Assim nasce um mártir

“Quero viver e morrer por Jesus”. Esse era o testemunho do ministro para as minorias do Paquistão, Shahbaz Bhatti, morto por islâmicos em novembro passado. A seguir, em pouco de sua história
Davide Perillo

Dois minutos. Ou seja, quase nada. Depois, quando tentamos contar devagar: um segundo, dois segundos..., até 120, só então nos damos conta do inferno que devem ter sido esses dois minutos, preenchidos com tiros de metralhadora. Assim morreu Shahbaz Bhatti. Um jipe branco bloqueou seu Corolla preto, numa rua residencial do bairro I-8/3 em Islamabad. Três homens armados obrigaram o motorista a descer. E dois minutos infinitos de disparos, sem interrupção e sem piedade. “No fim, seu corpo jazia imóvel no chão”, conta uma testemunha. Bhatti chegou ao hospital de Shifa já morto, enquanto a polícia estendia uma faixa de isolamento em torno do carro, que estava com os vidros estilhaçados e alguns curiosos enfiavam o dedo nos buracos abertos pelos projéteis até na parede de uma casa, do outro lado da calçada. Chovia. E o seu sangue estava ali, espalhado sobre o banco bege e sobre a pasta de couro onde o ministro das Minorias, único católico no governo do Paquistão, guardava papéis e lembranças das batalhas que lhe custaram a vida: a tutela dos cristãos discriminados; a lei sobre a blasfêmia; a defesa de Asia Bibi, a mulher que por essa lei foi condenada à morte...
Era tudo o que sabíamos dele, antes de 2 de março. Esperávamos encontrá-lo no Meeting de Rímini, para o qual fora convidado no próximo mês de agosto. Mas depois do atentado aflorou outro ser humano, seu “testamento espiritual”, aquelas linhas publicadas num livro seu (Cristãos no Paquistão, Marcianum Press, Itália), que nos deixam emocionados quando o lemos: “Não quero popularidade, não quero posições de poder. Quero apenas um lugar aos pés de Jesus. Quero viver por Cristo e por Ele quero morrer”. Suas batalhas, mesmo aquelas distantes dos refletores. Sua certeza de que antes ou depois seria morto, de que as ameaças dos fundamentalistas se tornariam realidade. E a palavra “mártir”, que pelo menos uma vez não parece exagerada aplicada a um político. E nos leva a fazer algumas perguntas: quem era, de fato, Shahbaz Bhatti? De onde vinha? Como foi possível florescer um testemunho desse tipo numa terra onde tudo proclama o contrário?
Para responder, precisamos voltar bastante atrás. Até à sua casa. Não aquela em Islamabad, onde rezava com a mãe – todas as manhãs – antes de seu caminho cruzar com o dos assassinos. Mas uma outra, mais ao Sul. Em Khushpur, Punjab, quarenta quilômetros de Faisalabad, treze de Gojra (famosa pela chacina de cristãos, um ano e meio atrás). É o seu povoado. Um retângulo de casas baixas, paredes de barro e pouquíssimo cimento, cortadas por uma rede de ruas de terra. A igreja, construída na década de 1930, é de tijolos vermelhos, teto inclinado e uma palmeira bem alta em frente à fachada, onde se esperaria um campanário. Em volta, um canal. E campos de lavoura: trigo, arroz, cana de açúcar... São os terrenos que os capuchinhos belgas compraram do governo, no início do século XX, para distribuí-los aos agricultores que encontraram. Era bosque e floresta e se tornou Khushpur, que na língua urdu significa “a aldeia da felicidade”. Um pouco em homenagem ao Padre Felix, o fundador; e muito porque o ar que se respira ali é diferente do que se respira nas aldeias vizinhas, que no mapa oficial figuram apenas com uma sigla: Chak 48 JB, Chak 212...

