No meio dos seus
Jesus irrompe no local fechado, vencendo o medo dos apóstolos: assim Duccio di Buoninsegna retrata o Ressuscitado. Da “Maestà” da Catedral de Sena, o Cartaz de Páscoa de CLNo dia 9 de outubro de 1308, a Obra da Catedral de Sena incumbiu Duccio di Buoninsegna de realizar o retábulo para o altar-mor da catedral, conhecido como a Maestà (majestade, em italiano). Mais antigamente, o termo designava a representação de Cristo no trono (Maiestas Domini), mas no século XIII a intensificação da devoção mariana fez a Nossa Senhora com o Menino subir às honras do trono real. O contrato que a Obra propusera a Duccio era bastante restritivo: o pagamento era previsto como salário e não em função do valor da obra, os materiais seriam pagos diretamente pela fábrica, o pintor não poderia assumir outros compromissos até a entrega definitiva do retábulo. Eram exigências usuais para os contratos com os artistas, mas aqui se percebe o eco dos desentendimentos com Giovanni Pisano, o maior escultor da época, que apenas dez anos antes deixara repentinamente o canteiro de obras da fachada por supostos atrasos e inadimplências. Melhor proteger-se, visto que estavam prestes a dar forma ao coração pulsante da catedral e da cidade.
Duccio tinha aproximadamente 60 anos. Anos carregados de experiência e de fama, vividos na tradição bizantina, mas com o olhar sempre atento e receptivo aos protagonistas de seu tempo: primeiro Cimabue, com quem teve um diálogo mais estreito e duradouro, e depois Giotto. Este último desmontara recentemente os andaimes paduanos da Capela dos Scrovegni, onde expusera uma narrativa visual capaz de revolucionar, não só em pintura, as formas de memória e de identificação no acontecimento cristão. Também o retábulo da catedral senense previa, como complemento da Maestà, as histórias da Virgem e de Jesus: Duccio as pintaria ao estilo “senense”, inserindo nessa tradição, já muito pessoal a esta altura, todas as novidades recebidas de outros mestres e contextos. Era o que esperavam patrocinadores e concidadãos: reconhecer a própria história e a própria vocação no retábulo que iria destacar-se no centro da catedral.
Após três anos de trabalho, as expectativas foram plenamente atendidas. Em 9 de junho de 1311, toda Sena – liderada pelo bispo com as maiores autoridades do governo, seguido por todos os cidadãos e um grupo de crianças ao final – acompanhou o grande retábulo da oficina do artista até a catedral, passando pela praça central, com todas as lojas de portas fechadas por devoção. Uma devoção festiva, animada por “trombetas, pífaros e castanholas de tocadores locais”. O valor cívico da Maestà era declarado na inscrição que se lê na base do trono da Virgem: «Santa Mãe de Deus, seja razão de paz para Sena, seja vida para Duccio, porque assim te pintou».
A Maestà de Duccio, pintada em ambos os lados, tem dimensões incomuns: pouco menos de cinco metros de largura e altura, incluindo o acabamento dos pináculos. O lado voltado para o povo apresenta em grande escala a Virgem no trono com o Menino – a Maestà, justamente – acompanhada por uma «imponente e doce assembleia de anjos e santos» (Luciano Bellosi). Acima e abaixo, enquadram-na episódios da vida da Virgem. O lado voltado para o clero apresenta o relato evangélico, das Tentações ao Pentecostes, e se desdobra numa densa sequência de painéis ilustrados. No centro, maior, está a Crucifixão. Dois séculos após sua triunfal ascensão ao altar-mor, a Maestà deu lugar a outros adornos e foi colocada na parede, ainda na catedral. Seguiu-se uma história de deslocamentos e cortes, que dispersaram muitos painéis: alguns acabaram em museus do mundo todo, outros não mais localizados. O painel principal e outros menores permanecem em Sena e hoje estão expostos no Museu da Obra. Entre eles, a Aparição aos apóstolos a portas fechadas.
