À procura de certezas

À procura de "filtros da realidade" em sites e portais esgotamos a aventura do conhecimento e trocamos a credibilidade por respostas rápidas. Mas a Web não é "um inimigo"
Marco Bardazzi

Um pequeno teste, sem pretensões científicas: tentem lembrar-se da última vez que tiraram da prateleira uma enciclopédia para encontrar a resposta a uma questão. Ou a última vez que procuraram uma localidade num atlas. Claro que muitos o terão feito, e até recentemente. Mas a maioria de nós, agora, confia estas procuras quase exclusivamente a dois instrumentos digitais: Google e Wikipedia.
O Google só existe há catorze anos, mas já nos começámos a esquecer de como funcionava o mundo antes que qualquer dúvida encontrasse resposta num nanosegundo, inserindo uma palavra no motor de busca. No nosso planeta, fazem-se todos os dias um bilhão de procuras no Google e, todos os meses, o conjunto dos sítios da sociedade californiana (Earth, Maps, etc.) gere 90 bilhões de pesquisas.
O mesmo é válido para a Wikipedia. A enciclopédia online, aberta aos contributos de todos, não existia há apenas dez anos: agora, é a meta de contínuas peregrinações virtuais, na procura do saber contido nos seus 19 milhões de artigos em 270 línguas diferentes. O que ajuda a perceber o grande barulho que gerou a decisão da Wikipedia italiana de “fechar” por dois dias o serviço, no início de outubro, para protestar contra uma lei em estudo no Parlamento, indesejável para os bloggers. Brincou-se muito, naqueles dias, do pânico entre os estudantes envolvidos com trabalhos de casa e teses para acabar. Ou dos jornalistas que, precisamente no momento do black-out, tentavam descobrir quem era o misterioso Nobel da literatura, o poeta sueco Tomas Tranströmer.
Para além do alarme que estas apreensões suscitam sobre o nível de conhecimento de línguas por parte dos italianos (a Wikipedia em inglês funcionava perfeitamente), o episódio oferece vários pontos de reflexão. Estamos a habituados a beber de forma acrítica o saber organizado pelos outros, quer seja o destilado da realidade oferecido por um algoritmo do Google, ou um artigo da Wikipedia fruto do trabalho (sem dúvida, meritório) duma comunidade anônima de redatores voluntários. Estamos trocando categorias importantes como credibilidade e autoridade pela comodidade de encontrar respostas rápidas às nossas questões. E quando nos faltam os instrumentos aos quais nos habituamos, como a Wikipedia, entramos em crise e demonstramos ter enfraquecido dotes humanos fundamentais, como a capacidade de procurar, avaliar e comparar os resultados das nossas pesquisas.
Estamos, em resumo, dando razão aos avisos do dramaturgo suíço Max Frisch, quando definia a tecnologia como «a habilidade de organizar o mundo de forma a não termos de fazer experiência dele». Contentamo-nos com o esforço de alguns cliques no mouse e corremos o risco de que isto esgote a aventura do nosso conhecimento.
Fazer uma pesquisa escolar, ou confrontar informações e juízos diferentes nos media, para criar uma opinião, são experiências: a tecnologia facilita-as e torna-as ainda mais agradáveis, mas ai de nós se substituir o fator humano, a necessidade que temos de «avaliar tudo e retirar o que interessa» e seguir testemunhos com autoridade e credibilidade.
A Wikipedia é uma invenção fenomenal. Pôr em comum o saber humano e organizá-lo é um grande passo a frente para a humanidade. Nas redações dos jornais, o mundo onde trabalho, é usada como instrumento indispensável de partida para a pesquisa sobre muitos temas. Mas os seus conteúdos, como tantos outros materiais que circulam livremente na Web, têm sempre que ser geridos com espírito crítico. É urgente uma educação para a boa utilização da Internet, que deve partir das escolas.
Os riscos duma má informação relacionada com realidades como a Wikipedia são tão velhos como o mundo. Mudam os instrumentos, mas não muda a tendência humana de tornar “notícia” e narrativa comum aquilo que tantas vezes nasce como conversa e não tem conexão com a realidade. Para percebermos os perigos, basta voltarmos a folhear os Promessi Sposi.