A ILHA. Khushpur é o único povoado católico do Paquistão. Oito mil habitantes, quase todos batizados. Todos, ou quase, estudaram pelo menos até ao nível médio. E muitas famílias despertaram vocações: dois bispos, 35 sacerdotes, um centena de freiras. Algumas estão no convento das dominicanas ou trabalham no dispensário para os pobres. Há também duas escolas católicas, uma instituição intitulada de Santa Catarina de Sena, um centro de educação para adultos. É uma espécie de ilha num oceano habitado por 180 milhões de muçulmanos, onde os cristãos são apenas 3% da população.
Nesse ambiente Bhatti foi batizado (“o nome cristão é Clemente”) pelo mesmo Padre Amato e respirou a fé desde cedo. Cresceu numa família convertida há quatro gerações. O pai, Jacob, era um oficial que havia deixado o exército para lecionar nas escolas do local. Casou-se com Marta. Tiveram seis filhos. Jacqueline, a primeira. Depois, cinco homens; Shahbaz era o caçula. “Ria muito, brincava com todos”, conta Paul, o irmão médico que vive em Pádua e é cotado para tomar o seu lugar no governo paquistanês. “Embora fosse o mais novo, tinha a capacidade de nos manter unidos. Todos gostavam de estar com ele.”
E ele sabia com quem estar. Desde criança. “Recordo uma sexta-feira de Páscoa quando eu tinha apenas treze anos”, conta ele nesse livro: “Ouvi um sermão sobre o sacrifício de Jesus para a nossa redenção. Fiquei refletindo. E pensei em corresponder a esse amor dando amor”. Começou a estudar a Bíblia. Fundou um grupo jovem na paróquia. E fez uma escolha estranha para uma família bastante rica a ponto de fazer estudar todos os filhos: depois da St. Thomas, diferentemente dos irmãos, preferiu estudar numa escola estatal: “Queria ver um outro mundo”, explica Paul.
Falava sempre dos oprimidos, dos últimos. Os últimos. A eles se dedicava até mesmo em casa, nos períodos de férias. “No Natal, pegava um carrinho, decorava-o com algum enfeite e saía pelas ruas da aldeia”, conta Paul. “Pedia presentes para dar aos necessitados. No dia seguinte, nova viagem. Desta vez para distribuir os presentes que havia recebido. No início, riámos, porque não tínhamos essa mentalidade. Depois entendemos.” Os irmãos compreenderam também a finalidade do dinheiro que, de vez em quando, pedia a eles: “Para os estudos”, dizia. “Mas na verdade era para os pobres.”

PRATOS E COPOS. Padre Isaac: “Lembro dele no colégio; dele e de um grupinho de jovens. Davam uma mão na diocese, participavam das funções”. E era muito ligado a John Joseph, o bispo que, segundo a versão do governo, teria se “suicidado” em sinal de protesto em 1998. “Nos funerais, Shahbaz e os amigos diziam que era preciso fazer alguma coisa, que ninguém merecia sofrer uma injustiça como essa. Jamais imaginei que ele também seria morto assim, como mártir.”
Bhatti cresceu sob a influência de Dom Joseph, que nasceu na mesma aldeia que ele. “Organizavam encontros culturais, momentos de diálogo com os islâmicos e os hindus”, conta Padre Isaac. “Era um modo de explicar que nenhum de nós deseja o mal para os outros, que podemos crescer juntos. Não conseguimos ainda. Precisamos de tempo...” Frequentemente se dava mal. “Uma vez, organizei um encontro de estudantes cristãos”, conta Shahbaz em seu livro: “Fui surrado. Havia na parede um quadro onde se colavam os avisos. Preguei ali um anúncio: Posso morrer pelo meu Jesus, mas não posso deixar de me reunir com minhas irmãs e meus irmãos cristãos”.
Assim, aos poucos, junto com as reuniões despontam as primeiras batalhas sociais. “A certa altura, o governo queria introduzir uma carteira de identidade diferente para os não muçulmanos”, explica Paul. “Shahbaz começou a organizar manifestações, escrever cartas. A lei não saiu. Foi sua primeira vitória.” Nesses mesmos anos, Bhatti, apoiado por Dom Joseph, fundou o Christian Liberation Front (CLF), cuja metade era o embrião de um partido, e a outra metade era uma associação cultural. Um dos primeiros associados era John Phillip, jornalista, auxiliar do bispo Joseph no front dos direitos humanos, que está na Itália desde 1996, quando teve que fugir por causa das ameaças de morte. Agora ele prega manifestos nos muros de Fidenza e continua a manter relações com os conterrâneos expatriados. “Eu conheci Shahbaz vinte anos atrás, em Faisalabad”, explica-nos. “E o CLF foi fundado por nós: ele, eu, meu sobrinho e outras cinco pessoas, com o apoio do bispo Joseph.”
“Fazer parte de uma minoria, no Paquistão, é como carregar no peito uma tarja vermelha, que o obriga a uma vida menor”, escreveu o Washington Times. Nada mais verdadeiro. É para acabar com essa tarja que Bhatti fundou outro grupo, o All Pakistan Minorities Alliance. Chegou a hora das reuniões públicas (ficou famosa a de Islamabad, em 1995) e da defesa das igrejas depois do 11 de Setembro, a hora da atividade social e da pronta intervenção nas zonas atingidas por inundações ou terremotos (o de outubro de 2005 foi devastador: 75 mil mortos). E a guinada decisiva para a política. Em 2002, o líder cristão se associou ao Popular Party, o partido mais liberal e “laico” de Islamabad, que procurava nomes de candidatos para um Parlamento, onde cinco cadeiras eram reservadas para as minorias. Sua plataforma? Simples: “Desejo apenas que meu país seja abençoado por Cristo.”