A Aparição ocupava o primeiro pináculo à esquerda do lado posterior. Uma colocação no topo e de abertura. Aqui começa a última sequência narrativa do retábulo que, ao longo de todo o acabamento, mantém como tema principal a relação entre Cristo e os apóstolos nos dias que vão da Ressurreição ao Pentecostes. Ou seja, a sequência de eventos em que a presença na terra do Ressuscitado está inseparavelmente ligada ao início da vida da Igreja. O começo dessa história encontra na Aparição uma particular solenidade icônica, de herança bizantina. Mas Duccio consegue ainda combinar o registro simbólico com o narrativo, de modo que Mistério e realidade se encontram numa infinidade de nuances surpreendentes. Segundo o Evangelho de João, no final do dia da Ressurreição, Cristo apareceu aos apóstolos num lugar – tradicionalmente identificado como o cenáculo – mantido a portas fechadas «por medo dos judeus».
A pintura segue com precisão o ditado evangélico: «Jesus veio e parou no meio deles». O andar de Cristo, imediatamente suspenso, é capturado no leve avanço da perna direita, que move o manto e encurta o apoio dos pés. A figura se ergue frontal, envolta em densas iluminações douradas traçadas com a ponta do pincel sobre o vermelho e o azul das vestes, de modo que a luz da Ressurreição possa brilhar sobre o sangue e a água que brotaram do lado de Cristo. A relação compositiva entre o Ressuscitado e a porta fechada às suas costas é o eixo central no qual se enraíza o desenvolvimento simbólico e narrativo do episódio. Não é a porta de um edifício qualquer, nem a do cenáculo retratado nas cenas anteriores. É a porta de um templo, quase um arco triunfal, com superfícies marmóreas e refinados detalhes clássicos, que se estende aos lados em dois corpos avançados, também com portas fechadas. Sobre eles se apoiam os destaques de uma cobertura de madeira cujo topo, infelizmente, se perdeu.
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É evidente, no entanto, que o lugar da Aparição não é uma sala fechada, onde os apóstolos se refugiaram por um medo que podemos assimilar à «sensação de derrota» da qual fala o Papa Francisco. É uma construção nova, que deixa para trás aquelas portas fechadas, que pesam como «a pedra dos sepulcros onde muitas vezes encerramos a esperança». É o templo novo que se abre diante de nós «porque Cristo ressuscitou e mudou a direção da história». Dois séculos antes, Suger, abade de Saint Denis, escreveu que a porta da catedral é símbolo de Cristo, porque Cristo é a verdadeira porta: Christus ianua vera. Duccio reitera o mesmo conceito, transformando um local paralisado pelo medo num templo que se projeta no novo curso da história. Cristo «ressurgindo investiu a história irresistivelmente, atraindo a Si pessoas, cuja unidade constitui Seu Corpo, Corpo misterioso, ou povo de Deus» (Dom Giussani).
É o início da Igreja. E é isso que Duccio descreve, passando do registro simbólico da arquitetura de fundo para o narrativo das figuras em primeiro plano. Jesus vem “no meio” dos seus, que se inclinam todos para Ele, irresistivelmente atraídos por sua presença inesperada. Uma presença que, no esplendor divino da Ressurreição, continua sendo incrivelmente humana. Jesus não mantém o olhar fixo à frente, numa dimensão transcendente. Ele imediatamente procura seus discípulos, virando os olhos para o grupo à sua esquerda, onde se reconhece João, o jovem amado. Até o corpo parece mover-se levemente na mesma direção, libertando-se da rigidez central da porta atrás de si. A partir desses mínimos sinais, os apóstolos reconhecem que é Ele, vivo, com seu corpo, ainda marcado pelas feridas da cruz.
Esse grupo se mantém mais distante, como suspenso pela intensidade do olhar que os interpela. Os apóstolos à esquerda, com Pedro espelhado a João, parecem menos intimidados – o Mestre está olhando para os outros – e mais decididos em se aproximar de Cristo. Podemos imaginar a desordem e a confusão que, apenas alguns instantes antes, dominavam esse grupo de homens subjugados pelo medo e pelo desânimo. Ao aparecer para eles, Cristo trouxe ordem, clareza e uma renovada atração surpreendente. Duccio a representa, animando com discretos gestos de vibrante humanidade a presença icônica do Ressuscitado no centro da congregação apostólica e no fundo do novo templo. A figura da paz que Cristo anuncia aos seus e que Sena pede à sua Majestade.