Argentina. Um laço maior do que o Atlântico
Um grupo de entidades italianas ligadas à CDO Obras sociais que atravessa o oceano para encontrar as irmãs sul-americanas em Buenos Aires. Mais que uma convenção, quatro dias de trabalho e de amizade. Eis o que é "Obras irmãs"O compartilhamento de experiências como ocasião formativa. Também a 12 mil quilômetros da própria casa. Um grupinho de obras sociais italianas e de Argentina, Venezuela, Chile, Paraguai e Peru marcaram encontro em Buenos Aires, no final de março, para quatro dias de trabalho comum. São as “Obras irmãs”, e o evento tem como título “Educar ao trabalho através do trabalho”, uma iniciativa decidida pela CDO Obras sociais para compartilhar conhecimentos, desafios, sensibilidade, sucessos, problemas e também fracassos, e assim iniciar ou reiniciar processos que nasçam de um caminho comum.
Quatro dias de trabalho intenso. Mas há também tempo para outras coisas. Para encontros com obras sociais que trabalham nas áreas mais difíceis da capital e te fazem tocar com mão situações nas quais a necessidade se apresenta como um soco na barriga. Um exemplo: no mesmo dia de sua chegada, os responsáveis das várias entidades recebem uma proposta incomum: distribuir sopa quente, pão e suco de laranja a pessoa que vivem na rua dormindo nas calçadas, próximo da Vila 21, uma das mais terríveis favelas da capital argentina (cf. Passos, novembro de 2016, “Corpo a corpo com a vida”): territórios de miséria e violência onde os táxis até se recusam a entrar. A distribuição é feita em dois grupos, acompanhando um automóvel e um carrinho de duas rodas carregados com enormes caldeirões de sopa quentinha. Quando eles passam, muitas figuras emergem da sombra da noite, de uma moita, de debaixo de um papelão ou de um cúmulo de farrapos. Rostos marcados pela droga, mas também meninos e meninas cujos olhos puros te levam a indagar como podem ter acabado ficando ali. Muitos agradecem pedindo um abraço, uma troca de beijos.
Depois desses encontros, é mais fácil reencontrar-se em uma sala para trabalhar: cada testemunho oferece sugestões preciosas, ideias, propostas. “Explique-me bem como vocês conseguiram obter aquele resultado. Faz anos que nós batemos a cabeça tentando”. Monica Poletto, guia de CDO Obras sociais, introduz: “Não estamos aqui para contar histórias de sucessos. As palestras não serão pronunciadas por quem resolveu problemas, mas por quem se dedicou a estudar os problemas”. É assim mesmo. E funciona. Bernhard Scholz, presidente da Companhia das Obras, fala do significado do trabalho, recordando o que nos diz Papa Francisco: trabalho livre, criativo e solidário. E juntos entendemos o que isso pode significar para nós.
Os temas das jornadas de trabalho são muitos: a valorização das pessoas que trabalham conosco, as relações com as grandes empresas, a construção da rede numa região, a comunicação. Stefano Gheno, psicólogo, docente na Católica de Milão e perito de assuntos trabalhistas, nos ajuda a aprofundar alguns instrumentos para a escolha e a orientação das pessoas. A tradução do espanhol para o italiano (e vice-versa) é assegurada pelo incansável e sempre alegre padre Leonardo Grasso. Os relatos, as perguntas, os diálogos superam os confins da sala e prosseguem além, tão urgente é a necessidade de compartilhar o patrimônio de experiências de cada um.
Os italianos têm uma abordagem mais metódica. Os sul-americanos trazem histórias vividas em contextos definitivamente mais difíceis. E o que há de mais árduo do que realizar uma atividade de formação e inserção ao trabalho na Venezuela, levada ao colapso econômico e social por políticas abstratas e autorreferenciais? Maria Dolores e César de “Trabajo y Persona”, de Caracas, trazem um testemunho dos resultados que é possível alcançar com paixão e inteligência. Em seguida, há os amigos de “Edudown”, no Chile, que acompanham para o trabalho 900 jovens com síndrome de Down. Há a Sara de “Cesal”, do Peru. Há o Pedro, da “Asociación Virgen de Caacupé” de Asunción no Paraguai, que relata o nascimento de uma casa para jovens que devem terminar o cumprimento de uma pena: uma casa no lugar do cárcere, sem grades e sem barreiras, "mas agora não penso mais em fugir porque aqui tudo é para mim", havia dito um detento.
Visitamos a imensa realidade da “Obra do Padre Mario Pantaleo”, guiados por Horácio de Buenos Aires (que irá nos hospedar em sua casa para um jantar a base de carne grelhada, onde conheceremos também a esposa, Cláudia Álvarez, autora de cantos como Toda la vida e Cambiar al hombre).
