Charles de Foucauld. A chuva virá outra vez
Uma vida marcada pelo movimento entre o vazio e a presença. Seu trabalho sobre a língua e a poesia tuaregues é permeado pela maravilha. O que o missionário francês, que em breve será canonizado, encontrou no “deserto”? (Da Passos de jan-fev)Outono de 1911. Charles de Foucauld escreve lentamente à luz de uma candeia. As noites no Saara são frias e, se não fosse pela mão movendo-se no papel, o homem poderia parecer um fantasma, enrolado como está em camadas de cobertores. O abrigo de Assekrem, para onde Foucauld se mudou há alguns meses, se encontra a 2.900 metros acima do nível do mar, no maciço argelino Ahaggar. Tudo é silêncio. Nada distrai o eremita de seu trabalho. O que está escrevendo? Vamos aproximar-nos, sem sermos percebidos, e dar uma olhada.
Edel: verbo ativo primário, “esperar em” [Deus, ou uma pessoa] (é construído com um acusativo). Por extensão, “chegar à noite a um lugar; chegar à noite à casa de uma pessoa”. É usado neste sentido seja qual for a causa pela qual se chega à noite a algum lugar ou à casa de alguém, quer se seja esperado ou não. Por extensão: “mendigar” (pedir [algo] a [alguém] como esmola, construído com dois acusativos). Diz-se dos pobres que são mendicantes. Edel é uma palavra em tamaxeque, a língua dos tuaregues. Charles de Foucauld (1858-1916) foi um religioso e missionário francês. Beatificado por Bento XVI em 2005, em breve será canonizado por Francisco depois do reconhecimento oficial (em 27 de maio de 2020) de um novo milagre ocorrido em 2016. Fiquei imaginando Foucauld enquanto se dedicava à compilação de seu dicionário tuaregue-francês. Composto entre 1914 e 1915, consiste em 2.028 páginas manuscritas com uma letra fina, ilustrada por desenhos meticulosos feitos pelo próprio autor. Ainda hoje, o texto de Foucauld é indispensável para os etnólogos que querem aprofundar-se na cultura dos tuaregues. E não só isso, Foucauld também encontrou tempo para coletar seis mil versos de poetas e poetisas tuaregues, que ele traduziu e organizou em uma antologia.
De onde vem esse ímpeto, essa capacidade de entrar em contato profundo com uma cultura completamente diferente? Charles de Foucauld era de origem nobre. Órfão, criado por seu avô, empreendeu uma carreira militar e em sua juventude levou uma vida dissoluta, mas sempre velada pela melancolia. Sentia necessidade de ir além, de buscar o vazio. Em 1883 partiu numa viagem pelo interior do Marrocos, onde nenhum europeu tinha pisado. Seus estudos etnográficos lhe renderam a medalha de ouro da Sociedade Geográfica de Paris. O contato com a religião islâmica provocou nele um maravilhamento, uma atração por “algo maior e mais verdadeiro do que as ocupações mundanas”. Converteu-se ao catolicismo e se tornou trapista. Mais tarde, mudou-se para Nazaré, onde trabalhou como servo num convento das Clarissas. Em 1901, após sua ordenação sacerdotal, voltou ao Saara, primeiro para Béni Abbès, indo depois para Tamanrasset e Assekrem.
Encontrei a figura de Foucauld enquanto fazia pesquisas para um romance. No início, fiquei maravilhado com seu tender a Deus, com sua capacidade de abandono, apesar de seu radicalismo absoluto parecer-me distante da minha experiência. Mas alguns meses depois, num período em que tudo era difícil para mim, da escrita às tarefas cotidianas, intuí o sentido do deserto. A grande ausência, o imenso espaço saariano também se abriu na minha vida: no trabalho, na família, enquanto esperava a abertura dos semáforos ou jantava com os amigos. O vazio não era necessariamente um sinal de angústia; pelo contrário, às vezes era um convite, um sinal de que eu não devia desistir de esperar por uma realização.
A vida de Foucauld está toda nessa dinâmica, nessa busca sem fim pelo vazio para que seja visitado por uma Presença que preenche e supera as expectativas. O missionário de Tamanrasset tinha consciência de que estava dentro da Igreja, dentro da “aventura do amor de Deus”. Nunca conseguiu converter ninguém ou fundar uma ordem religiosa. Mas estava ali, no meio dos tuaregues, mostrando-lhes Jesus na fidelidade de sua amizade e propondo-se como um “irmão universal”. Hoje, são numerosas as experiências de fé que estão ligadas a Foucauld, entre as quais a dos Pequenos Irmãos e Pequenas Irmãs de Jesus. Podemos dizer que a semente germinou. E, se a cultura e a língua tuaregues foram salvas no meio das turbulências políticas africanas, isso se deve também a Charles de Foucauld. Carlo Ossola, estudioso e professor de literatura, escreve que “o deserto de Foucauld é simplesmente a escuta da criação”. Por isso, seu dicionário deve ser considerado “um dos hinos mais brilhantes à beleza da criação”, no qual “todo verbete é uma estação de contemplação”. A língua dos tuaregues expressa os matizes de luz, os mínimos sons do Saara. Foucauld escuta e observa. A palavra tit significa ao mesmo tempo “olho”, “nascente” e “flor”; tésersek é um pequeno raio de sol que consegue penetrar num lugar escuro; amagar designa ao mesmo tempo o estrangeiro e o hóspede, já que seria inconcebível encontrar um desconhecido sem lhe dar alimento e hospedagem.
