O Meeting no Egito. Para viver “o dom da diferença”
Três dias entre Alexandria, na histórica biblioteca, e no Cairo. Falando de astronomia, do 68 e da herança do cardeal Tauran. Depois, o encontro com Ahmad al Tayyeb, grande imã de al-Azhar, que confia: «Cremos no reconhecimento recíproco»«O abraço com o Papa? Um dom de Deus. Não tínhamos programado nada. Mas aconteceu». Uma amizade imprevista, mas real. Algo que você não imaginaria fazendo cálculos, no entanto «acontece». Assim como acontece que o Meeting de Rímini tenha chegado até aqui, na residência de Ahmad al Tayyeb, grande imã de Al Azhar. E que a máxima autoridade do Islã sunita acolha Emília Guarnieri, presidente da feira riminense, e a delegação que a acompanha, com palavras de estima não formais. Para Francisco, que acabou de encontrar em Roma pela terceira vez e com quem nasceu um vínculo inesperado. Mas também para o Meeting, porque «neste tempo de crise e sofrimento, apreciamos muitíssimo o trabalho de vocês». Quarenta minutos de cordialidade verdadeira, durante os quais se fala de diálogo e paz («não cremos no choque de civilizações, mas no reconhecimento recíproco», diz o imã), João Paulo II e Dom Giussani são citados («sem ele não estaríamos aqui agora», diz Roberto Fontolan, diretor do Centro Internacional de CL»). E se encerram da maneira melhor os “três dias” que levaram o Meeting ao Egito, para um evento organizado junto com a Biblioteca de Alexandria.
O tema é “O dom da diferença”. Quatro encontros, uma mostra e duas cidades envolvidas, para uma ideia surgida no final de agosto, quando Mostafa El Feki e Khaled Azab, diretor e responsável de projetos da mais importante instituição cultural egípcia, ao voltarem de Rímini estão tão marcados, a ponto de mudarem de ideia: ao invés da já programada apresentação do Meeting em Alexandria, um mini-Meeting novinho em folha, a ser organizado juntos. Naturalmente, o intermediário é Wael Farouq, docente de Língua Árabe e colaborador da manifestação de Rímini.
É ele quem acompanha os italianos às salas da Biblioteca, na manhã de segunda-feira. Duas sessões pela manhã, uma de tarde, enquanto no salão ao lado há um congresso da FAO e nos 11 andares superiores deste templo da cultura que mantém juntos futuro e tradição (a fundação remonta ao século IV a.C., e o novo prédio em forma de nave espacial é de 2002), estudantes e turistas vão e vêm (passam 12 mil pessoas por dia). Hoda Mikati, vice-diretora da Biblioteca, sublinha que falar da diferença como dom «é significativo, porque muitos países estão se fechando em si mesmos. É uma coisa estranha, essa rejeição do estranho. Como podemos voltar a celebrar a diversidade?». Eis um pequeno “como” que acontece aqui mesmo, diante de uma centena de pessoas, uma boa metade abaixo dos 30.
Farouq faz a introdução falando do Meeting, «que pode falar do dom da diferença, porque a incorpora». E Emília Guarnieri faz a narração do mesmo, seguindo o fio dos elementos que o aproximam a este lugar: «É um lugar nascido para atrair ao belo. E a beleza não conhece discriminações: ressoa no coração de todo homem, enquanto homem». Explica como nasceu o evento de Rímini, falando do «grupo de pessoas que encontraram um homem, Dom Giussani, capaz de olhar a realidade com paixão e desejo de conhecimento imensos. Ensinou-nos a fazer o mesmo. Porque homens que dizem “verdadeiro” e “belo” em outro idioma, dizem a mesma coisa que você pensa ao dizê-lo. É ali que nasce a necessidade de encontrá-los». Isso é mostrado justamente pela amizade com Farouq, que se declara marcado pelo modo como em Rímini «ninguém nos pede para abandonar as nossas visões, mas para partir de nossa identidade e assim tornar possível o encontro». Isso é muito mais do que a ideia de tolerância: «Quanto mais nos identificamos com o outro, mais encontramos parte de nós». Não por acaso caso que, em árabe, dizer «você me faz falta» tem a mesma raiz de uma palavra que indica a fome, a pobreza: «Necessitamos do outro. Sem diferença, ficaríamos vazios».
