Galadriel na série "O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder" (Foto: Amazon Prime Video - divulgação)

Os Anéis do Poder. Primeiro impacto

A série inspirada no universo de Tolkien já se tornou, em menos de um mês, a mais popular do mundo. Aqui, as primeiras impressões de uma amante da obra, que faz uma leitura crítica buscando «um bem que se desvela em qualquer um sem distinção»
Luana Maíra Rufino Alves da Silva

Prezados amigos, o objetivo desta matéria é identificar e explicar alguns elementos da obra do professor J.R.R. Tolkien para que todos possam acompanhar, entender e tirar suas próprias conclusões acerca da mais nova série inspirada no legendário de Tolkien: O Senhor dos Anéis - Os Anéis do Poder.

Para os fãs que leram Silmarillion, já identificaram que a abertura da série traz em si o movimento das areias sobre uma caixa de som preta que forma as imagens dos anéis no final. Isso reflete o início da criação quando o criador Ilúvatar (Eru) propõe aos Ainur (espécie de anjos) um tema de música: a criação da Ainulindalë (A Sinfonia Maravilhosa). Portanto, ponto positivo pela inteligente abertura da série que de forma simples, através da cinemática, mostra como o movimento das ondas sonoras modificam e transformam a matéria (areia) expressando como a Grande Música (Ainulindalë) criou o mundo de Arda (Eä) a partir da inspiração e liberdade dos Valar (Ainur que desceram à Eä). É o mistério da relação entre o indivíduo e a coletividade que emerge como tema fundamental: “a unidade”. A polifonia da criação se refere a este belo mito que abre o Silmarillion, para o qual existem muitas vozes diferentes, mas que cantam juntos em uma única música comum.

Outro impacto positivo é a inicial frase de abertura da série, em seu primeiro episódio, dita por Galadriel: «Nada é mau em sua origem. E, houve um tempo, em que o mundo era tão jovem que o alvorecer nem existia. Ainda assim, havia luz».

Essa primeira frase de abertura da série contada por Galadriel traz em si uma característica profunda do pensamento de Tolkien de que, em sua origem ou em seu início – seja da criação do mundo de Eä, ou dos seres que nela irão habitar, ou do início de sua missão – tudo é bom, toda criação foi feita para um bem. No entanto, o afastamento dessa origem permite a entrada do mal na criação, assim como a sua corrupção que será tão bem desenvolvida no legendário de Tolkien.

Com isso, a geração, a criação, qualquer coisa que tenha realidade, qualquer coisa que tenha vida, qualquer coisa que tenha consistência de ser é algo que vem no fundo do próprio Ilúvatar (Eru). O mal não cria nada, o mal apenas distorce, ele é uma dissonância, uma parcialidade que não considera a realidade em todos os seus fatores. Como pode ser visto nos orques que não são criaturas iniciais dos Valar, mas são a corrupção dos elfos, são algo corrompido. Isso nos traz o desdobramento de que qualquer esforço criativo que um ser de Eä faça só pode ser bom e positivo de onde Ele vier. Isso é profundamente moderno em Tolkien: o verdadeiro poder de Eru, na sua proposta de criação, não consiste em gerar a si mesmo e ponto final, mas em integrar o que são os esforços de todos seus subcriadores (desde os Ainur a todos os povos de Eä) em seu desígnio pessoal.

Portanto, é uma verdadeira posição diante do imaginário de Tolkien, e também uma forma de olhar a diversidade do outro, não é uma atitude de combate, de batalha ou de violência com agressividade, mas de valorização, de integração e de aprofundamento. Assim, em qualquer ser que se esforça para criar algo de belo em Eä, existe Eru por trás de sua Grande Música.

Com efeito, esse fundamento extraordinariamente moderno de Tolkien mostra como personagens profundamente diferentes, fisicamente, culturalmente e com ideais totalmente distintos são capazes de se unir em busca de um bem comum. Essa Missão compartilhada entre tantos diferentes povos e que ultrapassa a rivalidade intensa entre eles mostra que, entre brigas, traições e fracassos, existe um bem que se desvela em qualquer um sem distinção. Em todo ser que respira, de diferentes povos, pode surgir qualquer coisa que o faça criar algo de belo no mundo.

Por essa razão, achei muito positivo a série inovar nisso e, particularmente, gostei muito de ver mais diversidade nas características físicas desses povos – com elfos, anões e homens negros – porque nos ajuda a entender melhor esse ensinamento do Professor Tolkien acerca da diversidade. O relacionamento com a diversidade – e com a diferença do outro – é um dos grandes temas abordados no seu legendário. E, nesse sentido, Tolkien nos diz que a diversidade é um dos maiores sinais do amor livre e profundo que Ilúvatar tem por sua criação, a aceitação do outro. É um ato de pura aceitação da liberdade e da diferença da criação. Assim, Tolkien mostra que, para realmente descobrir a missão que foi dada à Eä é preciso uma abertura a todos, sem distinção.

