A criança de Millet e a arte de cuidar
O que a arte pode ensinar aos jovens médicos? Um curso baseado em imagens, música, filmes e testemunhos propõe uma abordagem que não costuma ser estudada nos cursos da área de saúde: o doente como pessoaMuitos conhecem o pintor Jean-François Millet pelo quadro do Ângelus, apenas alguns por sua produção de desenhos, muito mais potentes que sua obra pictórica. Em seu Estudo para a criança doente – esboço prévio a um quadro intitulado A criança doente (L’enfant malade), conservado, mas não exposto no Museu do Louvre – o artista mostra um abraço, um gesto familiar que se torna solene, sagrado, quase épico. A comovente discrição com que retrata a doença mal aparece no olhar da mãe e no peso da cabeça da menina, que se destaca pelo contorno de uma sombra escura, dando lugar sem pietismo ou maneirismo sentimental a uma consciência: «Em um dado momento e em um determinado lugar, cada coisa alcança sua verdade».
Em um gesto comum de qualquer mãe, que pode se tornar um ícone atemporal, «o olhar do artista nos oferece a única forma de acompanhar o doente. Só quem colaborou para dar vida sabe suportar também o cansaço e o sacrifício que marcam irremediavelmente o destino de cada homem», como diz Laura Polo d’Ambrosio no livro Curare e guarire. Occhio artistico e occhio clinico (Cuidar e curar. Olho artístico e olho clínico). «Amar é dizer “você não morrerá”», como dizia o ensaísta espanhol George Santayana. É afirmar o significado da vida além de qualquer limite, superando qualquer derrota ou percepção de inutilidade. Consolar (quase um paradoxo porque significa “estar com quem está só”, anulando assim a solidão) é a resposta comovida à compaixão, origem de qualquer gesto de cuidado. Compaixão e comoção são duas dimensões que não podem estar presentes uma sem a outra. A “com-paixão” é viver dentro de mim o sofrimento do outro, a ruptura do desejo infinito de beleza e de bem que é próprio do coração humano e que o destino da morte e sua antecipação com a experiência da doença acarretam, mas a compaixão não seria verdadeira sem a “co-moção”: mover-se em direção ao outro, cuidar de uma pessoa ferida, não abandoná-la à solidão e ao desespero. O abraço que Millet mostra também engloba, ou seja, acolhe em si aquilo que a razão não é capaz de entender, como o mistério da dor, do sofrimento e do mal, tão comuns à vida do homem, mas tão alheios ao seu desejo de felicidade.
Comecei a usar a arte para trazer à tona essas coisas em ambientes profissionais quando comecei a descobrir pessoalmente, com certo espanto, que a arte pode ser um fator de conhecimento tão poderoso e até mais importante que a ciência. Arte e ciência, que parecem antitéticas, são próximas e inseparáveis. A ciência vive da dinâmica artística para poder ser verdadeira e inovadora, do mesmo modo que a arte carrega em si traços de rigor que a aproximam da ciência em seu processo criativo. Mas a arte sabe dizer o inefável e torná-lo experiência possível para todos. «Se tivesse podido dizer com palavras não teria sentido a necessidade de pintá-lo», dizia Edward Hopper.
Foi assim que, graças também a certas circunstâncias favoráveis, esse itinerário que fala de doença, saúde e cuidado através de um olhar artístico tornou-se um curso da Universidade de Bolonha desde 2006. A ajuda gratuita e inesperada de vários professores possibilitou esse curso sui generis. Como a provocação de Millet, centenas de imagens carregadas de significado e de beleza se converteram em um instrumento para dar lugar a um olhar diferente sobre a realidade médica. Por um lado, a arte dita um método. Ensina uma capacidade de olhar e de abertura ao conhecimento da realidade. Por outro, e ao mesmo tempo, oferece imagens que descrevem o que significa cuidar dos doentes em meio a desafios, contradições e abismos misteriosos que se deparam com o olhar cheio de perguntas do doente.