No segundo painel fala-se mesmo de diferença, como «base do conhecimento». Dois percursos, ambos fascinantes. Marco Bersanelli, astrofísico da Universidade de Milão, guia na descoberta do céu, «ponto de encontro que todas as culturas puderam reconhecer. Se há uma coisa que nos une, é que estamos sob a mesma abóbada». Que atrai o homem, desde sempre. A viagem de Bersanelli parte dos grafitos de Cro-Magnon para chegar a Herschel, Leopardi e ao Big Bang, passando pelo sistema ptolemaico (concebido aqui mesmo, em Alexandria) e uma sura do Alcorão que chama a atenção, pensando nas descobertas acerca da expansão do universo: «Nós construímos o céu magistralmente, e nós lhe alargamos os espaços».
O outro percurso é de autoria de Salah Fadl, linguista estudioso de Dante. A diferença, diz, «é o que permite desenvolver-se, ir em direção à completude. Não podemos contentar-nos em aceitá-la, devemos acolhê-la e compreendê-la». Para descrever o pluralismo, usa a ideia de um «mosaico, no qual tantos pontos diversos dão uma imagem completa».
Encerra o próprio Khaled Azab, que lembra como o Egito «cresceu em camadas, postas uma em cima da outra. Não podemos falar de tolerância, aqui, mas de convivência, desde sempre». E fala do Museu das Religiões no qual está trabalhando, para sublinhar justamente a importância decisiva do pluralismo por estas bandas. O encontro termina, o diálogo não: um casal de jovens chega perto do Bersanelli, surgem perguntas sobre a vida extraterrestre, a centralidade do homem no universo, o desejo de descobrir...
À tarde, nova sessão. O assunto desta vez é o 68. É notável que a Biblioteca, entre as mostras do Meeting 2018, tenha pedido que levassem ao Egito exatamente esta, realizada por uns trinta universitários e um grupo de docentes italianos. Sinal de que atinge temas vivos no país onde faz oito anos – e justamente dois meses após um memorável “Meeting Cairo” organizado por Farouq e por seus amigos – estourou a revolta da praça Tahrir.
Introduz Sayed Mahmoud, um dos chefes do conselho editorial de Al Ahram, o maior jornal egípcio. Esteve em Rímini duas vezes, e o recorda: «Considero-me um amigo e um mensageiro desta manifestação. É uma ponte entre os povos». Um dos palestrantes é Ahmed Shaaban, que viveu o 68 aqui e explica o que significou para a geração dos jovens egípcios veteranos da Guerra dos Seis Dias, com o exército israelense tendo chegado a cem quilômetros do Cairo: «Nós também, tal como os nossos coetâneos europeus, buscávamos uma libertação: eles do capitalismo, nós de um ocupante. Esperávamos um futuro melhor. Agora muitos jovens pensam que a mudança é impossível. Eu continuo sendo otimista».
Guarnieri, por sua vez, contou o seu 68. Uma estação em que, entre mil contradições, aparecia «um desejo de autenticidade: a pergunta radical sobre o eu, sobre o significado da vida, era compartilhada e levada para as ruas». Hoje, a herança que permanece é «o desejo de mudar o mundo». E também está vivo aqui, pois, à pergunta do público sobre o paralelo entre o 68 e a praça Tahrir, Mahmoud responde que «há a mesma frustração», a sensação de uma ocasião perdida. Enquanto Farouq faça da necessidade de «não reduzir o desejo a ideologia, porque senão não o compreendemos. Eu estava na praça Tahrir, foi uma das coisas mais bonitas que já me aconteceram. Os jovens ali não estavam movidos por uma ideologia, mas por um desejo de liberdade. Temos de reconsiderar esse desejo, entendê-lo melhor». Exatamente como a mostra faz, passando pelas telas da sala, mas poderá ser visto por inteiro no dia seguinte, no Cairo.