Com isso, outro aspecto interessante da Série é ver como vários novos personagens são revelados aos poucos e simultaneamente, bem característico da narrativa do professor J.R.R. Tolkien, que a partir de um enredo comum desdobra seus personagens em missões (demandas) próprias e livres. Justamente pela liberdade e autonomia desses personagens novos elos vão surgindo e se multiplicando, como na árvore dos Valar, apresentada nas cenas de abertura com as suas várias ramificações, porém ligada a um único tronco. Isso, além de aumentar a complexidade da obra, apresenta também como várias histórias pessoais aparentemente desconexas e aleatórias no fundo possuem uma origem comum. E o desencadear da história revela não só uma potência criadora em cada personagem, mas a integração dos vários esforços e personalidades individuais em um destino único, aparentemente inimaginável e impossível.
Agora, partindo para o ponto mais controverso, que gerou muita polêmica no primeiro episódio da série: a construção do arco de Galadriel. Inicialmente, vamos ver o que o próprio Tolkien falou sobre a personalidade dela:

«Galadriel era a maior dos Noldor, a não ser talvez por Fëanor, se bem que fosse mais sábia que ele, e sua sabedoria aumentava com os longos anos».
«Seu nome materno era Nerwen (“donzela-homem”), e ela atingiu uma altura além da medida até mesmo das mulheres dos Noldor; era forte de corpo, mente e vontade, rivalizando tanto com os sábios como com os atletas dos Eldar
«Era orgulhosa, forte e voluntariosa.»
«Galadriel nasceu na bem-aventurança de Valinor, mas não passou muito tempo, pela contagem do Reino Abençoado, até que esta minguasse; e daquele ponto em diante ela não teve paz interior.»
«Habitava nela o nobre e generoso espírito dos Vanyar, bem como uma reverência pelos Valar que não podia esquecer (…) tinha um maravilhoso dom de penetrar na mente alheia.»
«Galadriel, a maior dos Eldar que sobreviviam na Terra-média, tinha sua principal potência na sabedoria e na bondade, como diretora ou conselheira no combate, inconquistável na resistência
«Galadriel tinha nesse ponto mais perspicácia que Celeborn, e ela percebeu desde logo que a Terra-média não podia ser salva do “resíduo do mal” que Morgoth deixara para trás, a não ser por uma união de todos os povos que à sua maneira e em sua medida se opunham a ele. Também enxergava os Anãos com olhos de comandante, vendo neles os melhores guerreiros para serem enviados contra os Orques.»

[J.R.R. Tolkien, Contos Inacabados]

«Galadriel, a única mulher dos Noldor a se postar naquele dia, alta e valente entre os príncipes em contenda, estava ávida por partir.»
«Rainha era ela dos Elfos das matas, esposa de Celeborn de Doriath, mas ela mesma vinha dos Noldor e recordava o Dia antes dos dias em Valinor, e era a mais poderosa e a mais bela de todos os Elfos que permaneciam na Terra-média.»

[J.R.R. Tolkien, O Silmarillion]

A partir desses escritos de Tolkien, podemos entender que a Galadriel apresentada na série, presente nas primeiras Eras, é bem diferente daquela mais experiente e mais sábia que muitos estão familiarizados nos livros (ou filmes) do Senhor dos Anéis. Com isso, ao que parece, a série vai explorar esse percurso de maturidade de Galadriel que, como Tolkien escreve, era uma elfa orgulhosa, forte, voluntariosa e combatente.

Tendo em vista essas características de Galadriel, ao que o próprio Christopher Tolkien admite as lacunas contida em sua história, a série cria uma razão para a partida de Galadriel à Terra-média motivada pela vingança da morte de seu irmão. Essa Galadriel mais rebelde com sede de vingança contra Sauron, apesar de diferente do que estamos habituados, não contradiz os escritos do professor, como podemos ver:

