Balthasar e Giussani. Aquele encontro em Einsiedeln
No Centro cultural de Milão Paolo Martinelli, Stefano Alberto e Claudio Mésoniat apresentam o papel do cristão no mundo, o diálogo entre o grande teólogo e o fundador de CL. As páginas sobre aquele encontro de "Luigi Giussani: a sua vida"Em Janeiro de 1971, Giussani participa nos Exercícios Espirituais dos grupos do CL das universidades de Friburgo, Berna e Zurique, que têm lugar em Einsiedeln, sede de uma abadia beneditina histórica. As lições são dadas por ele mesmo e Hans Urs von Balthasar, o teólogo suíço que tinha conhecido há pouco tempo. O conteúdo daquelas lições será compilado num pequeno livro, editado em Junho do mesmo ano pela Jaca Book, com o título L’impegno del cristiano nel mondo [O compromisso do cristão no mundo]. Com um certo pudor em relação ao grande teólogo, Giussani faz com que editem o seu nome na capa com letras minúsculas e as suas lições como «resumo escrito por um grupo de “Comunhão e Libertação”» .
Claudio Mésoniat, na época estudante universitário, afirma: «Foi Scola quem decidiu convidar von Balthasar a Einsiedeln, o centro do catolicismo suíço» . Há uma fotografia que retrata o padre Scola (ordenado sacerdote poucos meses antes), Giussani e von Balthasar à mesa, durante os Exercícios.
O livro abre com estas palavras de von Balthasar: «Dedico estas duas conferências, que dei aos grupos de “Comunhão e Libertação”, a a Dom Luigi Giussani, como sinal de amizade e profunda admiração».
O efeito em Giussani daqueles Exercícios é tal que, a 22 de Março, von Balthasar é convidado para uma conferência organizada pelo Centro culturale San Babila em Milão. O tema é ainda «L’impegno del cristiano nel mondo». A 24 de Março, Giussani participa num encontro que retoma a conferência, durante o qual a comenta, ponto a ponto, mas primeiro diz: «Queremos que a lição que von Balthasar nos deu na outra noite se torne um instrumento de trabalho, aliás “o” instrumento de trabalho mais importante para a nossa meditação durante estes meses, porque foi de facto um testemunho excepcional». Giussani sublinha que ficou impressionado com a afirmação de que o homem tende a algo que o supera: «O homem – explicou muito oportunamente – é um ser à espera, portanto totalmente propenso, sem saber o que espera; por isso é um ser à espera de alguma coisa que está para além do seu esforço imaginativo, para além do que a sua inteligência se esforça por prever». O homem está à espera, e «só quando deparar com a coisa é que percebe que se trata daquilo que espera».
Apresentado o título da conferência, o primeiro ponto de desenvolvimento parece iludir o tema, porque o teólogo fala do compromisso de Deus com o mundo. Mas Giussani esclarece que se pode compreender imediatamente a lógica desta escolha: «O cristão é alguém que segue Deus, que imita»; por isso, antes de falar do compromisso do cristão no mundo, von Balthasar aborda a questão de Deus. «O pressuposto da Igreja», disse textualmente, «é o compromisso de Deus com o mundo». O mundo, de facto, espera alguma coisa «que ele próprio não consegue construir, porque está para além da medida da sua inteligência, para além da medida com que pode tecer hipóteses, com que pode gerar projectos, e está para além da sua imaginação». E a resposta de Deus é Cristo, «o homem Cristo», que é «o amor de Deus por nós». Então, o que é o cristão no mundo? «Alguém que leva ao mundo o que mundo espera e desconhece: Cristo».
