A democracia é fruto da caridade
A Charta Caritatis, que regulava as relações entre as abadias cistercienses, completa 900 anos. Mas ainda tem muito a dizer àqueles que refletem sobre a crise das instituições democráticasUma tese fascinante e bem fundamentada: o primeiro “manifesto” para uma convivência civil democrática é a Charta Caritatis, a constituição dos monges beneditinos-cistercienses, confirmada pelo Papa Calixto III em 1119, apenas 21 anos após a fundação da abadia mãe de Citeaux. Um século antes da Magna Charta Libertatum, geralmente proclamada como a primeira formulação de princípios democráticos, sem dúvida influenciada pela Charta Caritatis. As abadias cistercienses eram treze naquele momento, suas relações eram fixadas por um texto normativo, uma espécie de “pacto” entre os abades que tinha como estrela polar a caridade.
O texto é bastante curto: onze capítulos que ocupam cerca de duzentas linhas, mas que são muito atuais. Por ocasião do nono centenário de sua promulgação, o Centro Cultural de Milão, juntamente com o padre Mauro Lepori, abade geral da ordem, e o professor Stefan Zamagni, economista e presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, consideraram que esse aniversário poderia ser uma ocasião não apenas para a vida religiosa dos interessados diretos, mas para a vida civil de todos. O encontro com os dois protagonistas foi na última sexta-feira, 18 de outubro, sob o título “Da convivência à democracia: a escrita da caridade, e este repleta de pontos de juízo muito úteis à atualidade política: reflexivos os oferecidos pelo monge, incendiários os lançados pelo professor.
A primeira coisa que o padre Lepori apontou foi que a Charta não precede, mas é fruto de uma experiência («hoje se costuma alterar esta ordem – assinalou Zamagni –, o que é um desastre: basta vermos o justicialismo»). Também é fruto, prosseguiu Lepori, «do desejo de que essa experiência permaneça», isto é, da vontade de «salvaguardar acima de tudo o carisma original». Segundo a Charta, a vida de qualquer comunidade deve seguir fielmente, em todas as abadias, a regra de São Bento. O primado de Citeaux não deve afetar a independência operativa nem a autossuficiência econômica de cada uma. As relações são de “fraternidade”, diferentemente do centralismo de Cluny (o outro grande ramo beneditino). Portanto, para salvaguardar o carisma «queremos e lhes pedimos observar em tudo a Regra de São Bento assim como é observada no Novo Monastério. O sentido da leitura da santa Regra não deve mudar». Mas este já é o segundo capítulo. Na Charta é introduzido também o Capítulo geral anual, lugar da unidade e do apoio mútuo no seguimento do carisma. É o capítulo sétimo, onde é estabelecido o princípio da “visita”, como ocasião de verificar o caminho.
Mas o primeiro capítulo... o primeiro fala de impostos. Isso chama a atenção, certo? O coração de tudo é a caridade, isto é, a caridade de Deus. Lepori cita: «Uma vez que todos nos reconhecemos servos inúteis do único e verdadeiro Rei, Senhor e Mestre, não queremos impor nenhuma obrigação econômica nem nenhum imposto a nossos abades ou a nossos irmãos os monges, aos quais, por nosso meio – embora sejamos os mais miseráveis dos homens – a piedade divina estabeleceu em diversos lugares sob a disciplina regular. Desejosos de ser-lhes úteis, assim como a todos os filhos da santa Igreja, determinamos que não queremos nada com relação a eles que lhes seja gravoso, nem nada que diminua seus recursos, por medo de que desejando nos enriquecer com sua pobreza não podamos evitar o vício da avareza que, segundo o apóstolo, é uma idolatria».