COMO UMA ARMADILHA. Deputado, em 2008 ele se tornou ministro. O governo queria aliviar a imagem de um regime insensível à onda de violência anticristã provocada pelos extremistas. Bhatti sabia disso, mas aceitou, porque a partir desse posto poderia defender melhor o seu povo, cristão ou não. “Quando assumiu o cargo, jurou que lutaria até à última gota de sangue”, disse à Asia News Dom Rufin Anthony, bispo de Islamabad-Rawalpindi: “E assim foi. Pagou com o próprio sangue”. Mas antes de cair conseguiu resultados importantes, num contexto cada vez mais hostil: a cota de 5% de postos de trabalho públicos reservada às minorias; locais de oração para os não muçulmanos nos presídios; linha telefônica ativa durante 24 horas para se denunciar as discriminações; a instituição da Jornada Nacional das Minorias (11 de agosto); e lutas, batalhas sem fim. “No ano passado, os fundamentalistas queimaram uma aldeia cristã aqui perto”, conta Paul. “Ele se postou na frente de um trem para pedir justiça. Vieram o presidente e alguns ministros, que instauraram um inquérito.”
A batalha mais violenta, porém, foi sobre a lei 295c, a Blasphemy Law. Introduzida na década de 1970, revista (para pior), em 1986, pelo regime do general Zia ul Haq, permitiu aos juízes condenar à morte quem insultasse o Profeta ou o Alcorão. Bastava a denúncia. Na maioria das vezes, as denúncias eram vinganças pessoais, ou para resolver outras brigas: terras, mulheres, dinheiro. Coisas que pouco ou nada têm que ver com religião. Mas com efeitos devastadores. “É uma armadilha”, nota Padre Amato. “Basta que dois acusem, e você corre o risco de ser condenado. E muitas vezes, mesmo que o juiz não dê razão aos acusadores, acabam matando o acusado.”
Antes do general Zia, apenas duas pessoas tinham sido condenadas por “blasfêmia”. Depois, esse número subiu para 962 (119 dos quais são cristãos). E 34 condenações à morte já foram executadas, relata o Time.
Uma delas está pendente. Refere-se a Asia Noreen, chamada de Asia Bibi. Cristã, mãe de cinco filhos, em junho de 2009 brigou com outras mulheres (muçulmanas) de Ittanwali, a sua aldeia. Também ali, questões relativas à água. Nada que ver com a fé. Dois dias depois, a polícia a prendeu: dezoito meses de prisão e violência; no dia 8 de novembro de 2010, a condenação à morte, para ela e – de fato – para quem a defendia. Como Salman Taseer, governador popular do Punjab, que se empenhou em pedir justiça para Asia Bibi. Foi morto dia 4 de janeiro por um guarda pessoal – 27 tiros e um grito: Allahu akbar (“Alá é grande”). Que o próximo da lista seria Shahbaz Bhatti, todos o sabiam. Foi ele quem trabalhou durante dois anos para a criação de uma comissão ministerial encarregada de rever a lei. Era ele quem, confirmado como ministro em fevereiro (depois de uma reforma ministerial que reduziu o Executivo de Raza Giliani de 50 para 22 ministérios), retomou esse programa modesto, mas explosivo para os fundamentalistas: “Enfrentar os desafios mais sérios, como a lei da blasfêmia. E testemunhar a fé em Jesus”.

SEU TRABALHO. Choveram as ameaças, cada vez mais duras. Proteção, nada. O cardeal Jean-Louis Tauran, presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, recordou assim o seu último encontro com Bhatti, no dia 28 de novembro passado: “Ele veio me saudar no aeroporto de Lahore e me disse: Sei que vão me matar. Ofereço a minha vida por Cristo e pelo diálogo entre os que têm fé. Era um alvo, e tinha consciência disso. Na internet pode-se ver o vídeo de uma entrevista à TV de dois meses atrás. Sentimos um calafrio ao ouvi-lo dizer: ‘Medo? Eu creio em Cristo, que deu a Sua vida por nós. Sei o que é a cruz. O que significa. E quero segui-Lo sobre a cruz. Melhor morrer do que negociar os meus princípios’”.

Terminou como previsto, naquela rua, debaixo da chuva que caía em Islamabad. Culpados? Os talibãs, certamente. Mas não só eles. A investigação segue adiante, mas devagar. O governo balança entre a indiferença e o medo, temeroso de outros mártires e de novos aborrecimentos: a imprensa ainda não sabe se o Ministério para as Minorias terá os mesmos poderes, ou se Paul Bhatti, médico cirurgião e pediatra, terá que deixar o Vêneto para ocupar aquela cadeira. “O futuro? Depende do povo”, diz Padre Amato: “E da Divina Providência”.
O presente, ao invés, é feito de raiva e medo, orações e vigílias. Como a de Islamabad, na qual um jovem, de repente, gritou uma pergunta: “Quantas pessoas fora do Paquistão conheciam Shahbaz antes que ele fosse morto?”. Foi um momento tenso, de silêncio. “Agora, qualquer um que tenha uma TV o viu testemunhar Jesus. Mesmo Bhatti estando morto, Deus continua a servir-se dele. Para levar adiante o Seu trabalho.”