A City e o mito da ilha

Um verso de John Donne como título da manifestação London Encounter deste ano, entre Brexit, Astor Piazzolla e a "lectio magistralis" do ex primaz anglicano, Rowan Williams. O relato daquilo que ocorreu no dia 11 de junho
Luca Fiore

O número 155 de Bishopgate fica ao lado da Liverpool Station, bem no centro do distrito financeiro, o que, para facilitar, chamamos City. Muito aço e vidro, poucos tijolos vermelhos. É aqui que aconteceu a terceira edição do London Encounter, a manifestação organizada pelos membros da comunidade inglesa de CL e que neste ano teve como título o verso de John Donne: No Man Is an Island [Nenhum homem é uma ilha]. Um tema fascinante por si, mas, se abordado duas semanas antes do voto sobre a Brexit, a saída do Reino Unido da União europeia, torna-se ardente. Quem é o homem de quem fala o verso? E a ilha?

Setecentas as presenças neste ano, cinquenta os voluntários e mais trinta pessoas que se alternaram para apresentar as três exposições (sobre Etty Hillesum, Jacó e sobre o “sonho europeu”). Entre os palestrantes um arcebispo anglicano (ex primaz), um membro da Câmera dos Lordes, um ex-presidente do Parlamento europeu e um consultor de Downing Street. Na plateia também Dom John Wilson, bispo auxiliar da diocese católica de West London, que, ao voltar para casa, falou do Encounter em seu perfil Facebook. Para que nada faltasse: no elenco das coisas notáveis entra também um ataque cibernético ao site da manifestação, que na véspera caiu por duas horas por causa das “atenções” de um cibergrupo islâmico.

O ex primaz anglicano, que é monsenhor Rowan Williams, já amigo da comunidade inglesa de CL (a presença discreta de sua barba branca havia dado o ar da graça na audiência do Movimento com o Papa Francisco no dia 7 de março de 2015), abriu a jornada com uma lectio magistralis sobre o tema do Encounter. Quarenta e cinco minutos de improviso, em um percurso emocionante que conseguiu tocar John Donne, Edith Stein, os Irmãos Karamazov, Etty Hillesum e o patriarca Jacó. Culto, profundo e acessível ao mesmo tempo. Williams começa partindo do verso do poeta inglês que inicia sim, afirmando que “nenhum homem é uma ilha”, mas o diz no contexto de um funeral, tanto que a poesia termina com o outro célebre verso: “Para quem bate o sino, o sino bate para ti”.

Ninguém pode considerar-se uma ilha, diz o arcebispo, porque o que nos une é um destino comum: todos morreremos. É uma questão de simples realismo ao qual tanto pensamento moderno contrapôs a “mitologia da ilha”, isto é, da possibilidade de uma autossuficiência que produz uma falsa segurança. Com Edith Stein, Williams explica que, na realidade, o eu tem necessidade de um outro para perceber que existe, também para pensar no nosso corpo temos necessidade de imaginar alguém que nos olhe. O relacionamento com alguém que é outro de nós não é necessário somente para o reconhecimento de si mesmos, mas inevitavelmente é uma relação de responsabilidade recíproca. Nós somos responsáveis pelo outro: se o outro não existe ou está em perigo, o nosso eu não está em paz. E nesse outro, continua Williams citando Etty Hillesum, deve ser considerado também Deus: nós somos responsáveis também em relação a Ele. Deus tem necessidade dos homens para tornar-se cognoscível e o nosso testemunho, até dentro de um campo de concentração, é necessário para que Deus seja percebido como crível. É só nesta perspectiva, que é espiritual, religiosa e racional, que se pode conceber um sistema de relacionamentos que permita conviver e possa equilibrar direitos e deveres da pessoa.

No final da palestra alguém pergunta qual é o modo para aprender a ser realistas. Resposta: “Precisa educar a si mesmo e aos próprios filhos à admiração pelas coisas que existem”. Um outro observa que não é possível entender estas coisas fora de um olhar cristão. Resposta: “É a própria realidade que nos mostra como nós somos estruturalmente ‘em relação’. Não é necessário acrescentar mais nada”. Um jovem relata o próprio senso de solidão e a dificuldade a sair de uma realidade que frequentemente tem as dimensões de um tablet. Resposta: “Toque as coisas. Toque as coisas com as mãos para conhecê-las. E deseje ir até o fundo. E saiba que você é querido. Alguém te quer”.

Na parte da tarde o programa prevê um encontro explicitamente dedicado ao grande tema da Europa e da União europeia. O painel é formato por Mário Mauro, senador italiano e ex vice presidente do Parlamento Europeu, Maurice Glasman, membro laborista da Câmera dos Lordes, e Shamit Saggar, professor de Public Policy e no passado consultor do Primeiro ministro britânico. Este último, só para dizer como as coisas acontecem no Encounter, foi convidado por ter entrado em relacionamento com Marco, um dos promotores da manifestação e que exerce a profissão de médico, em um setor do hospital. Durante um giro no setor, Marco vê ao lado de um leito a capa do Time com a imagem-símbolo de Aylan, o menino prófugo morto no litoral da Turquia, e com uma pergunta inicia um diálogo. Diálogo que continuará nas semanas e nos meses sucessivos. Com convites para jantar até chegar à conferência do nº 155 de Bishopgate.

O trio é bem sortido: Mario Mauro mostra o seu entusiasmo pelo ideal que no Após-guerra animou os pais fundadores da Europa. Lorde Glasman, hebreu laborista com uma paixão pela doutrina social da Igreja, de sua parte, é um dos pouquíssimos políticos de esquerda favoráveis à Brexit. Por que? A União teria traído o ideal originário cristão social, substituindo-o com a brama capitalista que nos tornou escravos das lógicas da finança. O professor Saggar, indiano de terceira geração, que muito pragmaticamente apoia a inevitabilidade da realidade da União europeia: que nos agrade ou não, a UE é o que temos e não há nada de alternativo. Seja Lorde Glasman que Prof. Saggar confidenciam ao término do encontro que nos meses de campanha plebiscitária não haviam ainda participado de um encontro em que se chegasse a tocar o coração do desafio europeu e não se ficasse detendo-se apenas nas consequências econômicas.

À noite há uma sessão dedicada às músicas de Astor Piazzolla. Passou muita gente, em número maior comparando com as precedentes edições. Um gesto que se torna sempre maior e importante e que a comunidade inglesa constrói com crescente empenho. Prova disso são as três exposições realizadas inteiramente para esta ocasião. Alguns observam que trabalhar sobre o tema do Encounter ajudou a desmascarar o próprio “mito da ilha”. Relatam: “Nasceram amizades. Nós nos envolvemos. Deixamo-nos corrigir”. O sino bateu. Mas não era um funeral.

> Acesse o site oficial (em inglês: www.thelondonencounter.co.uk)