«Assim aconteceu que, quando se desvaneceu a luz de Valinor, para sempre, como pensavam os Noldor, Galadriel se uniu à rebelião contra os Valar que os mandava ficar; e, uma vez que pôs os pés nesse caminho, não quis voltar atrás e rejeitou a última mensagem dos Valar, incorrendo, assim, na Sentença de Mandos.»
«Seu orgulho recusava-se a permitir que retornasse derrotada, suplicante por perdão; agora, porém, ela ardia com o desejo de seguir Fëanor, irada, a quaisquer terras às quais ele chegasse e de frustrá-lo de todas as maneiras que pudesse.»
«O orgulho ainda a movia quando, ao final dos Dias Antigos, após a última derrocada de Morgoth, ela recusou o perdão dos Valar para todos os que haviam combatido, e permaneceu na Terra-média.»
«Somente depois de se passarem mais duas longas eras, quando finalmente tudo o que desejara na juventude lhe chegou às mãos, o Anel do Poder e o domínio da Terra-média com o qual sonhara, foi que sua sabedoria se tornou plena e ela tudo rejeitou. E, ao passar por esse último teste, partiu para sempre da Terra-média.»
«Galadriel, nos esforços para neutralizar as maquinações de Sauron, teve sucesso em Lórinand».
«Em Eregion, Sauron fez-se passar por emissário dos Valar, enviado por eles à Terra-Média (…) percebeu imediatamente que Galadriel seria sua principal adversária e obstáculo e, portanto, esforçou-se por aplacá-la, suportando o desprezo dela com aparente paciência e cortesia.»
«Em Lórinand, Galadriel assumiu o poder e defesa contra Sauron

[J.R.R. Tolkien, Contos Inacabados]

«Perto, replicou Galadriel, salvo que não fomos expulsos, mas viemos por nossa própria vontade e contra aquela dos Valar. E através de grande perigo e à revelia dos Valar com este propósito viemos: para obter vingança de Morgoth e recuperar o que ele roubou.»
[J.R.R. Tolkien, O Silmarillion]

Nesse sentido, o que podemos esperar da série daqui para frente a respeito da inauguração desse novo arco para Galadriel é seu caminho de maturidade. Podemos entender isso também no belíssimo diálogo de Galadriel e seu irmão Finrod apresentado na série: «Sabe por que o barco flutua e a pedra não? Porque a pedra só olha para baixo, a escuridão da água é imensa e irresistível, o barco também percebe a escuridão que tenta a todo momento dominá-lo e afundá-lo. Mas o barco tem um segredo, seu olhar é para o alto, e não para baixo, é fixo na luz que o guia e promete maravilhas que a escuridão desconhece». Como resposta ao seu irmão nesse diálogo, ela replica que as vezes o reflexo da luz da água é tão brilhante quanto a luz do céu, ao que seu irmão responde: «Tem vezes que não podemos saber até termos tocado a escuridão».

Dessa forma, podemos entender a decisão de Galadriel aqui como um percurso de alguém que tem que entender o que é a escuridão e ir até o subterrâneo de si para se voltar à luz, ou seja, um verdadeiro caminho de redenção. Isto é, para voltar à Beleza da origem ela irá fazer o percurso inverso, tocando até o fundo da escuridão que possui dentro de si.
Cresce a certeza dentro de Galadriel de que seu coração tem um desejo (uma missão), e ela é tão fiel a isso que chega ao ponto da renúncia que é o esplendor de habitar Valinor, na série marcada por sua decisão de pular do barco ao final do primeiro episódio. Segundo Christopher Tolkien:

«O que é mais notável (…) é a afirmativa explícita de que Galadriel recusou o perdão dos Valar ao final da Primeira Era».
«Galadriel, agora desesperançada de Valinor (…) velejou pelas trevas sem esperar pela permissão de Manwë (Ainur), que naquela hora sem dúvida lhe teria sido negada, por muito que seu desejo fosse legítimo em si. Dessa forma foi incluída na interdição de todas as partidas, e Valinor fechou-se ao seu retorno.»
«O fato de Galadriel permanecer na Terra-média após a derrota de Sauron em Eriador é atribuído ao seu julgamento de ser seu dever não partir enquanto ele ainda não estivesse derrotado de forma definitiva.»
«Galadriel percebeu desde logo que a Terra Média não podia ser salva do resíduo do mal que Morgoth deixara para trás, a não ser por uma união de todos os povos que à sua maneira e em sua medida se opunham a ele. Também enxergava os Anãos com olhos de comandante, vendo neles os melhores guerreiros para serem enviados contra os Orques.»

[J.R.R. Tolkien, Contos Inacabados]

É nesse contexto, assim, que vemos algumas decisões tomadas por Galadriel e sua importância nessa história, arco que ocupou majoritariamente grande parte dos primeiros episódios. Ao mesmo tempo que essa história se desenvolve, na Terra Média, um misterioso homem que cai de uma estrela perto de Nori, uma integrante dos Pés-peludos (hairfoot), antecedentes dos Hobbits:

Antes da travessia das montanhas, os Hobbits já se haviam dividido em três estirpes um tanto diversas: Pés-peludos, Grados e Cascalvas. Os pés-peludos eram mais escuros de pele, mais miúdos e mais baixos, eram imberbes e não calçavam botas. Eram a variedade mais normal e representativa dos Hobbits e, de longe, a mais numerosa. Eram os mais inclinados a se estabelecer em um só lugar e preservaram por mais tempo seu hábito ancestral de viver em túneis e tocas.
[J.R.R. Tolkien, “Prólogo”, O Senhor dos Anéis]

