Uma leitura de Hannah Arendt na atualidade

No final de abril, a UCP promoveu a Semana de Literatura do Centro de Teologia e Humanidades. Dentre as atividades ocorreu um encontro sobre alguns aspectos do pensamento de Hannah Arendt, essenciais para compreender a conjuntura política atual.
José Roberto Cosmo

Alunos e professores da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) tiveram a oportunidade de conhecer o pensamento desta que foi uma das melhores pensadoras do século XX e que se tornou clássica na teoria política contemporânea. Clássica na definição de Norberto Bobbio por ter sido uma analista autêntica e relevante do seu tempo, por ter produzido uma obra que estimulou e continua a estimular interpretações diversas e plurais e por ter fornecido insights poderosos que continuam válidos para a compreensão do mundo em que vivemos.

Inicialmente, procuramos situar o pensamento de Hannah Arendt no cenário intelectual brasileiro mostrando que, apesar de ser conhecida internacionalmente, ela só veio a adquirir importância em nosso país praticamente a partir da década de 80. Isto porque o cenário acadêmico brasileiro no âmbito das ciências humanas sempre esteve marcado fortemente por um viés marxista. Somente após a derrubada do Muro de Berlim em 1989, a universidade brasileira teve abertura para receber as obras de Hannah Arendt.

Além disso, o pensamento de Hannah Arendt mostrou-se fecundo quando nos defrontamos na atualidade com a crise da democracia no mundo ocidental que começou a ser questionada a partir dos movimentos sociais populares no Egito (Praça Tahir), na Espanha (Os indignados), nos Estados Unidos (Occupy Wall Street) e no Brasil (Junho de 2013 com o movimento Passe Livre). Categorias tradicionais de representação política, de democracia representativa, de participação popular, de eleições pelo voto, passaram a ser bastante criticadas por não serem mais adequadas para a compreensão da cena política contemporânea, no Brasil e no exterior.



É neste cenário que os ensinamentos de Hannah Arendt se valorizam apontando novos caminhos , propondo senão soluções concretas mas a possibilidade de um novo início, de um começo original que permita o debate e discussão num espaço público iluminado por ideias que fertilizem o “pensamento sem corrimão”, como quer Hannah Arendt.

Após esta breve contextualização do pensamento de Hannah, apresentamos uma sumária biografia de Hannah Arendt, imprescindível para entender a evolução de seu pensamento pois não se pode entender sua obra sem conhecer sua vida pessoal, tendo em vista que muitos dos seus escritos foram uma resposta às suas experiências cotidianas tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, país para onde migrou no início da década de 40. Uma frase que marca esta estreita relação entre pensamento político e vida cotidiana é expressa por Hannah Arendt numa entrevista à TV alemã : "Eu não creio que possa haver qualquer processo de pensamento sem experiência pessoal. Todo pensamento é re-pensado".

Em seguida, passamos a expor os principais conceitos da teoria política de Hannah Arendt expressos em seu livro A Condição Humana. Nesta obra, ela apresenta uma fenomenologia da vida ativa composta pelas três atividades humanas principais: o labor, o trabalho e a ação. O labor relaciona-se com tudo o que diz respeito à reprodução e à manutenção da vida no planeta. O trabalho diz respeito ao mundo da permanência e da estabilidade no qual são produzidos os artefatos humanos. E a ação é a atividade humana essencialmente política e sua abordagem representa a contribuição de Hannah Arendt para a teoria política.
Para ela, a ação é a matéria-prima da política e a liberdade sua razão de ser.
Para Hannah Arendt duas são as vertentes que desaguaram em concepções políticas especificas. A primeira delas é grega, com a elaboração dos conceitos de ação e de autoridade política e apresenta uma concepção instrumental da política pois a ação é reduzida à fabricação. A segunda é cristã, através de Santo Agostinho com o conceito de liberdade vinculado à vontade, colocando a liberdade no âmbito da vida privada.

Para compreendermos a concepção política de Hannah Arendt é imperioso proceder à distinção entre o fazer e o agir. Uma primeira distinção diz respeito à revelação do agente da ação humana. No agir, revela-se um Quem enquanto que na atividade da fabricação revela-se um Que (objeto).

Neste sentido, a pluralidade humana é fundamental pois o Quem somente se revela na presença de outros, e para Hannah Arendt a pluralidade humana é a “paradoxal pluralidade de seres singulares”. Para ela, dois elementos são importantes para compreendermos a sua concepção política: a pluralidade e a publicidade. A ação política é uma atividade que se desenvolve entre os homens – seu caráter plural – em um espaço público onde “ a ação e o discurso são modos pelos quais os seres humanos se manifestam não como meros objetos físicos mas como homens”. Para ela, política é o que aparece e o que é público.



Outra característica da ação política é a sua imprevisibilidade na medida em que ela cria algo que não existia anteriormente, fazendo surgir o inesperado graças à liberdade humana de iniciar processos. Neste sentido a ação humana não é condicionada como no caso do fazer humano mas é motivada. A ação é a atividade mais relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir.
Duas outras categorias são importantes para entender a política segundo Hannah Arendt: o perdão e a promessa. Uma vez que a ação é praticada, ela se torna irreversível e pode gerar processos danosos para o agente e, para ela, a única possibilidade de resolver o problema da irreversibilidade da ação é através da faculdade do perdão. E este também depende da pluralidade humana pois não é um ato isolado.

Para contornar o problema da imprevisibilidade da ação humana e para garantir a estabilidade na relação entre os homens no espaço público, Hannah Arendt busca na tradição a faculdade humana do prometer, a capacidade dos homens de fazerem pactos, de estabelecerem acordos no seu processo de convivência. Segundo ela, “a imprevisibilidade tem dupla origem: decorre ao mesmo tempo da ‘treva do coração humano’, ou seja, da inconfiabilidade fundamental dos homens, que jamais podem garantir hoje que serão amanhã, e da impossibilidade de se prever as consequências de um ato numa comunidade de iguais, onde todos tem a capacidade do agir”

É claramente visível a contemporaneidade do pensamento político de Hannah Arendt pois o mundo em que vivemos continua experimentando “tempos sombrios” bastando para isto nos recordarmos da recente questão do lançamento de mísseis pela Coréia do Norte ou nos atentados terroristas do Estado Islâmico.

O seu conceito de ação como um novo início, como capacidade do homem de sempre começar de novo; o perdão como faculdade humana de responder à irreversibilidade da ação humana; a promessa como ato humano de fazer acordos, de pactuar para garantir a estabilidade de um mundo imprevisível; a categoria de natalidade em substituição à de mortalidade como categoria central da política, oferecem-nos uma abordagem riquíssima para enfrentar os desafios da vida contemporânea que se caracteriza, na feliz expressão do Papa Francisco, por uma “mudança de época” em contraposição à “época de mudanças” vivida ao longo do turbulento século XX.

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