Monreale. A salvação e os mosaicos de Marcelo.
Dois anos de trabalho entre as naves da catedral siciliana, para transformar a decoração em notas no pentagrama. O resultado? A beleza do concerto de Marcelo Cesena, chamado Domus Dei et Ianua Coeli, realizado em dezembro dentro da basílicaPor quase dois mil anos aconteceram na catedral de Monreale ritos e cerimônias de todos os tipos, pelas suas naves passaram clérigos e leigos de muitos países e de muitas religiões, mas nunca tinha acontecido um músico colocar-se à prova consigo mesmo num concerto para piano, fruto das sensações produzidas pelo impacto com os mosaicos. Foi isso o que aconteceu poucos dias antes do Natal, graças a Marcelo Cesena, músico e compositor brasileiro, conhecido na Itália e no exterior, que executou a première mundial das quinze músicas inéditas compostas especialmente para esta ocasião.
Marcelo Cesena nasceu em São Paulo, viveu por muitos anos nos Estados Unidos e nos últimos anos tem passado muito tempo na Itália. Assim ele nos conta o começo desta aventura: «Tempos atrás eu tive a oportunidade de apreciar os mosaicos de Monreale. No entanto, no outono de 2016 eu tive a ocasião de vê-los ilustrados na explicação do pároco da catedral, padre Nicola Gaglio, e pude passar mais tempo com o arcebispo, Dom Michele Pennisi. O primeiro me apresentou o significado não somente artístico, mas religioso e eclesiástico do templo e das cenas bíblicas representadas. O segundo me fez a proposta de compor músicas que cantassem a glória de Deus representada na igreja».
Depois daquele dia se passaram dois anos de um trabalho intenso de composição em que Cesena viu e reviu diversas vezes livros e vídeos sobre a basílica de Monreale. Além disso, ele deu início a um trabalho de identificação empática com o lugar, sem saber ainda o que este produziria em sua alma. Desenvolveu-se no decorrer daqueles meses um diálogo artístico e cultural com padre Gaglio, e Marcelo passou na basílica o maior tempo possível e participou das cerimônias litúrgicas diárias. Uma noite o pianista até pediu para ficar algumas horas sozinho após o fechamento da catedral para poder ter um diálogo mais direto e íntimo com a história da Salvação representada nos mosaicos.
O que estava em jogo não era somente a sua capacidade artística e criativa, mas o diálogo com uma das formas humanas mais elevadas de “beleza”. O teólogo Von Balthasar, por exemplo, abriu a sua obra intitulada Glória com estas sugestivas expressões: «Nossa palavra inicial chama-se beleza. Beleza é também a última palavra que o intelecto pensante ousa dizer, porque ela coroa, qual auréola de inapreensível esplendor, o duplo astro de verdade e de bem numa relação inseparável».
A catedral de Monreale, com sua beleza, consegue causar tudo isso, até mesmo em Cesena, que na sua música traduziu o conteúdo daquela provocação. «A visita decisiva à catedral de Monreale aconteceu por ocasião da conclusão do Ano da Misericórdia», lembra-se o compositor. «Fiquei impressionado com a foto que mostrava o arcebispo abrindo a porta da basílica, a grande porta de bronze de Bonanno de Pisa, de 1186, que possui quarenta formas de bronze em relevo ilustrando episódios do Antigo e do Novo Testamento. Pedi para vê-la e olhando de perto eu entendi imediatamente que eu precisava começar por ali, pela porta. Não só porque esta é a via de acesso à basílica, mas porque é ela que conduz ao Paraíso. Assim, logo eu compus a primeira música, Ianua coeli, e imediatamente entendi que era necessário uma composição que falasse a respeito da Criação: por isso a segunda música se chama In principio.
Nas músicas subsequentes, Cesena descreve as imagens mais importantes e decisivas da Bíblia: a criação, Adão e Eva, o pecado original, o dilúvio universal, a torre de Babel, o sacrifício de Abraão... até chegar à encarnação, morte e ressurreição do Senhor. Mas precisava de uma “conclusão”... Qual? «Eu sempre fui atraído pela face do Cristo Pantocrator; quanto mais o olhava, mais eu me perguntava: “O que quer me dizer? O que está me solicitando?” Aproximava-se a data do concerto, mas eu não tinha ainda conseguido expressar aquilo que eu sentia dentro de mim. Pedi para ficar no templo durante o fechamento no período da tarde. Olhando e orando me vieram à mente duas palavras: “paternidade” e “ternura”. Era a indicação que eu procurava: encontrar o Pai através da ternura que Ele mostra aos Seus filhos. A história da Salvação interceptava desse modo modo a minha história pessoal, na qual o Senhor mostrou a sua benevolência para comigo através da Sua paternidade e ternura. Eu trabalhei quase vinte horas para chegar à última música do concerto, um hino de louvor e de agradecimento de minha parte por toda a história que naquelas naves está representada».
Cesena acrescenta que nestes dois anos ele foi ajudado pelas reflexões sobre uma parte de um discurso que Bento XVI proferiu dirigindo-se aos artistas em novembro de 2009: «Uma função essencial da verdadeira beleza, de fato, já evidenciada por Platão, consiste em comunicar ao homem um saudável “choque”, que o faz sair de si mesmo, que o arranca da resignação, da conveniência cotidiana, que o faz sofrer, como uma flecha que o fere, que precisamente deste modo o “desperta” abrindo-lhe novamente os olhos do coração e da mente, dando-lhe asas, lançando-o para o alto». E assim foi, comenta Marcelo: «Não fiquei somente impressionado, mas tocado pela beleza daquele lugar, e mesmo me debatendo para encontrar as notas justas para escrever no pentagrama, eu aceitei este desafio mais pelo que acrescentava à minha vida do que pelo trabalho em si».
O público numeroso, acolhido numa catedral iluminada de modo especial para esta ocasião, participou não só como espectador num acontecimento que através da música e de imagens apelou aos sentimentos mais profundos do coração de cada um. Logo após as dolorosas primeiras notas do piano e o imediatismo das imagens tridimensionais projetadas em dois telões, a beleza se impôs com toda a sua atratividade, remetendo a outra Beleza: a que faz referência ao Deus Absoluto que se encarna na história do homem e que naquele lugar é narrada através de homens que o querem louvar. Meses de trabalho e mais de vinte pessoas envolvidas na gestão da noite permitiram assistir a um concerto único e inesquecível.
Como disse o arcebispo Pennisi: «O concerto, ao se aproximar do Natal, pode ajudar todos a se lembrarem na própria vida do significado da encarnação do Filho de Deus, que mudou o curso da história e revelou a dignidade de cada homem e de cada mulher criados a imagem e semelhança de Deus e que pela graça se tornaram “filhos no Filho”». «A beleza liga as gerações presentes e passadas”», foi o comentário do pároco, padre Gaglio. «Nós somos chamados a proteger e preservar esta Igreja para as gerações futuras.» Este é, no fundo, também o compromisso de cada um na própria vida.