França. Para não ficarmos surdos e cegos
Os franceses votaram nas eleições presidenciais. Na imprensa falava-se de “retorno dos católicos”. Mas o que isso quer dizer, de fato? Do diálogo pedido pelos Bispos à redescoberta de Havel, eis aí o que há de novo“Devemos estar surdos ou cegos, se não percebemos o cansaço, as frustrações, às vezes os medos, até a raiva, intensificados pelos atentados e pelas agressões, que tomam conta de grande parte dos habitantes do nosso país, e que manifestam, desse modo, expectativas e profundos anseios de mudança”.
No dia 7 de maio, a França foi às urnas votar para presidente e a vitória foi do candidato centrista, Emmanuel Macron, de 39 anos. As eleições ocorreram numa situação social e política de grande incerteza, de urgente dramaticidade. Tanto que há quase um ano, em junho de 2016, o Conselho permanente da Conferência episcopal francesa sentiu a necessidade – não usual para a Igreja da França – de enviar a todos os concidadãos uma Nota sobre o “sentido da política”, para ajudar na tomada de consciência de um momento que se caracteriza por representar uma mudança histórica, e para prestar atenção no bem comum, nos “profundos anseios de mudança” de todos.
“Devemos estar surdos ou cegos”, disseram os Bispos. Se há um país na Europa no qual hoje se percebe mais intensamente esse “colapso das evidências” – depois de séculos em que os valores cristãos, reduzidos a valores “iluministas”, foram extirpados da fé viva –, esse país é a França. Isso pode ser visto na desagregação das relações sociais, que até os melhores intelectuais laicos denunciam. Pode ser visto nas leis e na perda da identidade de um povo.
Os atentados islamitas que repetidamente golpearam a nação parecem quase que um símbolo disso. Mas também o crescimento terrível de atentados ou vandalismos contra o cristianismo demonstra um “ódio de si”: de janeiro a outubro de 2016, entre cemitérios profanados, igrejas vandalizadas, sacristias incendiadas e padres agredidos, registrou-se um crescimento de mais de 40% nos ataques.
Na “República da laicidade” durante muito tempo o papel dos católicos foi colocado entre parênteses. Hoje, ao invés, há uma pequena evidência, que muitos observadores já captaram, de que a Igreja e alguns setores do laicato estão demonstrando novo empenho. Os jornais laicos, do Le Monde ao Libération, percebem o que o l'Express chamou de “despertar dos católicos”, que teria começado com as manifestações da Manif pour tous, em 2013, em oposição à lei dos casamentos homossexuais.
Em 2017, a novidade política é que, pela primeira vez em muito tempo, se apresentou um candidato. Ou, pelo menos, foi identificado um: François Fillon. Já foi primeiro-ministro, mais de direita que de centro, católico, antiabortista, defensor da família tradicional e do livre mercado. Alguém que não teme declarar a própria fé é algo incomum na política francesa. A candidatura de Fillon, mesmo sem ter conseguido chegar ao segundo turno, pode ser identificada como um símbolo do “despertar”.
Ilusão de ótica? É preciso lembrar a história do catolicismo político francês. De Gaulle era católico, mas a sua reserva em relação a tudo o que era pertinente à religião era de outra natureza em comparação com a laicidade política de um De Gasperi ou de um Aldo Moro. Hoje, porém, frente ao “colapso das evidências” de todo um país, não só os novos ativistas, mas também intelectuais católicos de prestígio, como Pierre Manent, se colocam o problema do que fazer, e indicam a recuperação da identidade católica como o caminho. Pode ser suficiente numa situação política, cultural e até eclesial tão dramática?
Uma pesquisa do Le Monde, subdividiu os católicos franceses em várias famílias: de festividades culturais, 45% dos praticantes, os que vão à missa só por ocasião de cerimônias e votam na direita, aos conciliares (14%) que votam mais na esquerda, aos observantes (7%), tradicionais, que votam na direita, e não confiam no que diz o Papa Francisco sobre os imigrantes. “O Papa provoca escândalo”, foi o título, em janeiro, de uma matéria do semanário conservador Valeurs Actuelles, acusando Bergoglio de participar do “suicídio da civilização ocidental”.
A França, porém, é um país descristianizado, abalado pela aceleração secularista dos anos de Hollande. Em 1972 definiam-se como católicos 87% da população; hoje, 64%. Destes, só 4,5% se declaram praticantes; o número dos casamentos religiosos caiu 10% (para 29,5), enquanto os batizados passaram dos 385 mil (em 2002) para 300 mil.
Falar em “reconquista” baseando-se na identidade poderia ser uma ilusão, mesmo que, paradoxalmente, assumisse a presidência um candidato “catho”. O jornal católico La Croix se perguntou: “Uma ilusão de ótica?”. A essa preocupação se deve também a prudência dos Bispos quando, por exemplo, valorizam o “verdadeiro compromisso” como um método de trabalho, para “entrar, partindo de posições diferentes, num verdadeiro diálogo, no qual não se busca a hegemonia, mas que leva necessariamente a algo de diferente das posições iniciais. Não deve ser um confronto entre verdades, mas uma busca feita juntos, na verdade”.
O “o que fazer?” da Igreja francesa frente à situação atual é, pois, algo complexo e certamente não merece ser reduzido a uma disputa eleitoral, nem a uma reivindicação só reativa contra as más leis, nem a um confronto de posições, mesmo no seio do mundo católico. Seria algo inadequado ao desafio dos tempos; é como se se exigisse, ao invés, recomeçar partindo de uma folha em branco, e não somente na França.
Sem poder. Alguns sinais de despertar são uma positiva semeadura, sobretudo se forem um estímulo ao testemunho e não apenas uma aposta política momentânea e insignificante.
É o que descreve, por exemplo, Silvio Guerra, há muitos anos na França, onde dirige um instituto educacional religioso. Frente à situação do país, com amigos e personalidades de várias correntes começou a reler Václav Havel, o escritor dissidente e depois presidente da Checoslováquia, que em 1977 foi o promotor da Charta 77. Um leigo humanista que, frente ao desastre humano produzido pelo totalitarismo, levantara o tema, em seu O poder dos sem poder, de uma retomada das evidências e das necessidades humanas em que a política “não fosse uma tecnologia de poder”, “nem uma organização da humanidade com meios cibernéticos”, mas “um modo de buscar e conquistar um sentido na vida, e um modo de proteger e servir a esse sentido”.
Diz Guerra: “Pensamos que a reflexão de Havel capta, ainda melhor do que na época, a dramaticidade do nosso tempo, aqui na França, mas é também um ponto de resistência, de onde se pode recomeçar”. Daí nasceu, entre outras coisas, um manifesto que se intitula Charte 2017: Pour une politique antipolitique (Para uma política anti-política), que foi divulgado na internet e apresentado a várias personalidades francesas. Havel fala de “primado da consciência moral individual”, de “responsabilidade de cada um em relação ao destino de todos”, de “busca do bem comum como pressuposto da política”.
São lampejos, para deixarmos de ser surdos ou cegos.