Uma tarde é dedicada a algumas etapas naquele mosaico que se chama “Hogar de Cristo””, uma obra que se ocupa da recuperação dos drogados, sobretudo escravos do Paco, a “pasta base de cocaína”: uma mistura mortal de substâncias tóxicas e venenos a baixo custo.
A federação dos Hogares de Cristo marca a presença da Igreja nestes bairros onde violência, sujeira e miséria parecem ter predomínio sobre tudo. Encontramos padre Charly Olivero e os responsáveis de um centro de recuperação para jovens, de um lugar de acolhida para quem decidiu tentar um caminho fora da droga.
No arquipélago de Hogares de Cristo há também uma atividade de prevenção e cura da tuberculose. Conhecemos os agentes deste centro: entre eles, uma pessoa mais idosa, de cabelos brancos e o olhar sereno. Explicam-nos que era o chefe do setor de doenças infecciosas do mais importante hospital de Buenos Aires. Desde quando se aposentou, é voluntário no centro, onde sua profissionalidade é o ponto de referência para todos, mas, pelo modo como falam dele, entende-se que também a sua humanidade merece idêntica gratidão.
Quem nos acompanha nesta rodada de dor e de esperança é um rapaz, Aldo. Ele também era uma vítima da droga. Agora é um dos agentes de Hogar de Cristo, de acordo com um método difuso e testado: quem foi salvo do abraço mortal do Paco cuida de quem quer iniciar o mesmo percurso. “Eles me salvaram”, explica Aldo: “Agora a minha vida está a serviço de quem tem necessidade”.
Além disso, há as obras sociais que chegaram da Itália: “La Strada” de Milão, “L’Officina” de Codogno (na província de Lodi), “Nazareno” de Carpi (Modena), “Rossa Sera” de Alcamo (Palermo) e “In-Presa” de Carate Brianza (Monza e Brianza). Gilberto conta o grande trabalho realizado por “La Strada” na zona Corvetto em Milão envolvendo tantos sujeitos em uma rede articulada: órgãos públicos, grandes empresas, associações, patrocinadores privados, paróquias, grupos informais... Quando encerra a sua colocação, a enxurrada de perguntas. Nascem também ideias para fazer alguma coisa juntos.
“O que me marcou dos dias em Buenos Aires é a percepção de uma unidade e de uma liberdade no trabalho que é interessante para todos e sobretudo para mim e que eu quero partilhar com os amigos, aqui no Paraguai. Obrigado por terem favorecido a abertura do olhar e da liberdade”, diz Mariano. Também Chiara sentiu o impacto: “Há algo de incrível no fato de que muitos nos conhecemos pela primeira vez, vindo de lugares distantes milhares de quilômetros, e contudo nos sentimos assim tão juntos, sem nada a defender ou a esconder”.
Sintonizada na mesma onda também Mariloly que, tendo voltado à Venezuela, escreve estas palavras a Mônica. “Muito apreciei o evento e o transcorrer destes dias com pessoas de tão grande experiência e riqueza humana. Obrigada pelo trabalho feito e pela consciência de que estamos juntos para nos enriquecer reciprocamente”.
Quando se fecham os cadernos das anotações depois da última palestra, o conhecimento compartilhado é muito. Mas igualmente numerosas são as novas frentes de trabalho que se abriram: novas possibilidades de conhecer e crescer.
Explica-o bem Gilberto: “Há três dias, dizíamos entre nós que a utilidade deste trabalho seria compreendida pela quantidade de perguntas que viriam à tona. Eu aprendi muito, mas volto para casa com mais perguntas do que as que tinha ao chegar. Logo, eu diria que houve utilidade. E como houve!”.
Na última noite nos entregamos nas mãos de Papito: 36 anos, dos quais 18 transcorridos no cárcere. Agora ele também é um agente de Hogar de Cristo. Nos acompanha a visitar a Boca, onde nasceu e onde viveu até pouco tempo atrás. A Boca é um outro bairro tristemente afamado de Buenos Aires (ainda que menos miserável do que a Villa). Papito nos acompanha no meio de casas caindo aos pedaços, amiúde pintadas com imensos grafites de Maradona e Carlos Tévez. Todos o conhecem: há muitos anos era um temido criminoso, e muitos lembram dele ainda como tal. Apresenta a todos os seus amigos italianos. Mas não está simplesmente contando vantagens: é feliz de ter esta amizade verdadeira e inesperada com Mônica e agora também com os amigos de Mônica. Ele nos leva para almoçar em um local a poucos passos do estádio do Boca Junior: lá dentro uma certa sujeira e uma humanidade não exatamente tranquilizadora. Mas estamos com Papito. E depois de meia hora nos encontramos a cantar hinos a Maradona e cantos da tradição napolitana com os outros clientes.
Papito não fala muito. Tem o rosto marcado por um passado de miséria e violência. E as suas poucas palavras têm um peso específico notável. Como as da mensagem que manda a Mônica no dia depois de nossa partida. “Obrigado. Estive bem com vocês e lhes quero muito bem”.