Igreja e o fim da vida. A aposta na humanidade
Uma médica se deixa provocar pela Samaritanus bonus, a carta da Congregação para a Doutrina da Fé. «Não é uma lista de normas bioéticas, mas uma proposta para a liberdade»Quarta-feira, 22 de setembro, a Congregação para a Doutrina da Fé divulgou a Samaritanus bonus, uma carta sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida. Como sempre, quando se expressa oficialmente sobre um tema que concerne ao homem, a Igreja não se propõe listar normas de bioética, mas oferecer uma antropologia: uma concepção de homem da qual derivam, depois, também as decisões bioéticas.
Também agora, o magistério aponta para cima: aposta na pessoa e nos propõe uma estatura humana surpreendente, principalmente num contexto histórico como o hodierno, caracterizado por um individualismo exasperado que recai no narcisismo, acabando por aumentar uma solidão desesperada.
Por isso, mais que debruçar-se numa análise pontual de cada passagem, considero que o leitor deva confrontar-se em primeiro lugar com a experiência de humanidade que a Samaritanus bonus o convida a fazer: trata-se de verificar a correspondência entre o que ela propõe e o que ele vive todo dia, aquilo que seu coração deseja para os entes queridos e também o seu próprio sofrimento. Desta forma poderá reconhecer a direção para a qual o documento nos convida a mover os passos tímidos e frágeis da nossa liberdade. Liberdade que, como Cervantes pôs na boca de Dom Quixote, «é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens».
Por isso, ao ler a carta, repercorri a minha experiência de quarenta anos de médica transplantologista, o meu serviço de voluntária num hospice (unidade de cuidados paliativos) e os aprofundamentos sobre o tema do “fim da vida”. Como médica, quantas vezes (e este é o nosso trabalho de todos os dias) tive de decidir quando parar um tratamento, quando insistir decidindo-o com o paciente em situações difíceis e desafiadoras, quando tentar de tudo na reanimação, quando aprender com os erros... Revisitei os momentos em que revi, a anos de distância, os filhos crescidos de pacientes que tínhamos salvado correndo riscos. Ou quando estive diante dos parentes depois da morte de um ente querido que eu tinha acompanhado até o fim só com terapias de suporte. E percebi, de novo, que na relação de cuidado sempre está implicada a humanidade inteira, não só a competência médica ou a bioética.
E nestes últimos anos, como voluntária de um hospice, pude dar-me conta, dia após dia, de que o que é necessário não é um debate sobre o fim da vida, mas uma presença. Junto com a indispensável competência dos médicos nos cuidados paliativos, é necessária (e é parte integrante da medicina paliativa reconhecida até pela lei) da parte de todos, voluntários e profissionais, uma presença humilde e fiel. Pessoas que saibam estar presentes, às vezes em silêncio, às vezes dividindo com os que sofrem a pergunta dramática do “por quê?” e do “por que comigo?”, buscando juntos uma resposta. Assim, pude perceber que nunca os acompanhamos até a morte, mas sempre estamos ao lado de quem sofre para viver até o último respiro. Vive-se sempre (e não só no fim, mas todo dia) por algo que vale a pena conhecer e amar.
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A pandemia em curso, no início, despertou em todos perguntas essenciais, mas com o passar do tempo o cansaço tende a enterrá-las novamente, em vez de fazer delas ocasião para um cuidado mais completo.
Hoje, a retomada é uma tarefa árdua. É ainda mais claro para todos que para vivermos agora, neste instante, com consciência e intensidade, deve valer a pena, precisamos poder sorrir com algo, ter vontade de conhecer e amar algo e alguém, encantar-nos com o instante presente por mais difícil ou doloroso que possa ser. Esta é a condição e o desafio para podermos levantar velas para um outro porto: perceber a realização de uma vida.
Esta é a tarefa humana de quem cuida dos outros de alguma maneira: pôr em ação sua própria humanidade inteira, até chegar à pergunta sobre o sentido misterioso do que está acontecendo. Sem evitar o drama.
O texto da carta é rico de consequências e esclarecimentos importantes (e somos gratos à clareza da Igreja num mundo tão facilmente confuso e relativista), mas tudo deve ser olhado por essa concepção leal do homem e daquilo para o qual é feito seu coração. Até porque é preciso um caminho, acompanhado, da liberdade de cada um, para passar da simples autodeterminação (que é só a ignição da liberdade) a uma escolha livre que leva em conta todos os fatores. Uma posição digna da grandeza do homem, que possa fascinar os nossos filhos, pois transforma a vida numa aventura de realização que merece ser vivida mesmo com todas as dificuldades e as fragilidades inevitáveis.
* vice-presidente de Medicina e Pessoa