Manzoni, nisto como em tantas outras coisas, tinha já percebido tudo. Os capítulos XXXI e XXXII da sua obra-prima deveriam ser obrigatórios nas escolas de jornalismo e nos mestrados em ciências da comunicação. São os capítulos em que o escritor nos mostra como fazer uma investigação e como é que se cria um verdadeiro juízo sobre a realidade. Recorrendo a documentos, como numa grande reportagem jornalística, desmonta página após página a narrativa comum sobre a terrível Peste de Milão de 1630 e demonstra como a história dos envenenadores foi uma invenção dos meios de comunicação da época. E, no entanto, a convicção sobre a existência dos envenenadores estava tão difundida que, se na época existisse uma Wikipedia, seguramente a teria registado como um dado de fato. (Digamos entre parêntesis: no momento em que escrevo, procurando “peste de 1630” na Wikipedia, encontramos uma única linha sobre Manzoni e os Promsessi Sposi, enquanto que todo o artigo é, curiosamente, dedicado aos efeitos da peste em Turim, sem dúvida devastadores, mas não a ponto de esconderem o que acontece em Milão e no resto da Europa).
Anotava Manzoni no fim do capítulo XXXI: «Poder-se-ia, porém, tanto nas coisas pequenas como nas grandes, evitar, em grande parte, esse curso tão longo e tão torto, pegando no método proposto há tanto tempo, de observar, ouvir, comparar, pensar antes de falar». E, quase como se imaginasse o mundo futuro do Facebook e do Twitter, acrescentava: «Mas falar, esta coisa tão solitária, é de tal forma mais fácil do que todas as outras coisas juntas, que também nós, digo nós, homens em geral, somos um pouco dignos de compaixão».
Reflexões que poderiam ser aplicadas, sem mudar uma vírgula, às «coisas pequenas e grandes» de hoje. Como as teorias da conspiração contadas todos os anos, sobretudo na Web, sobre o ataque à América do 11 de setembro de 2011. Teorias absurdas, mas que apesar disso abriram uma brecha no imaginário de muitos, (…) a ponto de os professores as contaram aos alunos nas aulas. Apesar de existir toda a documentação para perceber como foram as coisas, e testemunhas críveis e também os meios para se fazer um juízo sério.
Mas não só os acontecimentos de época são objeto de distorção: a rede, para quem não souber fazer bom uso dela, ou não seja educado a navegar com método, é a feira do relativismo. Na Web, existe o risco de tudo se equivaler, sob o signo dum pensamento politically correct fictício e sufocante. Podemos ver isso nas grandes questões da bioética e do direito internacional, da família e da procriação, da fé e da perseguição religiosa. Temas como a luta contra a Aids na África tornam-se um terreno minado on-line, quando alguém que levanta dúvidas sobre uma política internacional toda baseada na distribuição de preservativos, como fez Bento XVI na sua viagem ao continente africano. Tomadas de posição em nível político ou jurídico sobre questões como o casamento gay ou a presença de crucifixos nas salas de aula garantem, a quem as levanta, ficar “marcado” na Web com etiquetas degradantes que, na Internet, são difíceis de apagar. A comunidade digital torna-se, nestes casos, um tribunal impiedoso.
A nós, resta-nos a tarefa de tentar, dia após dia, percorrer com paciência o complexo caminho da verdade. Wikipedia, Twitter, Facebook e as outras redes sociais não são, claro está, para serem vistas como inimigas: só o uso errado que se faz delas é que faz com que pareçam assim. São, pelo contrário, uma grande oportunidade oferecida a todos para contribuirmos para contar a aventura humana e para combater as mistificações e as narrativas distorcidas que a acompanham. A “vida boa” do cristianismo também tem uma declinação digital. Basta não acreditar em tudo o que se lê na Wikipedia e ter vontade, de vez em quando, de ir folhear também a velha enciclopédia.