Robert Spaemann

Robert Spaemann. Elogio da ingenuidade (ou da obediência inteligente)

Recém falecido, era considerado um dos maiores filósofos católicos da nossa época, mas dizia: «Sou um católico que trabalha como filósofo». Em 2013, Robert Spaemann falou-nos sobre o que salva a razão da autodestruição: o conhecimento e o amor
Ubaldo Casotto

Ao apresentar Fini naturali. Storia e riscoperta del pensiero teleologico (Fins naturais: história e redescobrimento do pensamento teleológico, sem tradução para o português) , o Cardeal Ruini disse: «Considero este livro, juntamente com Persone. Sulla differenza fra “qualcosa” e “qualcuno” (Pessoas: sobre a diferença entre “algo” e “alguém”), a obra-prima de Robert Spaemann». Para quem quiser conhecer o pensamento desse pensador alemão, considerado um dos maiores filósofos católicos vivos (ainda que ele prefira dizer: “Sou um católico que faz filosofia”), vale a pena mencionar pelo menos outras duas das suas obras: Natura e ragione. Saggi di antropologia (Natureza e razão: ensaios de antropologia) e Cos’è il naturale: natura, persona, agire morale (O que é o natural: natureza, pessoa, agir moral). Fini naturali surge numa coletânea intitulada “A razoabilidade da fé”, à qual o Pontifício Conselho para a Nova Evangelização concedeu a utilização do logo oficial do ano da Fé. Spaemann esteve em Roma na época, e a Tracce esteve com ele.

Parece-me significativa a publicação desse seu livro durante o Ano da Fé. O senhor denuncia o dualismo do pensamento contemporâneo entre naturalismo e espiritualismo; para Bento XVI o problema da cultura positivista é a fratura entre saber e crer. A fé já não tem que ver com a razão e, portanto, com a vida. A fé pode ajudar a razão moderna a voltar a colocar o homem e o seu bem no centro, em vez da sua posse e do seu uso?
Efetivamente, hoje é a fé cristã que defende a razão da sua autodestruição. Já Descartes tinha entendido isso. Ele mostrou que, se quisermos, podemos sempre duvidar do resultado da nossa compreensão racional, mesmo daquilo que é evidente: segundo Descartes, de fato, poderia tratar-se do engano de um gênio maligno. Hoje, não precisamos da hipótese de um gênio maligno; mas a verdade, na medida em que é resultado de uma evidência, é apenas uma condição mental subjetiva condicionada pelo processo evolutivo que, de acordo com a fé evolucionista, nos oferece uma vantagem em relação ao resto da natureza. Descartes precisava da ideia de Deus para justificar a confiança na razão humana.

É nesse sentido que Joseph Ratzinger desafia os seus contemporâneos a «viver como se Deus existisse»?
As ciências naturais limitam-se a reconstruir a realidade empírica com a ajuda de simuladores. Mas se a razão se proíbe a si mesma de refletir sobre a relação que esses modelos têm com a realidade, o Papa considera isso uma automutilação da razão. Diante do metódico “etsi Deus non daretur” da ciência, ele postula um libertador “etsi Deus daretur”, que é uma recusa de diminuição da razão. Nesta situação, é a fé cristã que defende a pretensão elementar da razão de ser aberta ao que “está na verdade”, a pretensão de um conhecimento do absoluto, de Deus.

Uma fé como forma de conhecimento...
Bento XVI retoma uma concepção ante-fideísta e insiste no fato de que a fé cristã não é uma fé cega, um fanatismo, mas uma fé que vê, um “rationabile obsequium”. Quando Jesus diz aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamo-vos amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer a vós», mostra que o seguimento cristão não é uma imitação cega, mas obediência inteligente.

O senhor nos mostra como as posições da modernidade caem muitas vezes no seu oposto. A tentativa naturalista de explicar os gestos humanos, reconduzindo-os aos processos fisiológicos do cérebro, acaba por negar o homem concreto como ser que age. A sua posição filosófica, no entanto, foi definida como «ingenuidade institucionalizada». Talvez seja este o problema de nós, modernos, a incapacidade de nos espantarmos com as coisas presentes?
Sim, é isso. Em nome da ciência, é retirada do homem a sua capacidade de agir. Dá-se uma colonização do nosso mundo vital. Mas, voltando à pergunta anterior, duvidar de Deus significa duvidar da própria realidade. Não podemos nunca esquecer-nos de que afirmar alguma coisa como real significa afirmar essa realidade como verdade eterna.