«Se queres, podes curar-me», diz o leproso a Jesus, e com ele qualquer pessoa que peça para ser curada. A necessidade humana de ter saúde carrega consigo, ainda que inconscientemente, um pedido de salvação. É difícil enfrentá-la sem se sentir sobrecarregado ou sem reduzir seu alcance. Também aqui a arte pode nos ensinar algo. O olhar do artista sabe guardar esse grito estrutural do ser humano, não censurá-lo quando ele se torna insensato ou contraditório, quando pede a morte mas afirma a vida, e o faz situando-se como guardião em defesa da dignidade do doente e do médico, e evitando a redução do doente à sua doença. Com diz o Cardeal Angelo Scola: «De forma sutil porque se esconde muito, isso é o que o paciente pede diante do médico, como se a minha cura dependesse de você, doutor, quase culpando-o. Certamente, nada como a doença e a medicina revela qual é a exigência mais verdadeira e profunda do doente e do homem. A exigência de captar o ponto central e o sentido desse fenômeno, que é o que mais cedo ou mais tarde me levará a dar o último passo».
Nada disso costuma ser abordado habitualmente nos cursos de formação de médicos e enfermeiros. A medicina assumiu um status científico, os resultados da ciência alcançaram resultados imparáveis e permitiram uma eficácia impensável no campo biológico, mas com dois problemas. O primeiro é que foi acompanhada de um reducionismo materialista pelo qual o ato de cuidar foi confinado a seu âmbito biométrico, esquecendo esse último passo que esconde a necessidade de saúde. O segundo é que a técnica gerou problemas novos, nos quais ressurgem poderosamente perguntas que tínhamos tentado esquecer porque não sabemos como enfrentá-las. A insuficiência cultural e educativa faz com que os profissionais estejam carregados de recursos tecnológicos, mas desprovidos de significado. Já em 1926, o neurologista Viktor von Weizsäcker escreveu que «o fato de a medicina atual não possuir uma doutrina própria sobre a pessoa doente é surpreendente, mas inegável. Ela identifica manifestações da doença, diferenças entre as causas, consequências, remédios, mas não o homem doente».
Há uma urgência educativa que se apresenta em todos os níveis e em todos os momentos da vida profissional de um médico ou de um enfermeiro, mas que não pode deixar de começar a ser abordada desde a formação universitária, que não apenas esquece esse nível de provocação, mas também contribui para perceber essas coisas como alheias ao cuidado, reduzindo-o a prestações de saúde de qualidade. Esse curso universitário, intitulado “Ars medica. A arte de cuidar”, está aberto aos alunos de todos os cursos, tanto para os que começam e chegam sem saber o que os espera, como para os que já conhecem a experiência clínica e estão em contato com as questões mais candentes da profissão. O curso é baseado em imagens, música, filmes, provocações transversais e testemunhos. Há alusões à história da medicina para mostrar como a experiência cristã possibilitou historicamente a introdução de uma positividade inimaginável diante da doença e da morte, que não são a última palavra sobre a vida humana. É somente em virtude dessa certeza que é possível abordar honestamente o pedido de saúde de um doente. A resposta das comunidades cristãs às epidemias dos primeiros séculos e o nascimento da hospitalidade na época monástica fizeram dessa atitude virtude, não apenas individual, mas também civil.
No final do curso, perguntamos aos alunos se ele foi significativo e por quê. As respostas mostram uma abertura inesperada que os estudantes nos dizem como tendo sido decisiva em sua formação e única no panorama acadêmico. Alguns confessam que o curso serviu para confirmar sua decisão de estudar medicina quando certas experiências nos hospitais parecem apagar esse desejo. Não sabemos quanto dessa semente plantada no coração dos alunos produzirá frutos significativos em sua trajetória profissional, isso pertence a sua liberdade e seriedade de comparação com a nossa proposta. O que é certo é que supõe um trabalho de aprofundamento para nós que participamos do curso, que nos ajuda a manter esse olhar aberto.
*chefe de Medicina Geral do hospital de Vimercate (Monza Brianza) e presidente da associação Medicina e Persona (Medicina e Pessoa).