Onde é que nós estávamos?

A quem, de facto, interessa a paz? A análise de DOMENICO QUIRICO sobre a Síria, enviado especial do jornal La Stampa, que vê aquele povo viver "o mais extraordinário tesouro que o homem possui"...
Luca Fiore

As bombas cruzam sobre a cabeça dos habitantes de Alepo. As relações entre a Casa Branca e o Kremlin continuam a deteriorar-se. As tréguas decididas nos palácios da ONU não duram. Quem é que, hoje, quer a paz na Síria? Quem age para que, de facto, a guerra termine? O que é preciso fazer para pôr fim ao massacre? A seguir, um diálogo com Domenico Quirico, enviado especial do jornal italiano La Stampa, que acompanhou como testemunha a parábola trágica das Primaveras árabes desde o início. Foi refém dos terroristas por dois dias na Líbia, em 2011, e durante cinco meses na Síria, em 2013. Hoje observa com olhar ferido o quebra-cabeças global, que na batalha pela conquista de Alepo emerge com sua face mais dramática. Nas palavras de Quirico não se encontram respostas cómodas ou tranquilizadoras. Mas sobretudo um fundo de revolta e impotência. E a saudade de uma narrativa que mostre com verdadeira justiça a epopeia de um povo.

É possível que a paz reine na Síria?
Na minha opinião, a guerra contra o Califado (Daesh ou Estado Islâmico, ndt), da qual a Síria é um dos principais teatros, durará ainda algumas décadas, como a Guerra dos Trinta Anos na Europa do séc. XVII.

O que o leva a pensar assim?
Para interromper a guerra ou chegar a uma trégua é preciso diplomacia. Hoje, nos lugares controlados pelo Califado, a diplomacia está excluída, já não tem qualquer sentido. Para realizar um acordo são necessárias pelo menos duas pessoas e os atores precisam de reconhecer a legitimidade um do outro. O problema é que o Estado Islâmico baseia-se na lógica binária puro-impuro, e tudo o que é diferente deles é de si impuro: o Califado não faz acordos com ninguém. Para detê-lo só há um caminho, a sua destruição física.

Não há ninguém a tentar um acordo, nem mesmo a ONU?
O enviado especial da ONU, Staffan de Mistura, parece-me que representa uma tentativa de usar instrumentos diplomáticos tradicionais numa situação em que parece que isso não é mais possível.

Quantas e quais são as guerras que se combatem hoje em solo sírio?
Há a guerra do Califado contra todos os outros. Há aquela entre Assad e os seus inimigos sírios, e aqui entram muitos grupos entre os quais as formações residuais da primeira revolução síria, os grupos islamitas que, com nomes diversos, têm em comum o objetivo de instaurar um Estado islâmico... Depois há o conflito entre Arábia Saudita e Irão; o confronto entre a Turquia e os curdos; a luta entre Estados Unidos e Rússia para garantir a influência na região. É uma quantidade enorme de guerras encadeadas uma na outra. É uma trama intrincada, por isso digo que serão necessários muitos anos.

Tanto tempo para chegar aonde?
A única possibilidade é que a comunidade internacional reconheça a falência da Síria e do Iraque como Estados e aceite a progressiva constituição de novas entidades ligadas às realidades étnico-religiosas. Penso numa Síria alauíta e basharista, no território hoje controlado por Assad, incluindo Alepo; um Estado curdo entre a Síria e o Iraque; uma Síria e um Iraque sunita (possivelmente não nas mãos do Califado), e um Iraque xiita controlado pelos iranianos. São povos diferentes que cometeram uma quantidade tão grande de atrocidades recíprocas que torna hoje praticamente impossível a convivência num único Estado.

Quando se fala disso, mesmo entre gente minimamente informada, chega-se a dizer que entre Assad e o Ísis, Assad é o mal menor. No entanto, o objetivo principal dos países ocidentais continua a ser o de acabar com o regime. Significa que estamos do lado errado da história?
Talvez só Hegel consiga estabelecer qual é a parte certa da história. Mas hoje, tal como estão as coisas, falar de "mal menor" parece-me algo errado. Talvez tivesse sentido em 2011, quando tudo começou. Quando, talvez, até a Rússia teria concordado com a caçada a Assad. Houve um breve período em que isso teria sido possível, ajudando a primeira revolução síria. Mas hoje é um discurso completamente fora de época, porque aqueles que no início teriam podido ser nossas referências hoje já não existem.

Os rebeldes moderados já não existem?
Em Alepo existem, mas só formalmente. A maior parte das formações combatentes são compostas por fundamentalistas ligados, com nomes diferentes, à Arábia Saudita e ao Qatar. O objetivo deles, dizia eu, é instaurar a sharia. Há o que resta do velho "Exército sírio livre": eles não eram islamitas e queriam trocar o ditador e, depois, ver o que se podia construir. Não tinham ideias muito claras, para dizer a verdade. Hoje, em todo caso, já não têm força.