Esse homem apresentado na série, vindo de uma espécie de estrela cadente que cai em Arda, é percebido como o sinal de alguma coisa. Sabemos que os personagens estão no mesmo momento do tempo justamente porque todos olham para esse sinal que aparece no céu, sob a forma dessa estrela cadente. E o lugar “escolhido” para essa estrela cadente ficar é também um enigma, porque é justamente nesse pequeno povo. De todos os lugares, a estrela cai precisamente junto aos pequeninos caminhantes, um pequeno povo em percurso.

Nori, quem encontra o homem misterioso pela primeira vez, intui que esse encontro não foi ocasional e diz à Poppy: «Eu me sinto responsável por ele. Isso é diferente, ele poderia ter caído em qualquer lugar, mas caiu aqui. Sei que vai achar estranho, mas eu sei que de alguma forma ele é importante. Há um motivo para isso ter acontecido e eu fui escolhida para encontrá-lo. Eu. E não posso ignorar isso».

Há muitas teorias acerca de quem é esse homem misterioso, o próprio Gandalf como já conhecemos, ou outro Istari que tomou forma corpórea enviado pelos Valar para ajudar na missão em Arda. Sobre isso, vou ressaltar alguns pontos. Primeiro, Gandalf que era a personificação da Graça, como disse Tolkien em uma de suas cartas, era o portador do fogo secreto dos Valar: um fogo que não consome, mas que se eleva.

Logo, diferente de Sauron cujo fogo destrói, o fogo secreto é escondido, e por ser um fogo sagrado ele não queima ou machuca quem o toca. Nesse sentido, vemos que Nori, quando toca o fogo no qual o homem está envolto, não se queima. Também o homem grita para Nori «màna úrë», que significa “fogo sagrado”.

O poder, o tamanho e a velhice desse homem misterioso é contrastado com a simplicidade, a pequenez e a juventude de Nori. No entanto, esse homem se faz precisar da ajuda justamente dessa personagem miúda, que mesmo pequena e sem poderes, sente-se responsável por ele de alguma forma. Nori, sem compreender ainda, se sente impelida a ir ao fundo de uma jornada individual dentro um caminho com ele, um percurso e não a realização de um projeto, mas sim o “revelar-se” de algo profundamente vivo e escondido no seu pequeno povo, uma arma desconhecida e secreta.
Outro indício de que se pode se tratar de Gandalf é seu nome pelos elfos Mithrandir, que significa “Peregrino/Andarilho Cinzento”, podendo ser uma referência ao motivo pelo qual ele se tornou andarilho desde que chegou à Eä. O interessante foi ver na série como foi uma surpresa para Nori, mas também para ele, o fato de se encontrarem justamente ali. Seria intencional dos Valar?! Isso iremos descobrir no caminho dessa pequena/grande bela amizade!

E por falar em amizade e beleza, ponto alto para o relacionamento cheio de cobrança e ferocidade, mas ao mesmo tempo cheio de ternura e afeição entre Elrond e Durin! Apesar de não ser retratado nos livros, Tolkien coloca que na Segunda Era, o relacionamento entre esses povos diferentes era de mais amizade do que vemos na Terceira Era. Com isso, acompanhamos mais uma vez essa união inusitada e divertida entre um Elfo e um Anão.

Por fim, o que mais pudemos observar até agora, entre os diversos e contraditórios comentários sobre a série, é o fato de como a série contém Beleza. Como o elfo Arondir disse «A Beleza tem o poder de curar a alma». Considero esse pensamento profundamente ligado ao Professor Tolkien que, em uma de suas cartas a seu estudante sobre o livro do Senhor dos Anéis diz «Fico muito feliz que você tenha gostado porque o ponto de partida do livro é a Beleza. Escrevi esta obra para ser bela e apreciada». E precisamente por sua gratuidade – que é a cifra da forma de ação de Eru – que se pode surgir algo de verdadeiro nela. Assim, para Tolkien, a abordagem mais verdadeira é a atraída pela Beleza, com a coragem de ficar impressionado pela Beleza, não apenas com o que é reconfortante ou já entendido. Isso porque, para qualquer obra da imaginação humana, se é feita com pureza e humildade, será doada, a realidade será dada a ela, é um dom que surge espontaneamente da liberdade desses novos personagens na criação. Como diz o professor Tolkien: «Assim, exatamente como Eru falou, uma Beleza ainda não concebida irá chegar à Eä, e ainda terá sido bom que o mal tenha existido».