Uma percepção do humano que ultrapassa limites

Na entrevista abaixo, Dom João Carlos Petrini, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da CNBB, mostra as razões para a valorização da vida em qualquer circunstância
Ana Luiza Mahlmeister

No mês passado assistimos a liberação do aborto de fetos anencefálicos pelo Supremo Tribunal Federal. Na visão de Dom João Carlos Petrini, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da CNBB e bispo de Camaçari (BA), caminhamos para um empobrecimentos quando damos a preferência e legitimamos critérios da utilidade e exigências do mercado. “A vida humana é relação direta com o Mistério Criador. Por isso, é sinal concreto deste Mistério, de sua proximidade. Vale a pena criar em nossas famílias um clima de valorização da vida, em todas as situações e circunstâncias em que nos encontramos, não tanto como um dever, mas como o caminho no qual o Mistério nos surpreende com sua beleza, com um fascínio irresistível”, afirma.

Passos:Por que a Igreja se coloca contra o aborto de anencéfalos? Esta não seria uma postura desumana, que constrange a mulher grávida de um anencéfalo a um sofrimento ainda maior? Se o aborto não é a solução adequada, o que pode ser feito para evitar ou minimizar estes sofrimentos?
Dom João Carlos Petrini: É muito mais humano ajudar a mulher grávida de um bebê com alguma anomalia a completar o ciclo que começou quando se descobriu grávida e se encheu de alegria. Depois veio a tremenda notícia da anomalia. Com o apoio de familiares e amigos, pode levar a gravidez até o fim, e poderá ouvir o choro do seu bebê e poderá amá-lo intensamente pelo tempo que viverá. Poderá dar-lhe um nome, batizá-lo, fazer o funeral. Mesmo muitos anos depois desse acontecimento, ela poderá dizer: sofri muito, mas dei o melhor de mim a esse filho que amei como os outros ou até mais. É mais humano enfrentar o drama pedindo ajuda para não estar sozinha diante da dor, do que carregar o peso de não ter tido a coragem de acolher o filho incondicionalmente, de tê-lo rejeitado e expulso de seu ventre.

O senhor tem defendido que este debate também ilustra os perigos da redução da razão realizado na Modernidade e a necessidade de uma expansão da razão para que esta se torne capaz de dar uma resposta verdadeiramente humana e humanizadora aos problemas enfrentados. Poderia explicar-nos o que isso significa?
A razão positivista se caracteriza pela seleção do campo que quer elucidar, ignorando fatores da realidade que não correspondem aos próprios interesses. Dessa maneira, a razão deixa de ser utilizada integralmente, como a capacidade de dar-nos conta da realidade segundo a totalidade de seus fatores, torna-se uma razão reduzida, deformada. Como uma criança que corre atrás da bola no outro lado da avenida. O interesse pela bola é tão grande que não pensa em olhar a direita e à esquerda se por acaso não está chegando um ônibus. Habermas escreveu muitos anos atrás um livro intitulado “Conhecimento e interesse” no qual enfrenta essa questão.

Partindo do carisma de Dom Giussani, o movimento sempre nos ensinou que os grandes desafios éticos e bioéticos que se apresentam aos católicos na atualidade, tais como o divórcio, a legalização do aborto e a eutanásia são reflexos de uma questão cultural. Como esta questão se manifesta nos debates sobre o aborto de anencéfalos?
Torna-se evidente que não está em jogo apenas uma questão limitada a fetos anencefálicos, mas o que é ser humano. Vão configurando-se horizontes antropológicos alternativos. De um lado, o interesse ao bem-estar individual é buscado acima de tudo, até com o sacrifício de outros, mesmo que inocentes. De outro lado, aprendemos que o significado da vida consiste em fazer dom da própria vida, até mesmo com sacrifício próprio, para o bem, para a felicidade de outros. Cada um dispõe de experiências e de inteligência para compreender o que corresponde mais ao coração do ser humano, à sua dignidade. Mas é verdade que o encontro com personalidades adultas e maduras facilitam o trabalho de reconhecer o valor verdadeiro. Com Dom Giussani, aprendemos que o amor é mais forte do que a morte, especialmente quando reconhecemos Jesus que venceu a morte por amor. É muito diferente do que compreender a morte como solução de problemas.

Que ações concretas podem e devem ser tomadas pelos católicos e por todos aqueles que defendem a vida, diante desta decisão do Supremo Tribunal Federal?
Além de medidas de prevenção contra a anencefalia e a revindicação por parte de profissionais da saúde da liberdade de não participar a realização de abortos, reivindicando o direito à objeção de consciência, vale a pena criar em nossas famílias um clima de valorização da vida, em todas as situações e circunstâncias em que nos encontramos, não tanto como um dever, mas como o caminho no qual o Mistério nos surpreende com sua beleza, com um fascínio irresistível.

Ainda que a defesa da vida seja uma questão de direitos humanos, de caráter não confessional, ela sempre é associada à militância cristã – e principalmente católica. De um lado, isso pode ser explicado como uma tentativa de retirar o caráter universal do direito à vida, reduzindo-o a reivindicação de um grupo social específico. Por outro lado, porém, mostra um compromisso do cristianismo, pois realmente ao longo da história muitas sociedades abandonaram o aborto, o infanticídio e os sacrifícios humanos rituais à medida que se converteram a Cristo. Como o senhor explica isto?
Realmente, somente depois de Cristo foi possível pensar que a morte não é o poder maior deste mundo, e foi possível fazer a experiência de um amor que é mais forte do que a morte. Acolher leprosos, quando não se conheciam remédios para curá-los, acompanhar a etapa final de aidéticos nos dias atuais, cuidar com amor de pais com Alzheimer, dedicar-se a um filho que apresenta problemas físicos ou psíquicos, revela uma percepção do humano que transborda os limites do mercado, vai além do interesse utilitário. A vida humana está infinitamente acima do mercado e das suas exigências. A vida humana é relação direta com o Mistério Criador. Por isso, é sinal concreto deste Mistério, de sua proximidade. Estamos construindo condições de grande pobreza humana, de solidão e desespero, quando damos a preferência e legitimamos critérios da utilidade e as exigências do mercado.

À luz de seu encontro com Cristo, como a comunidade católica brasileira deve compreender e enfrentar os desafios à defesa da vida que vem crescendo no contexto atual?
Vivemos numa época em que certos valores que nos pareciam óbvios e universalmente aceitos, são postos em discussão e rejeitados. O que considerávamos sagrado passa a ser posto em ridículo e é apresentado como sinal de atraso. É necessário que cada adolescente, cada jovem, cada homem e cada mulher não fique na superfície das coisas, mas procure ir a fundo na sua experiência humana, se coloque em jogo com sua humanidade, comparando tudo com as exigências elementares que têm dentro de si, para viver não como servidores do poder que momentaneamente prevalece, mas como protagonistas de suas decisões e de suas escolhas.