“Educação, a resposta às barbaridades”
Marzio Babille, médico italiano, é o responsável da missão Unicef e desde junho 2014, vive em Erbil. Mais de um milhão de refugiados se amontoa nos campos, entre eles milhares de crianças que têm necessidades de cuidados médicos e, sobretudo, de escolaA barbaridade elevada a lei, o horror cotidiano, o genocídio sistemático, as matanças de inocentes. Mas se prepara algo pior na Síria e no Iraque, e talvez também em outros lugares. “Vão ver o que acontecerá quando as operações de segurança tentarão libertar cidades importantes como Mosul ou Tikrit, zonas urbanas onde as contraofensivas serão dificultadas pelo ambiente e por um adversário feroz que não tem interesse de ficar vivo”. Fala o doutor Marzio Babille, médico triestino responsável do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Iraque. Estava em Bagdá desde final de 2011, quando as tropas americanas começaram a retirar-se, mas desde junho do ano passado vive em Erbil, capital da região do Curdistão iraquiano e cidade na qual se refugiam milhares de pessoas em fuga das atrocidades.
Babille é testemunha de crueldades indescritíveis; entre suas tarefas, além de socorrer as crianças e as famílias de refugiados, as pessoas desalojadas, cabe também a de documentar com fotos e relatórios os horrores desta guerra. “Os jihadistas combatem desta maneira terrível porque são votados à morte. Não procuram a vida. É um conceito novo nos conflitos, é difícil encontrar um adversário que a um certo ponto não se renda ou não recue”. Os combates de casa em casa para reconquistar os territórios ocupados pelo ISIS serão um massacre que se acrescentará aos genocídios.
Babille e o Unicef foram entre os primeiros a denunciar as violências contra os menores quando, “com uma brutalidade sem precedentes”, no começo de julho a ofensiva jihadista tomou a província de Nínive, no Noroeste iraquiano próximo ao confim da Síria. Nos 16 vilarejos do distrito de Sinjar viviam 350 mil Yazidis: “Uma minoria não muçulmana perseguida ao longo dos séculos que nunca, até agora, havia sofrido um genocídio programado. Encontraram refúgio inicialmente nas montanhas do Gebel Sinjar e uma parte deles foi salva refugiando-se na província de Dohuk. Hoje temos no Curdistão 238mil refugiados sírios assistidos em 12 campos organizados pelo governo do território autônomo curdo junto com a Unhcr e Unicef. Lá eles têm serviços essenciais e estão melhor do que a maré de iraquianos desalojados, que hoje somam 920 mil, em fuga das três províncias setentrionais de Nínive, Salah al-Din e Diyala. Estas pessoas são hospedadas em outros 26 campos”.
O êxodo no Norte começou depois da queda de Mosul ocorrida em 9 de junho de 2014. Mas a pior crise tinha estourado dia 3 de janeiro de 2014 com a queda de Falluja, a 40 quilômetros de Bagdá. “Tribos locais e filiados de Al Qaida, com o reforço de milicianos chegados da Síria, conquistaram a província de Anbar, ainda inacessível” explica Babille. “Pensamos que são meio milhão os desalojados aprisionados no Anbar, todos sunitas, pessoas em condição de gravíssima marginalidade e carentes de ajudas. O ISIS controla a terceira parte do Iraque. Somando refugiados sírios e desalojados iraquianos, passam de dois milhões as pessoas necessitadas de alimentos, água, roupas, produtos de higiene, medicamentos essenciais. Um número incrível”.
O Unicef abriu um importante corredor humanitário no início de julho para assistir os cristãos de Mosul em fuga em direção à localidade de Tall Kayf, quando a situação precipitou. “Chegamos com o arcebispo Nona a esta cidade antiguíssima, desde sempre habitada por cristãos, onde cavamos dois poços de água, depois a ofensiva jihadista levou os cristãos a retirar-se para Erbil e Ankawa. As minorias são perseguidas com sutil planejamento. As violências não são casuais: seria errado considerar o ISIS um grupo de criminosos ou de loucos. Existe um projeto político, o de exterminar as oposições. O que temos visto e os relatórios colhidos dia após dia (pois o Unicef vive e opera nas comunidades, com 250 facilitadores membros destas comunidades que ajudam os civis e fornecem informações de primeira mão) são unívocos: a brutalidade é fruto de um desígnio”.
São seis as violações da infância que o Unicef deve verificar e denunciar: mortes e mutilações, sequestro, abuso físico e tráfico de menores, recrutamento para fins de combate, ataque deliberado a escolas ou centros de saúde, deliberada restrição do espaço humanitário. “Temos provas de que tudo isso é perpetrado pelo exército jihadista, incluindo os ataques suicidas às escolas”. Como se vive nesta barbaridade? Responde Babille: “Temos que dar resposta a quem sobrevive. Não basta identificar os casos de violação dos direitos da infância: é preciso ir ao encontro dos menores. As crianças têm necessidade de próteses, muitas ficaram surdas ou cegas, todas necessitam de cuidados médicos e psicológicos porque foram testemunhas de uma ferocidade bestial. O Unicef concentrou todos os recursos disponíveis na resposta à emergência humanitária, incluindo as intervenções prioritárias de proteção”.
Acrescenta Babille: “A ONU nesta crise alcançou populações em gravíssima dificuldade primeiro que muitas outras. Mas aos meus colaboradores eu repito: dêem algo do que é seu, não esperem que a organização envie dinheiro, máquinas, medicamentos; mexam-se, coloquem em jogo a si mesmos, eu o fiz e disso sou profundamente orgulhoso. É uma mensagem simples: dedicar a vida aos valores pelos quais vivemos. Continuarei a fazê-lo também quando tiver aposentado do Unicef”.
O Governo italiano, através do Ministro do Exterior que veio ao Iraque no Natal, tomou uma decisão importante: “Dar assistência imediata às mulheres e crianças das minorias. É uma escolha que deve ser apoiada” afirma Babille “símbolo da capacidade do nosso povo de assumir situações difíceis. Não tem importância o volume de dinheiro, mas o gesto: outros não o fizeram. O Unicef tem um compromisso especial que assumimos também no Iraque e que tencionamos perseguir com determinação: a escola. A educação tem importância decisiva. Construímos uma escola em cada campo que é implantado, em alguns campos mais de uma. Entretanto o 60% dos desalojados não vive nos campos mas nas comunidades, em casas alugadas ou alojamento improvisados: por isto encaminhamos um programa de cooperação com o Ministério da Educação curdo. Reformamos 647 prédios escolares que na primeira fase da emergência foram ocupados pelos desalojados e hoje abrigam aulas regulares, com professores que adaptam os programas para alunos com língua, cultura e tradições diferentes porque provêm de regiões árabes, enquanto aqui estamos no Curdistão”. Reeducar um povo que viu fuzilar os pais, estuprar as mães, deportar irmãos e irmãs, reduzir em escravidão milhares de pessoas. É também um modo para evitar a fuga para o exterior de milhares de famílias perseguidas, despojadas de uma vida normal e convencidas de que nada mais será como antes.