exerce a liberdade garantida à mulher de recorrer à interrupção da gravidez». Com o resultado de atenuar as garantias, típicas do direito, em favor dos outros sujeitos envolvidos, ou seja, o nascituro e o pessoal de saúde que tem direito à objeção de consciência.

Então os direitos do nascituro e dos médicos ficam em segundo plano.
Sim, especialmente em referência ao nascituro. O relatório do Conselho de Estado explica que «o governo deseja, por um lado, afirmar que a liberdade de recorrer à interrupção da gravidez é garantida pela Constituição; por outro, deixar ao legislador a determinação das condições de exercício» desse direito. É mencionado «o equilíbrio entre os dois princípios de valores constitucionais, a liberdade da mulher e a salvaguarda da dignidade da pessoa humana»: falta, porém, uma referência explícita ao nascituro. A proteção da mulher é muito clara, enquanto a dos outros sujeitos é muito menos.

Na Itália, poderia ser introduzida uma modificação constitucional semelhante?
A lei 194, independentemente de ser ou não aceitável no mérito, menciona as garantias de todos os sujeitos envolvidos: fala da proteção do concebido, da proteção da maternidade – dentro da qual são colocados os direitos fundamentais da vida e da saúde da mulher – e do direito à objeção de consciência; direitos que, portanto, já têm uma “cobertura” constitucional. Também a Corte Constitucional reconheceu esse marco legislativo elevando-o ao status de lei com conteúdo constitucionalmente vinculante, ou seja, não modificável pelo legislador ordinário: lembro-me em particular da sentença 35 de 1997 escrita por Giuliano Vassalli. Em suma, não há razão para reabrir velhas feridas, porque o equilíbrio entre a proteção do concebido e a proteção da maternidade estabelecido por essa lei agora faz parte do sistema constitucional.

Apesar de tudo isso, a 194 ainda é uma lei que legaliza o aborto.
Sim, mas prevê acompanhamento para mulheres em dificuldade. As estatísticas nos dizem que onde há um tecido social e solidário adequado, há menos abortos. As gravidezes costumam ser mais interrompidas onde esse tecido está desintegrado ou não existe, de modo que a mulher infelizmente fica sozinha: pensemos no que aconteceu com o lockdown, quando foi iniciada a campanha pelo aborto farmacológico. A chamada “pílula do dia seguinte” não permite mais nenhum tipo de prevenção ou ajuda, e a mulher é abandonada a si mesma.

Em última análise, pode-se dizer que, também do ponto de vista jurídico, ter inserido o direito de abortar na Constituição francesa é uma questão ideológica?
Certamente. A França afirma que pretende respeitar um equilíbrio entre a saúde e a dignidade da pessoa. No entanto, não esclarece em que consiste essa dignidade e, sobretudo, quem é o beneficiário: deixa tudo para o legislador ordinário sem nunca mencionar o nascituro. Do ponto de vista jurídico, é um passo atrás. No entanto, todo o mundo o considera um passo à frente.