"Um patrimônio de toda a Igreja"
Há dez anos da morte de Dom Luigi Giussani, pedimos a Guzmán Carriquiry, o colaborador de cinco Papas, que nos contasse como o fundador de CL mudou sua vidaGuardo na memória e no coração, com comovida gratidão, o dom do encontro com Dom Giussani. Encontrei-o, nas primeiras vezes, durante o processo de reconhecimento pontifício de Comunhão e Libertação, que devia acompanhar por causa do meu trabalho junto ao Pontifício Conselho para os Leigos. Primeiro, aconteceu o impacto com seu apaixonado envolvimento, interessando-se pela minha vida, minha família e meu trabalho em um surpreendente abraço de humanidade. Depois, houve maior proximidade com a experiência do Movimento através da leitura de seus textos e da amizade com aqueles que o seguiam. Na época, podia pensar, com a vã suficiência de “leigo adulto”, inclusive “subsecretário” de um departamento da Santa Sé, que a minha estrutura Cristã já fosse bem certa e consolidada. Porém, experimentei a grata surpresa, também cheia de entusiasmo, que esses encontros tornavam mais clara para mim a natureza do acontecimento cristão, tornavam- no mais razoável, belo e atraente para a minha vida e me educavam a uma maneira de olhar toda a realidade.
Seguindo de perto aquela grande fase de aparecimento e desenvolvimento dos “movimentos” na vida da Igreja, pude perceber bem – e isso é bastante documentado – os relacionamentos de viva estima pessoal que aconteciam entre Dom Giussani e São João Paulo II e, depois, entre Dom Giussani e o papa Bento XVI (e, com ambos, antes mesmo de se tornarem pontífices). Dom Giussani educou os seus a uma atenta e inteligente obediência ao Magistério dos sucessores de Pedro. É necessário, porém, examinar quanto o genial pensamento teológico e educativo de Dom Giussani teve uma influência efetiva nesse Magistério. Dom Rino Fisichella ousou dizer que Joseph Ratzinger tornou-se o Papa mais “giussaniano”, sublinhando as profundas concordâncias no fato de propor de modo novo a grande tradição católica aos homens do nosso tempo. E como não lembrar a afirmação de Jorge Mario Bergoglio – tão distante de todo obséquio formal e de qualquer homenagem protocolar – da importância que a leitura de Dom Giussani teve para sua vida sacerdotal! Na atenção com que padre Julián Carrón segue as palavras e os gestos do Papa Francisco, não se vê apenas um dever de obediência, mas o interrogar-se até o fundo qual é, hoje, o chamado do Espírito de Deus ao carisma do Movimento, à sua história e à renovação de seu ímpeto educativo, missionário e caritativo.
Dom Giussani nunca teve – repetia sempre! – a intenção de fundar um Movimento, sempre atento à pessoa, sempre vigilante em relação a qualquer possível achatamento a uma lógica apenas associativa, vigiando para que a força inicial do carisma não se tornasse esquema e instituição, alérgico em se contentar com aquilo que se considerava já conquistado, educador do desdobramento da liberdade e da corresponsabilidade contra toda forma cristalizada, sempre disposto a recomeçar como novo início.
Nesse sentido, lembramo-nos dele como o menos “movimentista” – a única coisa que queria era educar a uma verdadeira experiência cristã –, mas foi a reflexão sobre a própria experiência que, junto com as reflexões do cardeal Ratzinger, ajudou muitos outros movimentos e comunidades, inclusive o Magistério Eclesial, a compreender o dom e o significado dessas novas gerações de homens e mulheres que redescobrem a gratidão, a alegria, a verdade e a beleza de ser cristãos, que em qualquer lugar tornam isso testemunho e que comunicam, com convicção e persuasão, as razões do dom recebido e oferecido a todos.
Sempre me impressiona observar como o carisma e o pensamento de Dom Giussani ultrapassam as fronteiras visíveis de Comunhão e Libertação, difundem-se por vias imprevisíveis, tornam-se esclarecedores para a vida cristã de muitos e suscitam perguntas, reflexões e posturas também em muitos considerados “distantes”. A edição de seus textos em tantos idiomas colaborou bastante. Mas continuo surpreso, especialmente no meu âmbito latino-americano, com o número de Bispos, padres, comunidades religiosas, políticos e acadêmicos, inclusive grupos de jovens, que falam de Dom Giussani com admiração e gratidão mesmo sem tê-lo conhecido pessoalmente, mesmo sem terem tido contato com Comunhão e Libertação. Lembro, entre tantas coisas, de um jantar em casa, com dois Cardeais latino-americanos, com pouco conhecimento sobre a experiência do “Movimento”, dos quais me lembro bem dos rostos e das palavras. Um deles, que viveu muitas dificuldades quando era um jovem Bispo nos quentes anos setenta e que sofreu ao ver que muitos companheiros militantes reduziam sua fé a moralismo irritado, quando não violento, até perdê-la, nos contava como a sua impostação pastoral e educativa mudou quando entendeu melhor, lendo textos de Dom Giussani, que o cristianismo é um “fato” e não uma ideologia. E o outro, nos ensinava com entusiasmo a importância da “correspondência” entre a fé e os desejos da pessoa...
Hoje, na Igreja, há um número maior de pessoas que, em relação às intuições geniais de Dom Giussani, se comportam como aquele “monsier Jordan, que falava em prosa sem saber que o fazia”. Alguém disse que o maior sucesso de um pensador é quando a sua impostação e suas ideias se tornam anônimas, difundindo- -se por toda parte. Neste caso, são patrimônio de toda a Igreja, pela “utilidade comum”, como dizia São Paulo. O que, dez anos depois de sua morte não é de modo algum anônimo, é o seu testemunho de santidade, que ainda nos acompanha. Assim como os rostos de tantos que, por meio desse testemunho, foram atraídos por Cristo em uma corrente de graça que continua a se difundir além das mais variadas fronteiras geográficas, culturais e existenciais.
*Secretário da Pontifícia Comissão para a América Latina