O caminho de quem procura

Por que no encontro com os representantes das religiões o Papa quis também reunir os que não crêem? Aqui fica a resposta, que tira os fiéis de sua rotina
Andrea Tornielli

Aqueles que não crêem e que estão à procura, e que, apesar de não terem encontrado Deus, não fecharam totalmente a porta à possibilidade de O encontrar, «põem em causa também aqueles que aderem às religiões, para que não considerem Deus como uma propriedade que lhes pertence a ponto de se sentirem autorizados à violência contra os outros». Trata-se da mensagem mais significativa e mais nova da Jornada de Assis que Bento XVI quis celebrar a 27 de outubro, comemorando assim o vigésimo quinto aniversário do primeiro encontro entre religiões, por vontade de João Paulo II. A novidade do encontro convocado por Ratzinger foi também a presença, a par dos líderes das religiões mundiais, de uma representação de não crentes.
Bento XVI, como já tinha feito João Paulo II da última vez, chegou à cidade de São Francisco de comboio, acompanhado por cerca de trezentos expoentes de todas as religiões do mundo, para fazer uma peregrinação de paz. A tônica foi colocada propositadamente neste caminho comum, mais do que na oração, para evitar exageros e interpretações erradas do gesto.
Na sua intervenção, no fim da cerimônia de boas-vindas, que se realizou na basílica de Santa Maria dos Anjos, o Papa relembrou Assis de 1986, recordando que nessa altura a paz no mundo era ameaçada pela divisão do planeta em dois blocos. Três anos depois daquele encontro feito por vontade do beato Karol Wojtyla, o Muro de Berlim caiu «sem derramamento de sangue». Ratzinger reconheceu que «a causa mais profunda desse evento é de caráter espiritual». No entanto explicou que, se em 89 se tratou de uma «vitória da liberdade» e, sobretudo, de uma «vitória da paz», depois daquele evento a liberdade e a paz não chegaram.
Ratzinger apresentou portanto os dois novos rostos da violência, diametralmente opostos entre si. O primeiro é o terrorismo, que justifica «qualquer forma de crueldade» e que «muitas vezes tem motivos religiosos». O Papa disse que o fato de a religião motivar a violência, «nos deve preocupar profundamente», como pessoas religiosas. Bento XVI colocou o problema da verdadeira natureza da religião, perguntando-se se existe realmente uma que seja comum. «Devemos enfrentar estas perguntas - acrescentou – se nos quisermos opor de uma forma realista e credível ao recorrer à violência por motivos religiosos». E é que a verdadeira tarefa do diálogo inter-religioso.

Ratzinger não ignorou o fato de que «na história, também se recorreu à violência em nome da fé cristã. Nós o reconhecemos cheios de vergonha. Mas é absolutamente claro que se tratou de uma utilização abusiva da fé cristã, em oposição evidente à sua verdadeira natureza», que é a de acreditar num Deus Pai de todos os homens que são irmãs e irmãos entre si.
A segunda tipologia de violência assinalada por Bento XVI no discurso de Assis é a que representa uma motivação exatamente oposta: «é a consequência da ausência de Deus, da sua negação e da perda de humanidade que resulta disso». Um «não» a Deus que «produziu uma crueldade e uma violência sem medida, que só foi possível porque o homem já não reconhecia qualquer norma e qualquer juízo acima de si próprio, mas considerava-se a si mesmo como norma. Os horrores dos campos de concentração mostram, com toda a clareza, as consequências da ausência de Deus».
O Papa não se referiu somente «ao ateísmo de Estado», mas também à decadência do homem, à «mudança do clima espiritual. A adoração da riqueza, do ter e do poder». Um desejo de felicidade que degenera, por exemplo, «numa ânsia desenfreada e desumana que se manifesta no domínio da droga sob as suas diferentes formas. Aí estão os grandes, que com ela fazem os seus negócios e depois as muitas pessoas que acabam por ser seduzidas e destruídas por ela, tanto no corpo como na alma. A violência torna-se numa coisa normal e, em algumas partes do mundo, ameaça destruir a nossa juventude».
Por fim, Ratzinger falou dos não crentes. «A par destas duas realidades, religião e anti-religião, existe também, no mundo do agnosticismo em expansão, uma outra orientação de fundo: pessoas às quais não foi concedido o dom de poder acreditar e que, todavia, procuram a verdade, estão à procura de Deus». São pessoas que não se limitam a negar Deus, mas que sofrem devido à sua ausência, e, «ao procurarem a verdade e o bem, no seu íntimo vão a caminho d’ Ele». São pessoas que colocam questões «tanto a uns como a outros» e que «retiram aos ateus combativos a sua falsa certeza», convidando-os «a tornarem-se, ao invés de polêmicos, pessoas em busca».
Mas aqueles que não crêem e que estão à procura colocam em causa «aqueles que aderem às religiões, para que não considerem Deus como uma propriedade que lhes pertence de tal modo que se sintam autorizados a agirem com violência contra os demais. Estas pessoas procuram a verdade, procuram o verdadeiro Deus, cuja imagem não raramente fica escondida nas religiões, devido ao modo como são praticadas. O fato de eles não conseguirem encontrar Deus depende também dos crentes, com a sua imagem reduzida ou ainda deturpada de Deus». Portanto, também o contra-testemunho dos crentes afasta aqueles que não acreditam. A «luta interior» e o interrogar-se dos não fiéis «constituem para os que crêem também um apelo a purificarem a sua própria fé, para que Deus – o verdadeiro Deus – se torne acessível».
Quando os fiéis, mesmo os cristãos, se endurecem, quando consideram a fé como uma posse, acabam por instrumentalizá-la e desvirtuá-la. É por isso que Bento XVI quis que, na interrogação sobre a paz e sobre os homens de religião, também estivessem presentes os não crentes. Uma decisão que não nos espanta, se conhecermos as convicções do teólogo que se tornou o sucessor de João Paulo II.

No livro-entrevista com Peter Seewald, Deus e o Mundo, há onze anos, o então Prefeito do ex-Santo Ofício, ao falar de fé cristã, disse: «A natureza da fé não é aquela em que, a uma certa altura, se possa dizer: eu já tenho e há outros que não... A fé continua a ser um caminho. Vamos a caminho durante todo o curso da nossa vida, e por isso a fé está permanentemente ameaçada e em perigo. Desta forma é também salutar que se subtraia ao risco de se transformar numa ideologia manipulável. De se empedernir e de nos tornar incapazes de partilhar a reflexão e o sofrimento com o irmão que duvida e que se interroga». «A fé só pode amadurecer – acrescentava Ratzinger – na medida em que suporte e tome a seu cargo, em todas as fases da existência, a angústia e a força da descrença e as ultrapasse até finalmente se tornar viável numa nova época».
E ainda no mês passado, no último dia da sua viagem à Alemanha, ao comentar as palavras de Jesus «os publicanos e as prostitutas passam-vos à frente no reino de Deus», Bento XVI explicou: «Traduzida na linguagem do tempo, a afirmação poderia soar mais ou menos assim: agnósticos que, por causa da questão sobre Deus não encontram a paz e pessoas que sofrem por causa dos seus pecados e têm o desejo de um coração puro, estão mais próximos do Reino de Deus do que os fiéis que tomam a fé por rotina, que já só veem na Igreja a pompa e circunstância, sem que o seu coração seja tocado por isto, pela fé».