Londres. Quando Deus acende a “luz da reserva”
De David Jones, poeta da Grande Guerra, ao Metropolita Antonij, passando por “O grande inquisidor”. O London Encounter acende os refletores sobre o paradoxo da liberdade, e sobre por que o homem pode encontrá-la até diante da morteHá exatos cem anos, ao fim da Grande Guerra, um jovem artista galês, David Jones, voltava do front ocidental após três anos nas trincheiras, carregando consigo uma bagagem de memórias traumáticas, além de esboços e desenhos, e principalmente a ideia de um poema, In Parenthesis, que depois ganharia forma nos anos seguintes. Considerado por Audem um dos mais importantes podemos do século XX, In Parenthesis é um hino doloroso à amizade, à dignidade e liberdade do homem, à beleza da arte como expressão delas. David Jones se converteria depois ao catolicismo, num passo que para ele foi a consequência natural da experiência da arte como «sacramento».
Nos mesmos anos, uma família de refugiados russos, depois de muito vagar, chegou a Paris: foi o início de um exílio imposto pelo regime comunista a milhões de pessoas, milhões de sementes lançadas por Deus entre as garagens e as periferias das cidades europeias. Uma delas, Anthony Bloom, daria muitos frutos. Médico, sacerdote e depois coração da comunidade ortodoxa na Grã-Bretanha, padre Anthony, também conhecido como metropolita Antoni de Suroz, também era uma voz familiar em muitas casas, graças às suas transmissões na BBC. Entre os muitos jovens inspirados por ele, também está Rowan Williams, poeta e teólogo galês, arcebispo de Canterburry entre 2003 e 2013 e companheiro fiel do London Encounter, que este ano chegou à sua quinta edição.
David Jones e padre Anthony, no dia 3 de novembro, foram os protagonistas das duas mostras do Encounter, que este ano teve como título “O ser humano: um paradoxo de liberdade”. Como Williams observou no encontro introdutório David e Anthony têm muito em comum: chamados a viver situações extremas de privação e exílio, ambos testemunharam com sua vida que a liberdade é possível em qualquer circunstância.
No palco, junto com Williams, estavam George Corbett, estudioso de Dante e professor na Universidade de St. Andrews, na Escócia; Aleksandr Filonenko, teólogo ortodoxo da Universidade Nacional Karazin de Kharkov, na Ucrânia; e Heather Richardson, diretora do St. Christopher Hospice de Londres, historicamente o primeiro centro para doentes terminais, obra profética da enfermeira anglicana Cicely Saunders.
Corbett começou um diálogo que continuaria durante o dia inteiro, dentro e fora do salão: ressaltou que a liberdade não consiste somente numa adesão à lei de Deus, não se reduz simplesmente à escolha pelo correto e pelo bem. A liberdade que Deus doou aos homens, e da qual se compraz, tem um fôlego muito maior e abraça, ao invés de contrapor-se, a ideia de liberdade como “liberdade de escolha”, tão difundida na sociedade contemporânea. Também para o cristianismo, a liberdade tem que ver com o indivíduo, com suas escolhas pessoais e preferências.
Filolenko deu um passo mais, a partir da história dos refugiados russos na Inglaterra do pós-guerra: fugidos de um regime que abrira mão de escolhas e opções, os imigrantes russos estavam entrando em contato com as atrações da sociedade liberal, muitas vezes com consequências alienadoras. Só a relação com Cristo, testemunhado por homens como o metropolita Antoni, pôde dar significado e realidade à liberdade deles.
Heather Richardson deu continuidade, contando, a partir de sua experiência no St. Christopher’s, uma sequência de histórias de homens e mulheres, das escolhas feitas nos dias do último período da vida deles. O drama da liberdade, explicou, vem à tona no momento da morte e se revela em particular na liberdade de agradecer e pedir perdão.
A realidade da morte, comentou Rowan Williams, purifica o drama da liberdade: ser livre não significa retirar-se das circunstâncias ou entregar-se a ideias ou imagens. Liberdade é a disciplina de participar da realidade, do momento presente. Como os cães de caça, acrescentou Filolenko, que são mais livres do que nós, vigilantes e alegres à vista da presa.
Duas imagens encerraram o encontro. No paraíso, Deus não nos reprovará não termos sido a Madre Teresa de Calcutá, mas não termos tido a plena liberdade de nos tornarmos nós mesmos. Na segunda, de origem indiana, m homem agarrado a um ramo, na borda de um penhasco perseguido por um tigre, ainda pode afirmar toda a sua dignidade reconhecendo a beleza de uma flor entre as rochas.
A beleza, junto com a morte e o amor, é de fato a palavra chave que aparece no coração do mistério da liberdade. Há quem pergunte como é possível ter aquela liberdade contada e testemunhada pelos palestrantes. A resposta de Filolenko é inesperada: a única esperança é uma experiência de beleza, de qualquer tipo, que possa devolver ao homem a gratidão pela presença da realidade, e portanto reabrir para a relação com Cristo.
O diálogo continuou à tarde, com um encontro sobre a liberdade no trabalho. No palco, estavam Tom O’Connor, diretor geral da associação para os sem-teto Providence Row de Londres, Stefano Sala, empreendedor milanês, e Richard Solomon, diretor financeiro da Universidade St. Mary’s de Londres.
O’Connor logo associou a ideia de liberdade à de felicidade: só uma realização plena da própria individualidade no ambiente de trabalho é que nos torna livres. E isto só se dá na consciência do próprio trabalho como colaboração na criação de Deus. Como disse padre Antonhy, citado num painel da mostra (financiada também pela comunidade ortodoxa londrina), ser cristão significa ser criativo, ou seja, participar da criação divina com a particularidade da nossa liberdade individual. Mas isso só é possível para quem se tornou completamente dócil às mãos de Deus.
Sala, por sua vez, ressaltou como a liberdade só é possível na consciência do objetivo: numa grande empresa, até o trabalho mais humilde tem um valor e uma dignidade enorme, desde que seja reconduzido à missão geral. Mas essa consciência só é doada dentro de uma companhia. Richard Solomon concluiu o encontro com uma história de trabalho bastante diferente: para ele, o trabalho é o lugar privilegiado em que «Deus reacende em nós a luz da reserva de gasolina». E quem enche o tanque não é só o sucesso, o reconhecimento, o status ou o dinheiro (todas coisas boas): só o trabalho santificado na relação com Cristo é que realmente pode preencher o coração, e fazer reacontecer a liberdade, como dom inesperado.
O London Encounter foi encerrado com um espetáculo tirado de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. O grito do velho inquisidor, que dedicou sua vida para poupar ao homem o drama da liberdade, ressoa mais como uma oração do que como uma rebelião. Respondem às palavras desafiadoras do inquisidor, como ecos num vale, os fatos, os rostos e as palavras encontradas durante o dia.
De fato, é um Encounter onde tudo está misteriosamente conectado, onde uma inspiração introduzida num encontro ou numa mostra é confirmado num diálogo com um amigo ou uma colega. Onde pessoas distantes se (re)encontram, e histórias de liberdade individual, tão diferentes, se descobrem amigas e companheiras, muitas vezes com coincidências e semelhanças inesperadas. O próprio Rowan Williams sintetizou isso com uma piada: «It’s all been arranged upstairs», (tudo foi arranjado lá em cima).
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