Foucauld viveu na época do colonialismo. Justamente por ter respirado essa atmosfera, o dicionário e os poemas são uma afirmação extraordinária de abertura e gratuidade. O Papa Francisco definiu Foucauld como “um homem que venceu tantas resistências e deu um testemunho que fez bem à Igreja”. Entre as “resistências” havia também a ideia de converter os tuaregues a qualquer custo, impondo um modelo cultural. Foucauld, porém, entendeu que tinha de se limitar ao essencial, ou seja, ao amor. Levar Cristo aos tuaregues significava, em primeiro lugar, amá-los pelo que eram.
Antes de sua morte, assassinado por um bando de saqueadores em 1916, Foucauld compartilhou tudo com os tuaregues. Ele também conhecia o esuf, o risco da solidão profunda que no deserto, todas as formas de deserto, pode ser mortal. O dicionário se contrapõe a esse perigo enquanto forma de memória e partilha: como não encontrar um significado espiritual no verbo żegżen, que significa “confiar-se inteiramente a alguém” e, por extensão, “abandonar-se a Deus”? Ainda hoje, os cientistas se perguntam como Foucauld conseguiu aprender o tamaxeque em tão pouco tempo. Ouviu centenas de poemas de guerra, de amor, de saudade, de celebração da paisagem e de louvor a Deus. Atingido por uma beleza inesperada, traduziu-os para a língua francesa.
Tomemos, por exemplo, um canto de Moūssa ag Ämāstan. Composto em 1891, exprime a magnificência da criação: “Homens, temei o Altíssimo, / que criou Äouharedj e as montanhas Tidekmār, / que criou os terrenos difíceis que derrubam os dromedários por cansaço / […] / e os vales de Ähohogh, Ahtes e Tidjīdial. […] / Acima de vós, Ele criou a lua e as estrelas; / fez o dia com o sol, a noite com o frio. / No vale de Éghergher pôs as dunas; / diversificou o país: pôs água / no vale de Äbdenizé, onde o povo dos tempos antigos cavou poços, / e beberam desta água as belas mulheres / vindas do vale de Ens-Idjelmāmen e da região de Oūnān […]”. A referência a “belas mulheres” é o sinal de uma sábia transição da esfera cósmica para a amorosa. Os poetas tuaregues, assim como Foucauld, estavam envoltos pelo vazio do deserto; por isso, seus poemas estão cheios de nomes. No território, percebem, da mesma maneira, a presença oculta de Deus e o olhar de uma bela mulher, à noite, diante do fogo do acampamento.
Em outro poema, uma mulher evoca a beleza de seu amado através da natureza. Kenoūa oult Amāstan, nascida em 1860, descreve seu homem desta forma: “Eu, este ano, vi / uma colina de musgo de mil cores; / a grama era dourada e crescia com vigor; / mel misturado com manteiga nutria a terra; / o leite corria e banhava a colina cercada por malhas de prata”. A referência às “malhas de prata” transforma a paisagem em um guerreiro tuaregue.
Em geral, na língua tamaxeque toda paisagem, todo fenômeno atmosférico se torna um movimento da alma. A palavra aġenna, que se refere à chuva e, em geral, à água, “é usada em expressões como “a chuva virá outra vez” ou “a grama fresca e abundante voltará”; e estas, observa Foucauld, também podem ser “frases ditas a alguém que o prejudicou ou que está sem ânimo, no sentido de ‘você acha que estou sofrendo pelo seu erro; não; não importa; bons dias voltarão para nós’”. A propósito, também o verbo etteb, que significa “cair gota a gota”, normalmente é usado em sentido figurado, para exprimir um amor ardente: “Koūka tettāb dar oul in… que significa que Koūka cai gota a gota no meu coração (Koūka se infiltra profundamente no meu coração; amo Koūka ardentemente)”.
O movimento do vazio à presença distingue a vida de Charles de Foucauld. O dicionário e os poemas são sinais tangíveis disso, permeados pela atenção e pela maravilha. Apesar das dificuldades, Foucauld nunca parou de semear, certo de que os dias da colheita chegariam. Nesse sentido, o substantivo emedel, que indica ao mesmo tempo o mendicante e o homem que se abandona a Deus cheio de confiança, parece ter sido criado especialmente para ele.