Os cluniacenses praticavam o ora; o labora o faziam em outsourcing, isto é, encarregavam a outros. Os cistercienses voltam ao ora et labora integral. «Assim chegaram a produzir riqueza – sublinhou o economista Zamagni – muita riqueza», porque eram eficientes. Uma riqueza da qual deviam «fazer bom uso», diz a Charta. «São Bernardo, cisterciense, é o primeiro a levantar o problema de uma riqueza inclusiva – explicou Zamagni –. Aos franciscanos, herdeiros de um fundador dotado de uma grande experiência e espírito empreendedor e comercial, lhes coube achar a maneira de repartir a riqueza. O mercado civil, como lugar de circulação de riqueza, nasceu no ano de 1300 na Úmbria e na Toscana». «Não é licito se enriquecer à custa da pobreza de outros, diz a Charta – apontou Zamagni – pelo princípio cristão de fraternidade, que não é o mesmo que solidariedade». Acontece também com o assistencialismo («que não tem nenhum senso da dignidade humana»), herdeiro da filantropia do século XVII, «que não tem nada a ver com o cristianismo». Por quê? «A Charta Caritatis faz distinção entre esmola e beneficência. Esta supõe e estabelece uma relação humana para compartilhar e uma resposta proporcionada à necessidade; a esmola não. Dela derivam a filantropia e atualmente o assistencialismo».
Portanto, o princípio da caridade está na base das relações entre comunidades monásticas, mas também de uma certa ideia de sociedade civil e economia. Mas como age a caridade na pessoa? Segundo o padre Lepori, «a Charta Caritatis diz sempre que a caridade deve ser educada continuamente, até a correção mútua. Isto se aplica sobretudo aos abades, ou seja, os líderes das comunidades, chamados a se tornarem continuamente filhos e discípulos. A questão, para todos, é permanecer em uma vida de comunhão, fazer uma experiência de abandono a um lugar de fraternidade. Começando, insisto, pelos líderes. O guia é o primeiro que deve ser formado e corrigido. Só assim se realiza o necessário trabalho da unidade». Que não pode ser dado por óbvio. Nem na igreja, nem tampouco na política. «Atualmente, em que parlamento – se perguntava o abade geral – se discute, se trabalha, se luta pela unidade?»
Trata-se da negative politics, nas palavras de Zamagni, «a deslegitimação das propostas do outro, quaisquer que sejam, para maximizar os próprios objetivos individuais». Essa é a raiz: o individualismo, especialmente o libertário da segunda secularização, nos anos 60 e 70 do século passado. «Se a primeira tinha como regra de ouro se comportar como se Deus não existisse, a segunda pede que se comporte como se a comunidade não existisse», apontou Zamagni. «O utilitarismo como falsa resposta à necessidade de felicidade – acrescentou o professor – consolidou estruturas de pecado, segundo a definição que estabeleceu João Paulo II na Centesimus annus» para indicar determinados centros ou eixos de poder que oferecem ao povo um menu de opções irrelevantes para uma verdadeira mudança. «Por isso o Papa Francisco não fala de reformas, mas de estratégias transformadoras».
Com que força? Lepori voltou ao cerne da questão, a caridade, «forma suprema de política, porque é a única força capaz de vencer a divisão. Não de uma vez por todas, mas como continuamente aberta para encontrar uma comunhão. Que outra coisa pode ser a política mais que serviço à unidade sinfônica de um povo? Por isso é feita, mais que por políticos, por santos, profetas e testemunhas. Por aqueles que adoram um amor maior ou que, ainda que inconscientemente, reconhecem uma realidade maior como princípio e objetivo de sua ação. Um bom exemplo é o ministro etíope justamente premiado com o Nobel da Paz».
A propósito de estratégias transformadoras, Zamagni destacou que a democracia autêntica é aquela que permite não simplesmente a liberdade de escolher, mas a liberdade de decidir. A primeira restringe o campo ao menu proposto pelo poder, as opções já oferecidas por lógicas que não são a da caridade e a experiência do povo. O economista terminou recordando dois encontros convocados pelo Papa para favorecer a “decisão” dos homens e mulheres de boa vontade em relação a um ideal que revista o futuro da economia e da educação: de 24 a 28 de março em Assis, um fórum de mil jovens economistas e empreendedores de todo o mundo para refletir sobre uma nova economia; e a meados de maio um encontro ao qual estão convidados os chefes de Estado do G20 e as organizações internacionais, como a Unesco, para assinar um Pacto global sobre educação.