Ticiano e a densidade do instante
Uma das cinco obras que o pintor veneziano dedicou ao “sim” de Maria, e que o Museu Diocesano de Milão escolheu pare este AdventoExistem poucos artistas do passado tão “modernos” como Ticiano. Moderno por sua grande liberdade pictórica. E moderno por sua maneira tão pessoal de abordar os temas que lhe encomendavam. É o caso, por exemplo, da Anunciação, que Ticiano enfrentou cinco vezes ao longo de sua vida. À medida que sua idade avançava, suas obras tornavam-se mais empáticas e, ao mesmo tempo, radicais.
A Anunciação, que o Museu Diocesano de Milão escolheu como uma das imagens deste Advento, é a penúltima que Ticiano pintou. Ela foi realizada por volta de 1560, quando o artista já tinha ultrapassado os setenta anos, para a capela que o banqueiro e comerciante de seda Cosimo Pinelli mandou construir na igreja de Santo Domingo Maior em Nápoles. Foi seu filho Giovan Vicenzo quem realizou o desejo que seu pai expressou em seu testamento. Ao se mudar para Pádua para estudar Direito, ele conseguiu entrar em contato com o grande Ticiano para encomendar o quadro do altar da capela dedicada à Virgem anunciada. Atualmente esta obra está no Museu de Capodimonte em Nápoles.
O que chegou a Nápoles, enviado de seu estúdio veneziano, era um quadro “novíssimo”. Não se trata de um ambiente fechado e doméstico no qual os artistas tradicionalmente ambientam a Anunciação. Ticiano dilata enormemente os espaços, que se tornam espaços cósmicos, como que sublinhando que esse “sim” que a Virgem vai pronunciar é um “sim” que envolve toda a criação. O arcanjo Gabriel irrompe pela esquerda com graça, mas também com muita energia. Do outro lado, Maria se vira, separando-se do atril. Ela mantém os braços cruzados sobre o peito, em sinal de saudação mas também de disposição para ouvir a mensagem que Gabriel lhe traz. É o momento em que os antigos pregadores identificavam como a conturbatione e humiliatione da Virgem. Acima, a pomba do Espírito Santo abre caminho entre as nuvens, que se abrem por uma espécie de anjos num clima de grande emoção, de «inquietação nos céus», como escreveu Roberto Longhi, o grande historiador de arte que reconheceu a mão de Ticiano nesta obra, que durante muito tempo foi considerada uma cópia do original.
A inovação mais radical de Ticiano, no entanto, está na grande coluna clássica que se eleva atrás de Maria. Na iconografia da Anunciação, a coluna situada entre a Virgem e o anjo simbolizava a chegada da encarnação de Cristo. Nas numerosas versões pintadas por Fra Angelico, este elemento é uma constante. Ticiano reinterpreta com grande liberdade essa tradição, e transforma a coluna em um elemento grandioso que se eleva em direção às nuvens, dando a impressão de ligar a terra ao céu. A coluna se torna sinal da irrupção de Deus que nesse instante se fez carne.
Quando chegou a Nápoles, o quadro foi recebido com desconcerto em razão de sua novidade. Tanto que em 25 de março de 1562, dia da Anunciação, após a celebração da missa, houve uma disputa entre Scipione Ammirato, um jovem literato que se opunha à obra, e Bartolomeo Maranta, encarregado de defendê-la em nome de um comitê. O discurso de Maranta chegou até nós e representa um documento de grande interesse sobre a vida cultural da Nápoles de então.
Por último, há outro elemento decisivo na Anunciação de Ticiano, que é a luz. Há uma luz natural de tempestade que chega pela esquerda e outra, em contrapartida, inesperada que desce do alto rompendo a camada de nuvens. Com esta decisão, Ticiano consegue devolver toda a densidade e intensidade a esse instante, que não era a realização de um roteiro já escrito, mas a ocasião de se pôr na pele de Maria, com sua mesma liberdade.