Com a sua “ingenuidade”, o senhor reivindica a possibilidade de dizer o que está debaixo dos olhos de todos, a evidência do real. Hoje, parece quase impossível. Chesterton dizia: «Tudo será negado, serão atiçados fogos para testemunhar que dois mais dois são quatro, serão desembainhadas espadas para demonstrar que as folhas são verdes no verão». Reconhece-se neste papel de defensor da experiência elementar do homem comum?
Mais uma vez, só lhe posso dar razão. Citou Chesterton. Eu gostaria de mencionar outra testemunha: Clive S. Lewis, com o seu livrinho A abolição do homem, que foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial e que Hans Urs von Balthasar traduziu para o alemão. Também sobre isso escreveu Joseph Ratzinger, referindo que o problema dos tempos modernos apontado como perigo mortal por Lewis, ou seja, o problema moral da nossa época, está em nos termos afastado daquela evidência originária de que se falou. Dizia Lewis, já em 1943, usando a imagem do velho pato com o mágico: «Dá-me a tua alma, e receberás em troca poder. Mas uma vez que tivermos cedido a alma, ou seja, nós mesmos, o poder que recebermos em troca já não nos pertencerá... O homem pode conceber-se a si mesmo como mero “objeto natural”... A objeção pertinente é esta: o homem que quer conceber-se como material bruto torna-se material bruto».

O homem quer conhecer a realidade, tem a exigência da verdade. O cientificismo contemporâneo (com suas aplicações sociais e políticas) quer dominá-la para usá-la. Esse poder, diz o senhor, estende-se também ao homem. Como é que, na época que exalta os seus direitos, o homem acaba por ser um objeto programável, descartável, e à completa mercê do poder dos outros homens?
Vivemos, em certo sentido, num mundo esquizofrênico. Por um lado, a liberdade humana deveria emancipar-se de qualquer pressuposto natural. E os que pedem isso são muitas vezes os mesmos que propunham uma imagem extraordinariamente elevada de dignidade humana e de liberdade. Mas apenas um segundo depois, explicam que o homem não é de fato livre e que as suas ações são processos causais privados de sentido e guiados pelo cérebro. A civilização moderna está aprisionada numa dialética de naturalismo e espiritualismo.

O senhor diz que, sem um fim, o fenômeno da vida humana não pode ser conhecido; a busca das causas explica apenas metade do real. O homem percebe que não pode viver sem um objetivo, sem um sentido, e então ele é quem decide qual é. Para o senhor, pelo contrário, o fim é intrínseco, há uma natureza a reconhecer. Como explicá-lo, por exemplo, a quem defende a teoria de gênero e afirma que a pessoa escolhe sua identidade sexual?
Viver, diz Aristóteles, é «o ser dos viventes», não é uma qualidade determinada. O homem morto não é um homem que perdeu uma qualidade, mas com ele desapareceu do mundo o sujeito com possíveis qualidades. O ser do vivente é um processo contínuo de assimilação. Quando este cessa, cessa o ser do organismo vivo e começa o processo privado de sentido da corrupção. Mas não existe a “vida” enquanto tal. Cada ser vivo pertence a uma espécie e a sua tendência para a sua própria conservação é a tendência para a conservação dessa espécie. «Cada um conforme a sua espécie», diz-se na história da criação no Livro do Gêneses. A fome, a sede, a atracão pelo outro sexo têm esta finalidade. O homem supera a finalidade da conservação graças à autotranscendência que lhe é própria na dupla forma do conhecimento e do amor. Dizem-nos que devemos escolher o nosso gênero sexual. Livre escolha, responsabilidade, culpa, virtude, punição, perdão, etc. são por isso apenas ficções. Mas a nossa vida social apoia-se nessas ficções. Para esta mentalidade, falar racionalmente das verdades racionais é, precisamente, uma ficção, a cobertura de lutas de poder. Em suma, o nosso verdadeiro desejo não seria conhecer-nos a nós mesmos e à realidade, mas apenas um desejo de poder.

Nietsche já dizia isso...
Sim, mas parece-me ser mais conhecedor do homem Bento XVI, que proclamou um ano da Fé que é também um ano da razão. Hoje, quem tem fé é que defende a capacidade da razão. Se encontramos alguém que afirma com firmeza a capacidade da razão de alcançar a verdade, então podemos ter quase a certeza de que se trata de um católico. Repito, a razão precisa de Deus e da fé, porque onde Deus é negado, no final também a razão é negada.

(texto publicado na Revista Passos n. 146, Março 2013)