Aqui, o encontro está marcado no pátio do século XVII de uma pequena joia da arquitetura islâmica: casa Al Sinnari, residência de uma rica família de mercadores. Ao redor, sob as esplêndidas mashrabiya - as janelas árabes entalhadas em madeira -, os painéis da mostra. E as jovens cobertas com véu olhando as fotos de Che Guevara, João Paulo II e Martin Luther King, lendo em árabe os mesmos textos que seus coetâneos tinham escrito para levá-los a Rímini, três meses antes.
O tema é o pluralismo religioso, «base do conhecimento». Depois dos cumprimentos de Emilia Guarnieri, que fala de «um passo na construção de uma amizade», a primeira fala é do núncio do Egito, Dom Bruno Musarò. Ele conta da viagem de Francisco ao Cairo, em abril do ano passado: «Uma visita rápida, só 27 horas, mas fecunda». Os encontros dele com o imã de Al Azhar e o papa Tawadros, o chefe dos coptas, são «sinais de amizade», mas também símbolo daquilo que é, ou pode ser, o Egito: Um lugar de encontro entre povos e religiões. Encontrar-se é viver.
Depois, Roberto Fontolan. Começa com uma mostra que agora está em Roma «com um título evocativo: Je suis l’autre, “eu sou o outro”. Lembrou-me o título do Meeting de 2016: “Tu és um bem para mim”». Frases que servem de bússola para um percurso sobre o pluralismo religioso, cifra da pós-modernidade, e sobre a necessidade de procurarmos juntos a “terra média” entre o relativismo e o fundamentalismo que o ameaçam. Fontolan cita o Concílio Vaticano II e a Conferência de Marrakech de 2016, para lembrar os fundamentos sobre os quais se pode construir o pluralismo: a liberdade religiosa e a cidadania. «O desafio é mostrar a todos que a experiência religiosa não mortifica, mas exalta a liberdade de construir na sociedade»; como costumava lembrar o falecido cardeal Tauran, «as religiões não são o problema, mas parte da solução». E o método é justamente o que está acontecendo ali, naquele momento: «O encontro é entre pessoas, não entre culturas. Eu sou o outro, tenho algo de profundo em comum com você. Devemos partir disso».
Palavras que Usama al Azhari, um dos imãs de Al Azhar e conselheiro do Presidente para os assuntos religiosos, retoma e cita numa fala muito significativa. «“Eu sou o outro” e “Tu és um bem para mim” são expressões que ilustram um sonho comum. Precisamos de um pensamento a ser buscado juntos que nos permita nadar em águas mais tranquilas, protegidos do fundamentalismo». Al Azhari não hesita ao falar do extremismo que «através de conceitos religiosos errados, aprisiona as mentes» para transformá-las em «medo do outro». É muito lúcido ao ressaltar a relação entre essa «imagem sanguinária da religião» e as guerras, a imigração em passa para o Ocidente, os problemas abertos hoje. Explica que existe «um eu demoníaco, satânico» que faz o homem acreditar que é superior e o faz «fechar-se em si mesmo e desprezar o outro. Temos de trabalhar juntos para fazer nascer um outro “eu”, que o compense: um “eu” iluminado. Que faça o outro dizer: “Estou aqui por você, a seu serviço. Não tenho direito de viver se você não viver. Você é um bem para mim”. Ficarei muito feliz em colaborar com vocês do Meeting ao tentarmos propor ao mundo uma nova maneira de falar de Deus». Exatamente a mesma coisa que disse depois o seu responsável, o grande imã Al-Tayyeb, na manhã seguinte. Nos vemos em Rímini?
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