Então, sobre o que é que discutem Washington e Moscovo?
Deviam perguntar-lhes a eles. Moscovo tem uma linha muito precisa e faz de tudo para continuar como protagonista na Síria. Isso implica sustentar, não Assad como pessoa, mas o sistema que Assad representa. É o que lhes vai permitir manter o porto de Tartus, vender armas, ser protagonista na região. A Rússia é extremamente coerente e tem uma enorme vantagem, que é a de poder usar a força, coisa que tem um grande poder de sedução sobre os países árabes. Eles adoram a força, porque não a têm. Ver alguém que a usa infunde neles uma forma de respeito.


E os americanos?
Não fazem senão tentar alguma coisa. Eles têm a força mas não a sabem usar ou não a podem usar. São substancialmente perdedores. A Síria é um dos muitos capítulos falimentares da política externa de Barack Obama. Em 2013, queria bombardear Assad. Depois, alguém deve lhe ter dito: veja que estamos a ajudar o novo reino do mal, que é o Estado Islâmico. Então, não atacou. E por um tempo não se falou mais disso, preferindo concentrar-se na guerra contra o Califado, na qual, no fundo, Assad era um aliado. Agora, desde há uns tempos, dizem: "Assad está a destruir o leste de Alepo, é preciso detê-lo". Mas ele está a fazer isto desde 2011, por que é que só agora é que perceberam? Suspeito que depois das eleições presidenciais já não se falará disto com a mesma urgência.

O senhor esteve em Alepo. Viu alguma coisa sobre a qual os habitantes da cidade possam apoiar alguma esperança para o futuro?
Como se consegue falar de esperança com um cidadão de Alepo? A cidade, antes ou depois, voltará para o controlo de Assad. O problema é a que preço. Quantos terão morrido? O que restará da cidade? Quem conseguiu sobreviver vive naquele inferno não há cinco meses, mas há cinco anos! É um capítulo terrível, doloroso e magnífico. Documenta o quanto o ser humano é capaz de resistir ao sofrimento.

Quais são as suas recordações que tem?
Estavamos no final de 2011, início de 2012. Havia ainda os mercados, as feiras onde eu comprava azeitonas. Até 2013 eu fiquei na parte controlada pelos rebeldes, mas depois do meu sequestro só fiquei na parte oeste. A cidade já estava reduzida a escombros. Fora das padarias havia centenas de pessoas na fila, e acontecia de serem atingidas pelos tiros de morteiro. Uma vida impossível. O que nós não conseguimos entender - inclusive porque a maioria dos que se ocupam dessas coisas na Síria jamais puseram lá os pés - é que a cidade é bombardeada todos os dias. Não há pausa. Todos os dias. As pessoas morrem, não há pão, não há água, não há energia elétrica. É uma Stalingrado que já dura cinco anos. O cerco a Stalingrado durou menos que isso.

O senhor falou de uma magnífica capacidade de resistir ao sofrimento. Como explicá-la?
A relação do homem com a dor é o tesouro mais extraordinário que temos. A nossa capacidade de viver e refletir o que existe em torno de nós. É a vitalidade do sofrimento. Para descrevê-la não precisamos de um especialista em geopolítica; ele não entenderia nada. Precisaríamos de um Mauriac, de um Dostoievski. Alepo deve ser descrita como uma experiência mística coletiva, de centenas de milhares de pessoas. Infelizmente, nunca haverá uma voz à altura dessa epopeia feroz e maravilhosa, dolente e inesquecível. Alepo não tem o Vasilij Grossman que merece.

Que impressão teve da presença da Igreja lá?
Vi uma comunidade sólida, que não tem medo. Estão na parte controlada pelo regime; se morassem na outra parte já teriam sido todos mortos. Visitei os franciscanos que têm um grande complexo imobiliário para a instrução dos jovens no coração da cidade. Eles estão lá, nunca se mudaram.

Se o senhor fosse convidado para um dos colóquios em Genebra ou Lausanne, onde se tentam realizar colóquios de paz, e lhe pedissem para dar um depoimento, o que lhes diria?
Procuraria contar-lhes como é o dia a dia em Alepo, tal como eu o vivi. Quando caminhei pela parte leste da cidade, não havia lugar onde pudesse ir para dormir, e deram-me um quarto num hospital. Uma cama sobre a qual, durante o dia, cuidavam dos feridos. Quando eu retornava dos meus giros pela cidade "para ver a guerra", esperava-me essa cama, que era usada para levar os pacientes para a sala de cirurgia. Eu encontrava-a suja de sangue, quando voltava. As pessoas eram descarregadas do carro ou camião à frente do hospital. Homens despedaçados por morteiros, estilhaços de bomba. Em alguns a casa tinha caído sobre eles. O sangue era canalizado para ser despejado diretamente na rua... Então eu gostaria de perguntar-lhes onde é que eles estavam quando houve o primeiro dos 400 mil mortos da tragédia síria. O que é que faziam, o que é que discutiam quando as vítimas passaram de 10 mil para 100 mil, para 300 mil?

Há alguns meses o senhor recebeu a notícia de que alguns dos seus sequestradores tinham sido mortos. Qual foi seu primeiro pensamento?
Que eu já não ia poder voltar a falar com eles.

O que é que lhes teria perguntado?
Eu teria perguntado como podiam rezar tranquilamente e com fervor sabendo que eu era inocente de qualquer culpa em relação a eles. Eu era simplesmente uma testemunha, não um espião. Eu tinha ido lá para documentar o sofrimento dos sírios e, de certo modo, também o deles.