Giussani cita duas observações práticas de von Balthasar: a primeira, que «a Igreja, ou seja, a realidade cristã no mundo, não é primeiro que tudo a hierarquia eclesiástica. A hierarquia eclesiástica – dizia ele – é como que a estrutura, o esqueleto, que tem a tarefa de a suster, mas uma pessoa não vai ter com outra para a abraçar, como esqueleto, porque a outra fugia, espavorida». A segunda, «uma Igreja contestatária que sinal de salvação pode ser?». Giussani concorda com von Balthasar, que «o dever que nasce para o cristão, para a presença do cristão no mundo, é fazer a comunhão». Isto, acrescenta, «é “a” lei do cristão e pronto». E, considerando o movimento, diz: «Estamos juntos, porque Cristo morreu e ressuscitou», por isso «de onde nascem todas as tuas objecções em relação àqueles que não fazem nada, aos que são sempre os mesmos a chefiarem as coisas, aos manda-chuva, aos que não te correspondem ou te abandonam – todas as tuas objecções, tanto as que te fazem seguir a vida da comunidade como as que te afastam dela? Vêm do fato de ainda não ser verdade, para ti, que estamos juntos, porque Cristo morreu e ressuscitou, porque mesmo que tivesses morto a minha mãe, tinha de te aceitar em comunhão, mesmo que me matasses, tinha de te aceitar em comunhão, porque mesmo que me matasses, isso não invalida o facto de Cristo ter morrido e ressuscitado pela nossa unidade». Lembra que eram precisamente estas coisas que ele dizia nas aulas do Berchet: «Se me vieres matar, o que quer dizer perdoar-te? Que te aceito, tal como és, que és um só, comigo, porque o que me torna uma só coisa contigo é mais profundo do que aquilo que és e aquilo que fazes: é Cristo morto e ressuscitado, é este facto objectivo, que toda a tua maldade não me pode tirar, porque tu és eu, e eu aceito-te. Se, quando esse aí estivesse para me esfaquear o percebesse, rebentava de raiva, porque, quando estivesse para me matar, havia de perceber que não consegue fugir-me, que eu o abraço, percebem?!».
Giussani retoma também uma recomendação de von Balthasar: é preciso estarmos conscientes de que «não somos nós a construir a unidade da Igreja, a unidade é Cristo, morto e ressuscitado. Por isso, para manter a unidade, temos de [nos] dépasser constantemente, superar todas as nossas experiências». Giussani concorda, «porque a realização é algo que nos ultrapassa, que ultrapassa as nossas experiências, o que nos realiza é a morte e a ressurreição de Cristo. E efectivamente começa a realizar o absurdo, isto é, a unidade entre nós, que de outra forma seria impossível». Eis, portanto, uma fórmula resumida: «Não são as nossas experiências que constroem a unidade, mas é essa unidade que fundamenta as nossas experiências. Primeiro é um dado, um fato que se coloca: se eu for um malfeitor... este facto coloca-se-me na mesma. Deus envolve-se... de qualquer maneira, estou sempre a tropeçar n’Ele – vem comigo!».
Nesta altura, faz uma ressalva importante: para [uma pessoa] se comprometer com o mundo, a primeira coisa a fazer «não é fazer nem construir, mas aceitar este envolver-se de Deus connosco», segundo a norma bíblica: «Não eram as pessoas extraordinárias que construíam, que faziam projectos e viviam aventuras, empreendimentos, mas era a obediência à palavra de Jahvé».
Quanto à segunda parte da conferência de von Balthasar, dedicada ao compromisso do cristão, Giussani parte de uma grande premissa: Cristo traz «a resposta que o homem esperava, esta resposta tão esperada como impossível de se prever, de se pressentir, de se imaginar, por ser uma resposta que vem do que está para além do homem; e tudo o que há de mais verdadeiro nas relações humanas é um símbolo, é um sinal disto». A propósito, alude à comparação que von Balthasar fez com a Criação de Miguel Ângelo, na capela Sistina: «O homem, a humanidade é como aquela mão ou aquele dedo que procura o seu objecto, e o seu objecto é outra mão. A esperança humana, por si só, não se pode apaziguar. Na história não há figura humana capaz de satisfazer a nossa esperança».
É numa tal situação incompleta que se delineia a tarefa do cristão: «Dirigir a esperança para o objecto da sua satisfação que está entre nós. O facto de Deus entre nós – Cristo – se manifestar, mais ou menos velada ou lucidamente, na experiência impossível da unidade entre homens, a comunhão eclesial». Mas uma unidade que «transfigura as estruturas, as estruturas limitadas, instáveis, transfigura-as a partir de dentro através do amor divino. Só através da Igreja é que elas adquirem uma luz, uma transparência, inimagináveis para o homem», porque é este o paradoxo do cristianismo: «Que realiza como experiência, já, pelo menos um pouco, o inimaginável; aquele inimaginável torna-o experiência».
É precisamente por isto, segundo Giussani, que o cristão não poderá ser senão «sinal de contradição, quando quiser levar o mundo para além dos fins previstos pelas suas políticas e pelas suas filosofias. Por isso esta é a figura da acção cristã no mundo: o testemunho». Conclui com uma referência explícita a von Balthasar: «Grande é a gratidão a Deus, por termos encontrado um homem assim. Mesmo porque é realmente um prazer ouvir a confirmação – vinda de um estranho que é um dos maiores teólogos de hoje em dia – tão literal (até nas frases), daquilo que nos temos vindo a dizer, há tantos anos» .
(De "Luigi Giussani: a sua vida")