Recuperar a minha humanidade
A tentação de agarrar-se ao “dever ser”. A decisão de fincar os pés no presente, a oração no trabalho... E a descoberta de um valor novo da construção partindo de baixo, mesmo quando você o tem em mãos há anos. Da Passos de maioEstes dias transcorridos em casa por causa da pandemia são realmente inquietantes. Já parei de tentar calar a ansiedade, a dor e a preocupação agarrando-me a qualquer “dever ser”, tal como o “dever” de olhar com positividade, de aproveitar a oportunidade para mudar, para aprender, para melhorar. Até mesmo o “dever” de encontrar o Senhor. Sinto-me filho de Dom Luigi Giussani e para mim não pode ser cristão algo que não seja em primeiro lugar humano. Portanto, sim, tanto sofrimento me perturba, todo esse medo e toda a irreprimível incerteza que respiro a cada dia. Decidi sobretudo viver simplesmente procurando manter os pés fincados neste presente. Todo dia acabo por resvalar para a “modalidade prisão”, ao invés da modalidade “clausura”.
Houve um momento em que tive a dúvida de ter-me tornado ateu, porque em determinado ponto a oração encontrada no breviário ou na missa começou a não me convencer. Um dia, após a enésima hora passada a gravar as aulas para os meus alunos (coisa que não é nada banal mesmo depois de quarenta anos de carreira universitária, porque cabe fazê-lo em frente a uma câmera e toda vez que erro devo começar de novo), me dei conta de que o meu rezar era exatamente o meu estar, o meu cumprir o trabalho que eu tinha de fazer. Como cheguei a entender isso? Porque lá dentro havia um desejo novo: o de algo mais, o de ser por completo a pessoa que Deus me chamou a ser. O canal de comunicação com o Senhor nesse ponto tornou-se abrasador.
Nesse momento decidi em primeiro lugar manter-me atento à realidade: não deixar as tarefas que me cabem, mas buscar uma consciência diversa, mais profunda. Além de gravar as aulas, responder às perguntas dos alunos no “fórum”, dialogar visualmente com eles na videoconferência, continuar levando adiante os projetos culturais em que estou envolvido, tudo é parte da vocação para a qual fui chamado quarenta anos atrás. Não existe uma parte religiosa da vida e uma parte “civil”: a vida é um todo que pede o meu estar presente.
Impressiona-me o contínuo convite ao silêncio como instrumento de olhar para si e para o Mistério. Conheço muitas pessoas para quem este é efetivamente um veículo útil. Eu sou feito de modo diferente: o Mistério vem ao meu encontro por meio do devir vital e contraditório da realidade, enquanto o silêncio é somente o espaço, o instante em que eu conquisto a distância para olhar tudo, um pouco mais como homem, um pouco mais na companhia de um Deus, como disse o Papa, doente como eu; Ele, porém, doente de misericórdia.
Nestes dias percebi que para mim o silêncio é a escuta daquilo que ocorre: pessoas, coisas para fazer, problemas que devo resolver. Aconteceu-me ouvir a advertência de alguém para que estes dias não sejam “bulímicos”, atulhados de coisas para fazer, de relações para entreter obsessivamente mediante chamadas de vídeo de tudo quanto é lado. A minha vida está muito cheia, até porque sou eu que a encho, mas não me importa torná-la diferente, porque eu sou assim, interessa-me só poder perceber que está aí, e está aí para mim. Enfim, isto é o que – acredito – possa mudar-me. E mudar é difícil de aceitar e, com efeito, eu alterno a tentação de seguir como em rebanho o pensamento alheio, ou então de achar que já sei. Nada me protege da necessidade de encontrar o meu caminho, as minhas palavras, a minha experiência, as minhas preferências, quer em relação à história a que pertenço, quer em relação à história do mundo.
A outra experiência fundamental que faço nestes dias diz respeito à amizade: verifiquei que o distanciamento mata os focos pequenos e faz explodir os grandes (e a tecnologia tem sido ótima cúmplice nesta verificação). Neste sentido fico muito tocado com a disponibilidade a doar a vida, o tempo, o dinheiro para quem passa necessidade, em tantos âmbitos, desde a escola até os hospitais e o mundo do trabalho. Qual forma de companhia posso eu viver com estas pessoas? Sinto-me seu amigo. E estou impaciente “almejando por fazer”, porque quero estar ali dando uma mão, ajudando quem sofre, e apoiando aqueles que lutam e enfrentam como podem esta tragédia. Sim, tragédia. Não penso nem um pouco em dourar a pílula: para muitos, muitíssimos, isto que estamos atravessando é uma tragédia sanitária que corre seriamente o risco de tornar-se tragédia econômica.
Por isto acho que nunca entendi tão bem o valor de uma coisa que há tantos anos tenho em mãos: o da cultura subsidiária. Meu desejo é que, sobre a busca, frequentemente adolescente, da contraposição, se imponha mais o impulso de conhecer, de entender, de aprofundar o que acontece no plano humano, sanitário, econômico, social.
O empenho nas obras em que estou envolvido, em primeiro lugar a Fundação para a Subsidiariedade e ilsussidiario.net, mas também o Meeting de Rímini e iniciativas nascidas em outras realidades culturais, tornaram-se para mim, ainda mais claramente, a ocasião para aprender a não deixar cair o desejo de construir e imaginar como “a partir de baixo”, de maneira subsidiária, é possível colaborar para a construção de um novo bem comum, voltando a habitar lugares nos quais as pessoas possam continuamente aprender umas das outras. O que eu espero é a retomada de uma experiência humana verdadeira, como a de quem construiu os fundamentos da Itália republicana, descobrindo o significado existencial e pessoal do outro, também do diferente, como recurso. A construção do bem comum, numa democracia participativa e parlamentar, não é um incentivo moral, mas o que estes dias difíceis nos mostram como mais verdadeiro. Dias que serão decisivos também para encontrar as melhores soluções operativas.
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